Posto novamente aqui um texto escrito em meados de 2022, ainda na vigência da postura "solidária" do governo Bolsonaro à Rússia, mas que pode servir também como reflexão ao início de um novo governo, que parece exibir, ainda que por motivos diferentes, postura similar ou semelhante. Momento de definição da diplomacia brasileira, que não sei se virá.
Paulo Roberto de Almeida
Brasília, 3/02/2023
A guerra de agressão da Rússia contra a Ucrânia e a postura do Brasil
Paulo Roberto de Almeida
(www.pralmeida.org; diplomatizzando.blogspot.com)
31 de agosto de 2022
Uma designação imprópria: “guerra da Ucrânia”; o correto é guerra de agressão
Uma das pequenas perversões editoriais do jornalismo corrente consiste em encontrar o menor número possível de palavras justas, ou adequadas, para expressar o conteúdo de uma matéria – pode ser uma reportagem meramente informativa, ou um artigo de opinião – no menor espaço possível para um título, que necessita ser justamente conciso, não mais do que duas linhas. É um esforço legítimo, que deve naturalmente ocupar o máximo de atenção dos chefes de redação, ou dos jornalistas mais experientes.
Esse tipo de preocupação, legítima como já dito, pode, no entanto, derivar para uma espécie de perversão conceitual quando estritamente aplicada para facilitar a vida dos chefes de redação, mas redundando numa simplificação exagerada do substrato da matéria em causa. Tal observação preliminar de minha parte se aplica inteiramente à questão do maior problema atualmente na agenda da comunidade internacional, o conflito armado atualmente em curso no coração da Europa central, entre um país candidato a ingressar na União Europeia – mas eventualmente também à Otan –, a Ucrânia, e seu grande e poderoso vizinho, a Rússia, saída do grande império soviético de 1917 a 1991 e, anteriormente, do também enorme Império czarista, que se estendeu historicamente da era moderna aos estertores da Grande Guerra.
Os jornalistas têm se referido invariavelmente a esse conflito, para fins de concisão, como a “guerra na Ucrânia”, ou a “guerra da Ucrânia”, mas também à “guerra entre Rússia e Ucrânia”, ou vice-versa. Cabe preliminarmente argumentar que essa concisão se faz ao preço de uma redução conceitualmente equivocada quanto à natureza do conflito. Não existe tal coisa, se adentrarmos na origem e no desenvolvimento desse “conflito”, conceito que pode também ser considerado como envolvido em toneladas de sal, para usarmos o velho mote latino do “cum grano salis”. Não existe “guerra da ou na Ucrânia”, assim como não existe uma guerra, ou hostilidades, ou conflito entre os dois países. O que existe, e isto precisa ser repetido todas as vezes quando o assunto vier à baila, é uma guerra de agressão da Rússia contra a Ucrânia, e isso sem qualquer qualificação adicional, pois tal designação apresenta implicações de grande importância para o Direito Internacional. Esta é, portanto, a minha qualificação preliminar em relação ao tema que devemos examinar, não exatamente a guerra em curso, seus aspectos militares, diplomáticos ou geopolíticos, e sim a postura do Brasil no tocante ao tratamento da questão nos foros multilaterais, tanto políticos (CSNU e órgãos acessórios), quanto jurídicos (CIJ ou TPI).
