Qual é a principal regra que o Brasil violou, segundo o diplomata mais citado em estudos acadêmicos
“O Brasil tem 200 anos de tradição diplomática sólida. Vai recuperar seu lugar, usando suas vantagens no meio ambiente, no comércio”, diz Gelson Fonseca Junior
Por Diego Viana — Para o Valor, de São Paulo
10/02/2023 05h02 Atualizado há 2 horas
Após duas décadas em que as instituições multilaterais ganharam fôlego nas relações entre os países, com foros globais de tomada de decisão, como as conferências do clima, e debates no âmbito da Organização das Nações Unidas (ONU) e da Organização Mundial do Comércio (OMC), a ascensão da China como nova grande potência pode estabelecer uma nova bipolaridade no mundo, justamente quando os problemas do cenário internacional são mais claramente globais, a começar pela emergência climática.
Uma nova crise do multilateralismo seria apenas um novo capítulo de uma história composta de crises, aponta o embaixador Gelson Fonseca Junior, diretor do Centro de História e Documentação Diplomática (CHDD) da Fundação Alexandre de Gusmão (Funag), ligada ao Ministério das Relações Exteriores. Com todas as dificuldades, ferramentas multilaterais estão disponíveis e funcionam, diz. Os atritos entre americanos e chineses são decisivos para o futuro das instituições multilaterais, mas há temas em que os avanços são possíveis, sobretudo o meio ambiente. Nesse cenário, o Brasil pode ter posição de destaque, graças em parte a sua tradição diplomática realista.
Em janeiro, o Centro Brasileiro de Relações Internacionais (Cebri) e a Funag publicaram o livro “O Brasil no mundo: Estudos sobre o pensamento de Gelson Fonseca Junior”, com contribuições de diplomatas e professores sobre a obra do embaixador. Entre outros cargos, Fonseca foi representante permanente do Brasil na ONU de 1999 a 2003. É autor de obras que são referência no estudo das relações internacionais no Brasil, como o livro “A legitimidade e outras questões internacionais” (Paz e Terra, 1998), e dedicou diversos artigos à questão do multilateralismo. É o diplomata mais citado em estudos acadêmicos em relações internacionais no Brasil.
Valor: Um dos principais temas de sua trajetória é o multilateralismo. Hoje, com a escalada do atrito entre EUA e China, ele está em risco?
Gelson Fonseca Junior: Não me lembro de um momento em que o multilateralismo não estivesse em crise. A ONU foi criada com a expectativa de ter um grande papel na segurança internacional, mas isso foi logo antes de estalar a Guerra Fria. Então ela cumpriu esse papel em alguns momentos mais, em outros menos. Nos anos 90, pensávamos que, sem Guerra Fria, a ONU deslancharia. De fato, foram feitas conferências globais e criou-se um padrão de ação multilateral. Mas persistiu o problema do jogo de poder. Na Guerra Fria, os instrumentos de manutenção da paz eram prejudicados pela disputa global, mas as instituições multilaterais funcionaram. Muita coisa aconteceu, como a descolonização. Os países em desenvolvimento se juntaram para propor uma nova ordem econômica. Hoje, a questão de como vai evoluir a relação entre EUA e China é que vai definir o futuro do multilateralismo. Vai haver um confronto? Eles vão se acomodar? Esses países têm uma relação íntima na área financeira e na tecnológica. É possível desligar essa relação e partir para o confronto? O que as instituições multilaterais podem fazer para atenuar o conflito, que já se manifesta em protecionismo tecnológico? As respostas, quando vêm, envolvem muita torcida. Quem deseja a paz olha para o lado positivo: a China investe nos EUA, os dois ganham com as trocas. O quadro de instituições multilaterais está funcionando. Mas nada disso invalida a armadilha de Tucídides: a China cresce e os EUA querem manter a hegemonia, o que leva ao confronto. O militar pode ser descartado, porque daria cabo de ambos. Aliás, de nós também.
Valor: Um mundo bipolar fortalece a capacidade de negociação dos países emergentes?
Fonseca: Hoje, um problema ao falar de emergentes é: existe um pleito em comum dos emergentes? Nos anos 60, era fácil criar um grupo de emergentes, que partiam de realidades comuns e tinham demandas semelhantes. Hoje, esses países são muito diversos e os interesses idem. Não se pode ter política comum sem uma base comum. As posições estratégicas também mudam muito. Alguns são mais próximos da China, outros ligados aos EUA. E a agenda internacional ficou muito fragmentada. Qual seria a plataforma comum dos emergentes no meio ambiente? E em direitos humanos? Na reforma do Conselho de Segurança? Esse é o dilema. Em matéria de meio ambiente, tem algumas plataformas comuns. Nos direitos humanos, não. No caso do comércio, é complicado, porque temos problemas com a Índia, por exemplo.
Valor: E a governança global? O clima, por exemplo, exige um alto nível de articulação.
