O Brasil e o seu vizinho mais importante, a Argentina, talvez distante
Paulo Roberto de Almeida
Diplomata, professor
(www.pralmeida.org; diplomatizzando.blogspot.com)
Artigo sobre as relações Brasil-Argentina, no contexto da primeira viagem de Lula; versão editada publicada na revista Crusoé: “O bloco do Cambalacho”, na revista Crusoé (n. 247, 20/01/2023, link: https://crusoe.uol.com.br/edicoes/247/o-bloco-do-cambalacho/).
Desde os tempos coloniais, o vice-reinado do Rio da Prata, parte do qual viria a se tornar a Argentina atual, ocupa um lugar especial nas relações exteriores do Brasil. Os patacões espanhóis, moedas de prata de 600 reis, eram uma espécie de “moeda comum”, alimentando o comércio de contrabando entre dois impérios funcionando sob um regime de exclusivo colonial. Depois da libra, veio o dólar, e os dois países passaram da hegemonia informal do império britânico, no século XIX, para a preeminência americana no século XX.
Ambos os países tinham suas diferenças de interesses nacionais, antes mesmo da transferência da corte portuguesa para o Rio de Janeiro, em 1808, no decorrer do inédito experimento monárquico num hemisfério republicano e na mais longa ainda adesão dos dois países a regimes presidencialistas, com seus altos e baixos nessa longa duração. Os conflitos começaram na guerra da Cisplatina (atual Uruguai), se prolongaram na queda do ditador Rosas em 1853, se recompuseram parcialmente durante o enfrentamento comum do ditador Solano Lopez, na guerra do Paraguai, e continuaram entre indiferença e aproximação do decorrer do século XX. No início do século passado, a Argentina era cinco vezes mais rica do que o Brasil, em PIB per capita, pelo menos, e bem mais educada.
A decalagem começou a ser lentamente erodida a partir dos anos 1930, a “década infame” na Argentina – quando foi escrito o tango Cambalache –, que marca também o início da industrialização no Brasil, completada sob o regime militar de 1964, quando o Brasil suplanta a Argentina no poderio industrial e se aproxima do seu nível de renda per capita. Mas esses anos também são marcados, se não pela hostilidade, como no século XIX, ao menos pela indiferença e por conflitos latentes, como nos casos da exploração dos recursos hídricos do Rio da Plata (Itaipu) e dos projetos nacionais (frustrados) de capacitação nuclear.
A convergência de interesses começou mesmo na redemocratização dos dois países em meados dos anos 1980, com a amizade entusiasta de Ricardo Alfonsin e de José Sarney, que também deram a partida a um projeto aberto de integração, mas que ainda não atingiu sua finalidade básica, a formação de um espaço econômico comum, unindo os dois maiores países da América do Sul a outros parceiros regionais, começando por Paraguai e Uruguai justamente. O Mercosul, criado quadrilateralmente em 1991, a partir de um tratado bilateral de 1988, ainda não atingiu os objetivos estipulados no seu Artigo 1º, qual seja, uma união aduaneira completa, base indispensável para justificar o seu nome: o Mercado Comum do Sul. Os obstáculos não estão propriamente no Tratado de Assunção, mas na resistência dos lobbies nacionais a uma verdadeira abertura econômica e à liberalização comercial.
Os seis primeiros países europeus que assinaram os tratados de Roma em 1957, atingiram a meta fixada do mercado comum no espaço de dez anos, ainda assim com diversas lacunas que foram sendo completadas em sua história de mais de meio século, chegando a constituir, atualmente, uma União econômica, dotada, não de uma moeda única, mas de uma moeda comum, que alcança inclusive países que ainda não integram o sistema comunitário. O Mercosul já passou dos trinta anos, mas sequer conseguiu completar sua zona de livre comércio e ainda está longe de se apresentar como união aduaneira perfeita. Os quatro membros originais possuem exceções nacionais à Tarifa Externa Comum, e as demais normas relativas a investimentos e serviços não foram implementadas devido à habituais restrições protecionistas em cada um deles, com destaque para os dois grandes. Depois de uma fase inicial de crescimento do comércio intrarregional, a dinâmica da integração cessou, e o Mercosul tornou-se um palanque retórico dedicado a outras causas que não o comércio.
Assim como ocorre no âmbito europeu, onde os impulsos comunitários são dados pelas suas duas maiores economias, a Alemanha e a França, o maior esforço no caso do Mercosul deveria ser feito pelos seus dois maiores membros. Entretanto, mesmo a despeito de um engajamento puramente formal em favor da integração, os dois grandes não lograram impedir que seus respectivos lobbies protecionistas introduzissem obstáculos burocráticos e regulatórios a uma plena abertura recíproca. Não obstante, tornou-se um hábito, quase que um ritual obrigatório, as viagens bilaterais recíprocas dos presidentes respectivos, primeiro entre Sarney e Alfonsin, depois Collor e Menem, e assim foi indo até chegar na negação dos contatos, durante a gestão Bolsonaro. Não apenas afastamento, mas hostilidade aberta, com base em preconceitos ideológicos sem qualquer sentido no caso de uma relação realmente estratégica, não limitado ao bilateralismo estrito, mas sobretudo no tocante ao Mercosul e a todos os demais temas de interesse comum num contexto bem mais amplo que o comércio.