A Corte Internacional de Justiça já condenou a Rússia pela guerra de agressão
Que a “operação militar especial”, tal como designada enganosamente pelo ditador russo, seja, de fato, uma guerra de agressão da Rússia contra a Ucrânia está meridianamente claro, a partir de uma leitura dos artigos 1º e 2º da Carta das Nações Unidas, estabelecida em San Francisco, ao término do mais cruel e mortífero conflito global em toda a história da humanidade. Assim também decidiu a Corte Internacional de Justiça, em 17 de março de 2022, atuando a pedido do governo da Ucrânia, sob a Convenção sobre o Genocídio, quando 13 juízes –contra apenas dois, por acaso da Rússia e da China –, concluíram um julgamento, pelo qual ordenaram expressamente que a Rússia interrompesse imediatamente a guerra contra a Ucrânia e cessasse completamente as operações bélicas no território do vizinho país. A CIJ não tem, obviamente, nenhum poder sobre o lado militar dessa guerra de agressão, pois, mesmo para se pronunciar apenas sobre os aspectos de Direito Internacional a ela vinculados, a Corte dependeria de resoluções do Conselho de Segurança. Apenas esta peculiaridade da conformação do processo decisório no âmbito das Nações Unidas explica que resoluções aprovadas com ampla maioria naquele Conselho ou na Assembleia Geral permaneçam letra morta, ainda que a condenação moral seja muito clara.
O ditador russo não deslanchou apenas uma guerra de agressão contra o território ucraniano, um país soberano, como tal reconhecido pelas Nações Unidas desde quando ele foi desmembrado da finada União Soviética no início dos anos 1990. Putin, ao invadir a Ucrânia, sem qualquer provocação ou gesto belicoso desse país, não apenas violou a Carta da ONU, mas destruiu mais de quatro séculos de difícil construção de uma ordem internacional baseada na força do Direito, e não no direito da força. Ele começou violando os tratados de Westfália (1648), sobre o reconhecimento recíproco da soberania dos Estados nacionais, cada um possuindo o direito de estabelecer o seu próprio regime político e a sua religião. Também violou princípios implícitos decididos no Congresso de Viena (1815), sobre a legitimidade dos Estados nacionais e o reconhecimento de seus enviados diplomáticos, como canais de diálogo e de consulta entre dois ou mais soberanos. Ele violou o Tratado de Paris (1856), que estabeleceu a paz entre os contendores da primeira guerra da Crimeia, de 1853 a 1855. Da mesma forma, agiu contrariamente às decisões das negociações de paz de Paris (1919), que estabeleceu a Liga das Nações, com disposições relativamente similares às da Carta de San Francisco sobre a proibição das guerras de agressão. Se colocou frontalmente contrário aos poucos dispositivos do Pacto Briand-Kellog (1928), de renúncia à guerra e de recursos aos meios pacíficos de solução de conflitos, depois incorporados à Carta das Nações Unidas.
Ou seja, Putin é um violador serial dos principais instrumentos multilaterais que foram sendo acordados dentro do espírito e da letra do Direito Internacional nos últimos quatro séculos. Pelas suas ações, registradas e devidamente avaliadas por observadores da Corte Internacional de Justiça e do Tribunal Penal Internacional, Putin já incorreu nos mesmos crimes de que foram acusados os dirigentes civis e militares nazistas no Tribunal de Nuremberg, em 1946: crime contra a paz, crimes de guerra e contra a humanidade. Putin mereceria um Nuremberg só seu, mas sobre isto a História se pronunciará no futuro curso dos eventos. Não vou me estender mais sobre os aspectos multilaterais da questão, e sim tratar da relação entre o Brasil e o Direito Internacional, que me parece seriamente comprometida.
O Brasil e sua estrita adesão ao Direito Internacional, até recentemente
O Brasil sempre demonstrou, até recentemente, uma adesão inquestionável aos valores e princípios do Direito Internacional, tal como foram sendo elaborados e acatados nos últimos duzentos anos pela sua diplomacia, ainda que nem sempre o país tenha sido um seguidor fiel de alguns de seus dispositivos. Por exemplo, o compromisso assumido no âmbito do Congresso de Viena, na condição de Reino Unido ao de Portugal e Algarve, de fazer cessar o tráfico escravo, não foi traduzido na prática, como tampouco ocorreu, já como Estado independente, depois de assinar tratados bilaterais com a Grã-Bretanha prometendo fazê-lo em breves anos à frente. Mas, mesmo defendendo, até o Segundo Reinado, o nefando comércio, sua diplomacia, então guiada por Paulino Soares de Souza, argumentou de modo correto no plano jurídico, ao protestar contra o Bill Aberdeen, que equiparava o tráfico à pirataria, passível, portanto, de severa punição, indo até mesmo à pena de morte. Como escreveu em nota diplomática o Visconde do Uruguai, o tráfico não ameaçava o comércio internacional como a pirataria o fazia, e, de toda forma, não havia nenhum tratado internacional proibindo o horrível comércio de carne humana. Argumento bastante lamentável no plano moral, mas juridicamente correto.