Fonseca: Temas como clima e saúde são por natureza globais. Mas outros também, como a aviação comercial e as telecomunicações. Alguns podem ser resolvidos tecnicamente, outros são mais complicados. Quando a humanidade vai perceber que é preciso ter regras mais constrangedoras em matéria ambiental? Para que houvesse ONU, morreram 40 milhões de pessoas. Só aí se decidiu avançar no sistema global de governança. Mas uma vez iniciado, é difícil controlar o processo. Entram questões políticas e de interesse. No clima, apesar das dificuldades, existe a consciência comum de que é preciso agir. Há pressão social e científica. Quando se chega ao plano da política, vemos que há perdas e renúncias, os países ricos não querem desembolsar tanto quanto os pobres exigem, e por aí vai.
Valor: O tema da governança revive a antiga questão da paz perpétua. É um beco sem saída?
Fonseca: O problema da governança global é imaginar uma racionalidade que resolva problemas irracionais. Hoje, instrumentos de governança existem. O primeiro é a ONU, cuja atuação é limitada. O problema não está nos instrumentos. Está na criação de vontade política para que os instrumentos funcionem. Por que a regulação do tráfego aéreo funciona? E por que os instrumentos da segurança não funcionam? Já a pergunta dos autores antigos, em seus projetos de paz perpétua, era: por que há guerras? Era o grande tema da humanidade. Ainda é, vide a Ucrânia. Teoricamente, o conselho de segurança poderia se reunir e mandar a Rússia voltar atrás. Mas pode? Pode no caso do Iraque. As instituições multilaterais têm sempre uma reserva de soberania. Na Carta da ONU, consta que os Estados têm o direito de atuar por fora em situações de legítima defesa. Então eles inventam uma razão para atacar uns aos outros invocando legítima defesa. Não tem como desligar um processo internacional da realidade do poder. As questões são levaas adiante se houver uma liderança que queira levar adiante. Quem lidera as negociações do clima? Não tem um país que seja o dono da história e possa se impor. É preciso articular, e esse é um processo difícil.
Valor: Lula assume com a mesma ambição do primeiro mandato: dar protagonismo global ao Brasil. O mundo atual não é o de 2003. Pode haver barreiras para esse protagonismo?
Fonseca: Por seu tamanho e a importância que temos em áreas como o meio ambiente, o Brasil é sempre protagonista. O mundo é outro, mas um lugar de importância para o Brasil está reservado. Nossa capacidade de mobilização é forte e conhecida na agenda multilateral, na OMC, na ONU. A expectativa de que o Brasil voltasse a ter papel relevante era natural. Somos protagonistas na cena internacional, não como superpotência, nem potência secundária, mas somos. Como, então? Tem um tipo de poder em que o Brasil se destaca. Não temos poder militar, nem ideológico, nem econômico, ou só em algumas áreas. Mas temos um poder diplomático. A tradição brasileira é de uma visão bem realista de como o mundo é e do que podemos fazer nele. E temos um comportamento diplomático que nos ajuda nesses processos de negociação. Tudo é negociado e o Brasil sabe negociar.
Valor: O período em que o Brasil abdicou desse realismo deixa cicatrizes?
Fonseca: Foi um período curto, em que se infringiram não só tradições da diplomacia brasileira, mas regras da diplomacia em geral. Um colega dizia que só há uma regra na diplomacia: seja gentil com as pessoas. E deixamos de fazer isso por alguns anos. Fechar a embaixada em Caracas foi inusitado. Nem os americanos, que impõem sanções a Cuba, deixaram de ter um escritório em Havana. Mas o Brasil tem 200 anos de tradição diplomática sólida. Vai recuperar seu lugar, usando suas vantagens no meio ambiente, no comércio e outras. Entre os parceiros, existe a torcida para que o Brasil volte ao protagonismo. Líderes da Europa, dos EUA, da América Latina, querem o Brasil participando das decisões. Os vizinhos querem que o Brasil ajude a consertar o Mercosul, a aumentar as relações comerciais desses países, a organizar uma frente comum de atuação.
Valor: Em 1981, sua tese no Itamaraty defendia a aproximação da diplomacia com o mundo acadêmico. Qual foi sua motivação?
Fonseca: Estava claro que a democratização iria acontecer. A pergunta era: como o Itamaraty vai viver a nova situação? Minha geração começou na ditadura e pensava a política externa na perspectiva dela. Nós nos preocupávamos com as limitações impostas por um governo militar. Meu primeiro chefe foi João Augusto de Araújo Castro, que tinha sido ministro de João Goulart e mantinha uma boa relação com jornalistas. E trabalhei com Ítalo Zappa, para quem o que dava legitimidade à política externa era o modo como ela era passada à sociedade. Mesmo na ditadura, o Itamaraty tinha uma relação com a imprensa diferente dos outros ministérios. Mas fui olhar para a relação para a universidade, onde, nos anos 80, havia um grupo muito pequeno, mas visivelmente de muita qualidade, estudando relações internacionais na universidade. Até então, não era comum que pessoas de formação acadêmica estudassem as relações internacionais. Meu chefe, Ronaldo Sardenberg, começou a interlocução com esse grupo. Hoje, o campo está consolidad.
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