“Saímos de cima do muro”, diz novo chanceler Mauro Vieira sobre guerra
Chefe do Itamaraty afirma que hoje o país defende a Ucrânia no conflito com a Rússia e garante que o Brasil vai se aproximar da China e dos Estados Unidos
Por Amanda Péchy
Revista Veja, 10 fev 2023
Em sua segunda passagem pela Esplanada dos Ministérios, o chanceler Mauro Vieira, 71 anos, está debruçado sobre uma agenda repleta de viagens que julga essenciais à tarefa de reinstalar o Brasil no tabuleiro geopolítico. O périplo começou ao lado de Lula em viagem cercada de polêmicas à Argentina e segue nos Estados Unidos, a partir desta sexta-feira, 10, onde a ideia é refazer “laços esgarçados” com o governo Joe Biden. Conhecido pelo temperamento apaziguador, ele chegou a ser criticado por alas do PT depois de, tendo ocupado a pasta na gestão Dilma Rousseff, comparecer à posse de seu sucessor, José Serra, no polarizado cenário pós-impeachment. Com um extenso currículo de embaixadas que comandou em variados momentos da história do país — Buenos Aires, Paris, Washington —, Vieira acabou, na era Bolsonaro, sendo alojado na representação da Croácia e ali ficou isolado, distante das discussões globais. Em entrevista concedida em seu gabinete no Itamaraty, ele diz: “O Brasil está de volta ao jogo.”
O que a visita de Lula aos Estados Unidos pode trazer de ganhos concretos para o Brasil?
Essa visita é essencialmente política. O objetivo é restabelecer laços que ficaram esgarçados na gestão anterior. Foi um período em que havia um alinhamento automático não exatamente com os Estados Unidos, mas com o então presidente Donald Trump. Quando ele perdeu as eleições, em 2020, o elo deixou de existir. Para se ter uma ideia, o governo Jair Bolsonaro demorou mais de um mês para reconhecer a vitória de Joe Biden.
Há alguma proposta de cooperação na mesa?
Por enquanto, não. Só depois dessa reaproximação será possível começar a conversar de forma mais palpável sobre comércio, ciência e tecnologia. Uma das pautas relevantes da visita será a política ambiental. Os presidentes ainda devem falar de futuros investimentos americanos no Brasil e sobre caminhos para abrir espaço à iniciativa privada brasileira lá. Os Estados Unidos sempre estarão em nosso rol prioritário. Depois da China, são nossos maiores parceiros.
E sobre a visita à China, prevista para ser a próxima escala, há chances de sair daí o tão alardeado acordo com o Mercosul?
Ainda não, isso leva mais tempo. Mas é um primeiro passo. O governo chinês convidou Lula e ele já aceitou. Deve embarcar entre março e abril. Fazendo as contas e olhando a agenda, nos primeiros quatro meses de mandato o presidente terá mantido contato com todos os grandes parceiros brasileiros. É um trabalho de refazer pontes que hoje não estão tão sólidas.
Quais assuntos devem vir à tona na ida a Pequim?
Discutirei a agenda em detalhes com o chanceler chinês nesse mês, na reunião do G20, na Índia. Eles são os parceiros comerciais número 1 do Brasil desde 2010, então há muitos interesses em jogo. Como a China ocupa uma posição de destaque na ciência e na tecnologia, essa é uma área que atrai a atenção do Brasil, entre muitas outras. Bolsonaro disparou comentários grosseiros sobre Pequim, criando rusgas que, agora, nos cabe dissolver.
Como o Brasil vai atuar no complexo tabuleiro em que a China tenta tirar dos Estados Unidos o posto de país mais poderoso?
Negociaremos com um e outro, indiscriminadamente. Isso não significa, porém, ir e voltar nos acordos, ao sabor das circunstâncias. Política externa é um esforço de longo prazo. O programa espacial que temos com a China foi selado quatro décadas atrás. Os Estados Unidos, por sua vez, foram nosso maior parceiro por um século inteiro, até 2010. Faremos o que for bom para o Brasil, com diplomacia e não com ideologia.
A atual política externa de Lula vem sendo comparada à dos mandatos anteriores, sobretudo por dar ênfase às relações com a América Latina, que, com as voltas que o mundo deu, perdeu relevância. Faz sentido enveredar por essa direção?
Garanto que, se ajustes forem necessários, serão feitos. Mas se a política do passado seguir nos beneficiando, não hesitaremos em voltar a mecanismos que deram certo. O retorno à Celac (reunião de países latino-americanos e caribenhos), por exemplo, é acertado, já que funciona como um eficiente espaço para o debate de interesses comuns.
A ideia de uma moeda comum na região, lançada na recente viagem de Lula à Argentina, vai mesmo sair do plano do discurso?
Primeiro, só para não haver confusão, o presidente nunca se referiu a uma moeda única, nos moldes do euro, mas a uma unidade comum para trocas internacionais, a começar pela Argentina. Isso pode agilizar o comércio bilateral. Agora, para sair do papel depende de muitas variáveis, não se cria algo assim de uma hora para outra. Afinal, os quatro países do Mercosul apresentam ritmos muito diferentes na economia.
Lula também citou a intenção de canalizar verbas do BNDES para investimentos no exterior. Como evitar que caiam na teia de corrupção que já enredou outros projetos do gênero?