O Brasil, por essa época, interferia nos assuntos internos do Uruguai, sob a justificativa de que do Uruguai partiam ataques contra o patrimônio de brasileiros em território nacional, num contexto de diferendos bem mais amplos com a Argentina de Rosas e com o Paraguai de Solano Lopes, que resultaram em duas guerras no espaço de duas décadas. Tampouco havia, a despeito do “espírito de Westfália”, um compromisso formal de não interferência nos assuntos internos de outros Estados, esporte ao qual se dedicavam todas as potências europeias da época. Desde a Guerra do Paraguai, e independentemente dos progressos feitos no terreno do Direito Internacional, assim como no âmbito de sua própria Constituição – a de 1891, por exemplo, proibiu terminantemente o recurso à guerra –, o Brasil se manteve integralmente fiel ao espírito e à letra dos instrumentos internacionais que foram sendo progressivamente incorporados aos edifícios hemisféricos e multilaterais dos dispositivos formais e informais regendo a ordem internacional.
Os pilares dessa diplomacia nacional estritamente respeitadora da soberania nacional e de fiel cumprimento de instrumentos jurídicos internacionais foram impulsionados pela política externa do Segundo Reinado, consolidados pelos dois Rio Branco, pai e filho, e magnificamente sustentados por Rui Barbosa por ocasião da segunda conferência internacional da paz da Haia, em 1907; contrariando muitas vezes sozinho a arrogância das grandes potências, Rui Barbosa defendeu o princípio da igualdade soberana de todos os Estados, conceito que se converteu no eixo central do multilateralismo contemporâneo. O mesmo Rui Barbosa clarificou a observância da neutralidade em casos de guerra e procedeu a uma vigorosa tomada de posição em defesa do direito de neutralidade em situações de conflito, e sua violação, na famosa conferência feita em Buenos Aires, em 1916, doutrina sistematizada na obra Princípios Modernos do Direito Internacional, mais vulgarmente conhecida como Os Deveres dos Neutros (Rio de Janeiro: Fundação Rui Barbosa, 1983).
O Brasil, estritamente neutro, justamente, com respeito aos dois grandes conflitos globais da primeira metade do século XX, a Grande Guerra de 1914-18 e a Segunda Guerra, de 1939 a 1945, avançou para uma declaração formal de status bélico, apenas quando foi covardemente atacado por forças marítimas do Império alemão e do Reich nazifascista, em 1917 e em 1942, respectivamente. Ao final da Grande Guerra, tendo participado da conferência de paz de Paris, em 1919, e em atendimento aos diversos tratados de paz reconhecendo o surgimento de novos Estados independentes na Europa central e oriental, o Brasil reconheceu, em 1920, a independência e a soberania da Polônia, da Tchecoslováquia, da Finlândia, da Islândia, da Áustria e da Armênia; no ano seguinte, reconheceu a soberania e os governos da Lituânia, da Estônia e da Letônia, com os quais estabeleceu relações diplomáticas; em 1923, foi a vez da Hungria, ser igualmente reconhecida pelo Brasil.