O ritual das viagens iniciais e dos contatos intensos deve ser retomado a partir de agora com Lula, que só não visitou a Argentina antes da posse em função das dificuldades de uma transição atribulada, depois das eleições presidenciais mais divisivas da história política brasileira. Não se trata apenas de contatos amistosos, mas de uma agenda repleta de temas relevantes para os dois países, nas áreas econômicas, de fronteiras, de segurança e, não menos importante, de coordenação de posições com vistas às grandes questões da ordem política e econômica internacional. Haverá certamente muito mais retórica – ao estilo do velho bordão “tudo nos une, nada nos separa” – do que resultados concretos, tanto porque a Argentina se encontra engolfada numa nova hiperinflação – a maior em três décadas – e o Brasil ainda sequer encontrou a paz interna para cuidar de sua economia combalida, para prometer novos impulsos numa relação bilateral que se mantém em banho-maria desde a grande crise do Mercosul vinte anos atrás.
Registre-se que até o início do presente século, o intercâmbio global do Brasil com os países do bloco representava fração bem mais significativa do comércio total do país do que atualmente, quando os fluxos com a Ásia cresceram enormemente, sobretudo com a China. Registre-se igualmente que a “Brasil dependência” da Argentina acaba de encerrar-se, pois que a China também assumiu a liderança no seu comércio exterior, evolução que já tinha ocorrido para o Brasil desde 2009. A fragmentação do processo de integração que se vê no resto do continente – da qual a Aliança do Pacífico (México, Colômbia, Peru e Chile) é justamente a mais clara evidência, pois que voltada bem mais para a Ásia Pacífico do que para intercâmbios recíprocos – também atinge o próprio Mercosul, no qual o pequeno Uruguai volta a buscar relações comerciais preferenciais fora do bloco, antes na direção dos Estados Unidos, agora num acordo de livre comércio com a China (o Chile já tem um, aliás com praticamente 80% do PIB mundial, desde mais de vinte anos).
Nem o Brasil, nem a Argentina possuem uma visão unificada a respeito, por exemplo, do acordo do Mercosul com a UE, nem a respeito da adesão à OCDE ou a da Argentina ao BRICS (aceita e desejada pela China, que pretende fazer desse foro uma espécie de grupo contrário ao hegemonismo ocidental na OCDE). A referência a uma “moeda comum” no Mercosul não passa de um diversionismo ilusório, sem qualquer chance de prosperar, assim como anúncios reiterados de uma “reforma” no Mercosul que tem pouca chance de prosperar num contexto de dificuldades econômicas nos dois maiores membros. Não obstante, a velha retórica da relação especial vem sendo novamente invocada com certo ardor, como acaba de anunciar o novo chanceler em seu discurso de posse:
Nossa ideologia na região será a ideologia da integração.
Daremos atenção especial à parceria estratégica com Argentina, Uruguai e Paraguai, fortalecendo os mecanismos bilaterais e a implementação de projetos de interesse comum.
O MERCOSUL deve ser aprofundado, juntamente com nossos três parceiros, nas vertentes que tenham impacto direto na vida das pessoas e no comércio intra e extrarregional, com ênfase no avanço da liberalização e facilitação do comércio dentro do bloco, da conclusão de acordos externos equilibrados, na promoção dos investimentos, no turismo, e na facilitação da circulação de pessoas e bens.
Em diálogo com nossos parceiros, buscaremos recuperar em novas bases a União de Nações Sul-Americanas (UNASUL), garantindo claro sentido pragmático e eficácia à organização. O pronto retorno à Comunidade de Estados Latino-Americanos e Caribenhos (CELAC) e a sua dinamização serão, também, objetivos imediatos da política externa brasileira. (chanceler Mauro Vieira, 2/01/2023)
Ou seja, nada que se diferencie muito de discursos do passado, por ocasião de posses presidenciais ou de visitas de alto nível. O que não falta, na região, em especial no Mercosul e na relação Brasil-Argentina, são invocações grandiosas de projetos e iniciativas que não tardam a modorrar na condução burocrática e rotineiramente delongada. Nenhum dos países do Cone Sul encontra a energia necessária para confrontar os lobbies protecionistas internos para desarmar, de fato, as barreiras que impedem a adoção do projeto integracionista que constitui o artigo primeiro do Tratado de Assunção: a constituição de um mercado comum do Sul, como aliás é o título oficial do bloco. Os europeus, depois de uma fase intermediária de retraimento na “euroesclerose” – depois do fim de Bretton Woods em 1971 – encontraram a saída firmando o ambicioso projeto do mercado unificado – o Ato Único de 1986 – que os levou a Maastricht e à conformação de um espaço econômico verdadeiramente comum, com a adoção de uma mesma moeda pelos países convergentes com uma série de regras rígidas em matéria monetária e financeira, o que está longe de ocorrer no caso do Mercosul.
Do lado europeu, prevaleceu o desejo francês e alemão de encerrar definitivamente um século de guerras interestatais – que foram na verdade mundiais – para mirar no projeto comunitário que uniu toda a Europa ocidental e depois se estendeu a suas porções central e oriental. No caso do Cone Sul, a formação de um espaço econômico integrado na América do Sul depende inequivocamente da liderança do Brasil e da Argentina, mas talvez falte, para isso, o acicate de conflitos bem mais graves entre os seus principais protagonistas, entre eles Colômbia e Venezuela. Não é certo que Brasil e Argentina conseguirão superar a letargia dos últimos vinte anos, inclusive porque as eleições no país platino poderão, uma vez mais, levar a um novo distanciamento entre os projetos econômicos nacionais. Os Estados Unidos e a China estarão atentos a quaisquer movimentos dos dois grandes do Cone Sul, que, talvez, sejam parceiros no BRICS, mas provavelmente não na OCDE. Seria uma pena...
Paulo Roberto de Almeida
Brasília, 4304: 16 janeiro 2023, 4 p.
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