Combatendo, investigando, punindo. Acho inacreditável como criticam investimentos brasileiros no exterior. Esse tipo de linha de financiamento existe justamente para ajudar negócios nacionais, passando por uma aprovação criteriosa. Um eventual aporte de dinheiro para o gasoduto argentino de Vaca Muerta, para ir até o Rio Grande do Sul, tem potencial para beneficiar uma relevante cadeia produtiva, gerando emprego e renda no Brasil, só para dar um exemplo.
Não é um problema Lula apoiar ditaduras como as de Cuba e da Venezuela, dizendo que temos de demonstrar “carinho” e “respeito” com países que atropelam os direitos humanos?
Não podemos deixar de conversar com Caracas e Havana por seguirmos linhas político-ideológicas divergentes e nos limitar àqueles que compartilham nossas visões — exatamente o que o antigo governo fez. A Venezuela não só é um país vital por deter as maiores reservas de petróleo do mundo, como tem uma fronteira de 2 000 quilômetros com o Brasil, na delicada região da Amazônia. Precisamos considerar nossos interesses. Podemos fazer críticas, mas não vamos fechar embaixadas.
Por que o Mercosul não deslanchou até hoje?
Não vejo assim. De 1991, quando foi criado, a 2011, seu auge, o volume de comércio entre os quatro países (Uruguai, Paraguai, Brasil e Argentina) passou de 4,5 bilhões de dólares a 48,9 bilhões de dólares. Na última década, houve oscilações em razão de crises econômicas regionais e mundiais, mas assistimos a uma forte recuperação. As críticas ao Mercosul estão mais relacionadas ao desejo de alguns países de selar acordos-solo de livre-comércio.
E por que o acordo do Mercosul com a União Europeia está há anos empacado?
Não sei por que ninguém fez nada desde 2019, quando foi assinado, sem ter sido ratificado. Estamos neste momento examinando o texto, e o presidente já deixou claro que é uma prioridade. Quer pôr um ponto-final na história até o fim deste semestre.
Lula disse que pretende revisar pontos do acordo. Isso não atravancaria ainda mais o processo?
A preocupação do presidente é justa: garantir que pequenas e médias empresas consigam ter acesso ao mercado europeu de forma competitiva, daí a necessidade de ajustes. Se não fosse por isso, poderíamos assinar imediatamente.
Segue na pauta o ingresso do Brasil no Conselho de Segurança da ONU como membro permanente?
O tema está na ordem do dia. Vamos manter, com esse objetivo, um firme trabalho junto aos membros permanentes e não permanentes do Conselho.
E a entrada na OCDE (organização que reúne os países mais desenvolvidos) é uma possibilidade?
O convite para ser membro foi apresentado ao governo brasileiro e será estudado. Lula já demonstrou interesse.
No recente encontro com o chanceler alemão Olaf Scholz, Lula afirmou que “quando um não quer, dois não brigam”, mantendo um discurso ambíguo sobre o conflito entre Ucrânia e Rússia. Não está na hora de um pronunciamento mais enfático?
Na minha interpretação, o que ele quis dizer com essas palavras é que, quando dois estão em guerra, se um lado fizer um gesto e o outro seguir, isso pode abrir chance para a negociação. A propósito, o presidente já afirmou inúmeras vezes que condena a invasão russa e a guerra. Ao contrário do governo Bolsonaro, agora o Brasil saiu de cima do muro.
Por que então o Brasil negou o pedido da Alemanha para fornecer munição aos tanques na Ucrânia?
O governo não quer dar armas para que as pessoas se matem, mas conversar sobre a paz. Aliás, se formos chamados para ajudar a mediar as negociações, estamos dispostos a participar.
Como avalia a política externa na gestão Bolsonaro?
Prefiro não cutucar o passado, mas, tudo bem, falo um pouquinho aqui. Bolsonaro interferiu em assuntos internos de outros países, criou saias-justas e fez comentários grosseiros sobre seus líderes. Nunca tinha visto em todos os meus anos de carreira nada parecido.
Ataques à democracia, como o de 8 de janeiro, são um freio de mão à diplomacia brasileira?
No dia do atentado, recebemos dezenas de ligações de chefes de Estado prestando solidariedade e se dizendo horrorizados com aquelas cenas. No final, acho que o episódio serviu para mostrar que temos uma democracia sólida, com instituições capazes de reagir de forma rápida e punir os culpados.
Haverá troca-troca de embaixadores e representantes do Brasil em instituições estrangeiras?
Haverá trocas em postos-chave naqueles países onde o presidente tem relação pessoal com os chefes de Estado. Júlio Bitelli, próximo de Lula, foi escolhido como embaixador na Argentina, e nomes indicados por Bolsonaro na França, na Holanda e na Itália serão substituídos. Foi ainda anulada a indicação da representação do Brasil junto à Organização Mundial do Comércio. Em quase todos os casos, os diplomatas estavam dentro do período de troca.
O senhor foi escalado na gestão Bolsonaro para assumir uma embaixada menos vistosa, na Croácia. Guarda ressentimento?
Nenhum. Fui para a Croácia porque quis. Tinha a opção de voltar ao Brasil, mas preferi me manter em exercício. Não falava com o governo nem o governo comigo. A solidão desse tempo felizmente ficou no passado.
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