Em 1939, logo ao início da guerra europeia, foi levantada a questão da representação diplomática do Brasil junto ao governo polonês e a do reconhecimento da anexação dos territórios então ocupados pelo invasor nazista. Leio trecho do Relatório do Ministério das Relações Exteriores relativo ao ano de 1939, sobre essa questão: “Decidiu o Governo brasileiro, fiel aos princípios do não reconhecimento de conquistas efetuadas pela força, manter a sua Representação junto ao Governo da Polônia, tendo sido dadas instruções nesse sentido ao Ministro Joaquim Eulálio do Nascimento Silva [que devia ser o ministro na legação em Varsóvia], que se transferiu para Angers.” (Relatório do MRE, 1939, Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1943, p. 4-5) Da mesma forma, quando a União Soviética invadiu e anexou as três repúblicas bálticas com as quais o Brasil mantinha relações diplomáticas, o Brasil não reconheceu a suserania soviética sobre os três países bálticos, e assim se manteve durante não estabeleceu relações diplomáticas com a União Soviética, o que ocorreu no governo Jânio Quadros em 1961. Leio do livro do colega diplomata José Estanislau Amaral e Souza:
Quando Stalin anexou formalmente os Estados bálticos, em 1940, o Brasil mantinha com os três, relações diplomáticas formais, ao contrário da situação existente com a URSS. Radica nessa conjunção de fatores a origem de não reconhecimento da anexação soviética [depois, em 1945, ocorreu a anexação nazista, e novamente soviética em 1944], que prosseguiu até 1961, quando o Brasil restabeleceu mais uma vez relações com Moscou [a primeira vez tinha sido em 1945, mas só durou até 1947, quando o Brasil rompe relações], no marco da Política Externa Independente.
O principal resultado prático da política seguida pelo Governo brasileiro entre 1940 e 1961 foi a manutenção das missões dos Estados bálticos no Brasil. (...) A Lituânia [sob ocupação soviética] tinha apenas cinco legações [no exterior]: em Londres, em Montevidéu, no Rio de Janeiro, na Santa Sé e em Washington; contava com (...) [consulado] em São Paulo. A Letônia mantinha legações em Londres, em Paris, no Rio de Janeiro e em Washington... Finalmente a Estônia dispunha de uma única legação, em Londres, além de (...) [um consulado] em São Paulo. Sobressai, nesse mapa das missões dos países bálticos sob ocupação, o grande espaço ocupado pelo Brasil como hóspede de representações dos três Estados bálticos. (José Estanislau do Amaral Souza Neto, Usos da história: a diplomacia contemporânea dos Estados Bálticos: subsídios para a política externa brasileira. Brasília: Fundação Alexandre de Gusmão, 2011, p. 185)
O Brasil deixou de aderir aos princípios do Direito Internacional?
Em outros termos, durante toda a sua ativa participação na construção da ordem econômica e política do pós-guerra – mesmo não concordando em San Francisco com o direito de veto que se atribuiu aos cinco membros permanentes do Conselho de Segurança da ONU –, o Brasil manteve-se estritamente fiel aos princípios do Direito Internacional, à uma doutrina estritamente legalista de reconhecimento, ou não, de Estados experimentando mudanças de regimes, ou seja novos Estados ou incorporação a outros, novos governos – segundo critérios concretos, aplicados a novos governos saídos de golpes, revoluções ou guerras civis – ademais das cláusulas gerais que constam, por exemplo, na Convenção de Viena de 1961 sobre relações diplomáticas. Mas, o Brasil e sua diplomacia começaram a falhar no acatamento aos princípios do Direito Internacional desde que aqui se inaugurou uma política externa partidária, quando da diplomacia lulopetista praticada de 2003 a 2016. O presidente Lula, por exemplo, ignorou completamente dispositivos da Convenção de Viena de 1961, relativos à não interferência nos assuntos internos de outros Estados, aliás incorporados explicitamente ao artigo 4º da Constituição de 1988, junto com vários outros princípios, que correspondem às cláusulas mais importantes observadas nas relações internacionais contemporâneas, coincidentes com os grandes instrumentos multilaterais que regem as relações entre Estados soberanos. (Ver, a esse propósito, o livro de João Ernesto Christófolo, Princípios Constitucionais de Relações Internacionais: significado, alcance e aplicação. Belo Horizonte: Del Rey, 2019).
Lula violou sistematicamente tais dispositivos ao interferir em praticamente todas as disputas eleitorais em Estados vizinhos, apoiando candidatos pertencentes ao mesmo arco político-ideológico do seu partido. Mais grave ainda: quando da nacionalização dos recursos em hidrocarburos da Bolívia, em 1/05/2006, ela mesma uma violação grave de um tratado bilateral Brasil-Bolívia e de um acordo do governo boliviano com a Petrobras, mediante inclusive o uso da força pelo presidente Morales, a diplomacia de Lula – que pessoalmente deveria saber antecipadamente dessa iniciativa de seu companheiro de postura política, mas que provavelmente desconhecia o emprego do exército boliviano para ocupar as instalações da Petrobras – não apenas concordou com a expropriação, como soltou uma nota apoiando o gesto ilegal do governo do país vizinho. Militares nacionalistas poderiam eventualmente considerar tal postura como o equivalente de uma traição à pátria. De forma geral, a diplomacia partidária tendeu a favorecer aliados políticos, na região e fora dela, mesmo em detrimento dos interesses nacionais, em alguns casos implicando e violação de acordos bilaterais (no caso de Itaipu) ou regionais (no caso do ingresso da Venezuela no Mercosul).
Outro episódio grave, ainda no plano do direito internacional, ocorreu quando da invasão do território ucraniano em 2014, sob as ordens do mesmo Putin, e a anexação ilegal da península da Crimeia: a diplomacia lulopetista, então sob comando da presidente Dilma Rousseff, não emitiu sequer um comunicado condenando a grave violação da soberania da Ucrânia, o que tampouco ocorreu quando da derrubada de um avião da Malásia sobrevoando a região da Ucrânia oriental, já em conflito justamente devido à ocupação ilegal daquele setor por forças russas não devidamente identificadas. Optou-se por uma postura totalmente inerte no plano da política externa e da diplomacia brasileira, contrastando com a obrigação pelo menos moral de defesa do direito internacional e dos princípios da Carta da ONU, num momento em que diversos países ocidentais protestavam vigorosamente contra a invasão e introduziam sanções contra a Rússia. A presidente Dilma se manifestou apenas quando cobrada pela imprensa, dizendo que o Brasil não se envolveria em “assuntos internos” (sic) da Ucrânia, como se este fosse o caso. Uma provável razão pela inação vergonhosa do ponto de vista dos princípios sempre defendidos pela diplomacia profissional pode ter sido a parceria entre o Brasil e a Rússia no âmbito do Brics, uma construção claramente artificial, e totalmente política, entre quatro, depois cinco, países sem grandes convergências no plano da política internacional.
O Brasil em face da guerra de agressão da Rússia contra a Ucrânia
O caso da guerra de agressão da Rússia contra a Ucrânia, desde 24 de fevereiro de 2022, depois que o ditador russo passou semanas denegando a invasão, é infinitamente mais grave, ainda que o Brasil tenha supostamente aderido às resoluções votadas na ONU – no Conselho de Segurança e na Assembleia Geral – e no seu Conselho de Direitos Humanos, condenando a Rússia pelos atos cometidos desde então, mas com explicações de voto que traduzem claramente a decisão do chefe de Estado brasileiro de evitar acusar diretamente a Rússia pelas transgressões bárbaras perpetradas em território ucraniano. Sem adentrar nas minúcias da Carta da ONU, dos grandes princípios do Direito Internacional, assim como dos protocolos existentes sobre as leis de guerra, cabe registrar apenas algumas observações sobre a postura política do Brasil, não apenas no tocante às resoluções votadas no âmbito da ONU e do Conselho de Direitos Humanos, mas refletindo igualmente a atitude geral das autoridades políticas brasileiras com respeito ao posicionamento geral em relação à guerra de agressão.
É notoriamente conhecido que o Brasil, como país e como diplomacia, se encontra atualmente singularmente isolado no plano internacional, aliás desde o início de 2019, tendo em vista, basicamente, a postura, digamos heterodoxa, do chefe de Estado e de governo no seu relacionamento externo, tanto regional, quanto internacional ou multilateral. Tal situação de isolamento internacional decorreu das políticas domésticas do governo Bolsonaro, notadamente no domínio ambiental, mas também por repetidos ataques às instituições – Congresso e Suprema Corte) –, aos meios de comunicação, às organizações da sociedade civil (não governamentais) das áreas de defesa do meio ambiente, dos direitos indígenas, de ação social em geral. Ademais, o chefe de Estado hostilizou parceiros estrangeiros, com destaque para os líderes europeus, o presidente peronista da Argentina e dirigentes tidos de esquerda de maneira geral. De forma bastante evidente buscou relações unicamente com colegas de direita ou extrema-direita, além de prestar submissão ao anterior presidente dos Estados Unidos, Donald Trump.
Foi nessa situação de extremo isolamento que o presidente buscou realizar uma visita de trabalho a um dos poucos líderes mundiais que poderia recebê-lo, o presidente da Rússia, provavelmente já antecipando conquistar um aliado para o que já pretendia fazer poucos meses à frente. Quando se decidiu tal viagem bilateral, entre os dois chanceleres, Serguei Lavrov e Carlos França, no início do último trimestre de 2021, não estavam claros, ainda, os preparativos para a planejada ofensiva russa contra o país vizinho, o que foi feito por meio da acumulação de tropas russas na fronteira comum nos últimos dois meses daquele ano. Ao tomar conhecimento desse planejamento, a chancelaria brasileira recomendou que o presidente adiasse ou cancelasse a viagem, o que ele se recusou a fazer, mesmo com manifestações de alerta vindas do próprio presidente americano, Joe Biden (a partir de dados da inteligência dos EUA). A visita, ocasião na qual o presidente brasileiro declarou sua “solidariedade” ao presidente russo e justificada pela necessidade de importação de fertilizantes russos, foi feita oito dias antes de efetivada a invasão, que foi até minimizada pelo presidente.
Independentemente de palavras e gestos do presidente, a postura oficial do Brasil que vale para fins de política externa e de legitimação junto à comunidade internacional são as declarações feitas junto às Nações Unidas, cujos órgãos principais, o Conselho de Segurança e a Assembleia Geral, se ocuparam da questão da Ucrânia nas semanas seguintes à guerra de agressão da Rússia. Não cabe aqui reproduzir a íntegra das declarações da delegação do Brasil em Nova York e em Genebra (Conselho de Direitos Humanos), todas eles disponíveis no site do Itamaraty, ou a partir dos registros da ONU. O que cabe é sinalizar pormenores dessas declarações que revelam, se preciso fosse, o contorcionismo verbal da diplomacia profissional para evitar de responsabilizar claramente a Rússia pela guerra de agressão. Podem ser destacados quatro elementos nessas declarações que tornam evidente a postura do chefe de Estado no sentido de continuar apoiando objetivamente a postura de Putin.
A diplomacia de Bolsonaro falhou quatro vezes no seu posicionamento multilateral
Em primeiro lugar, sem condenar explicitamente a violação flagrante da Carta da ONU, a delegação brasileira instou as partes à “cessação de hostilidades”, como se estas fossem recíprocas, ou seja, uma guerra empreendida por decisão de ambas as partes, e não uma guerra unilateral sem qualquer provocação da parte agredida e invadida. Em segundo lugar, a delegação também pediu negociações entre elas, tendo em vista as “preocupações de segurança das partes”, como se a Ucrânia tivesse ameaçado, em algum momento, a segurança da Rússia. Em terceiro lugar, mesmo votando pela condenação da Rússia na Assembleia Geral – uma votação de toda forma inoperante, dado uso abusivo do poder de veto em defesa do próprio transgressor da Carta da ONU –, a delegação brasileira se opôs terminantemente à imposição de sanções contra a Rússia, a pretexto de que qualquer punição agravaria a situação econômica no mundo inteiro, o que significa, implicitamente, que o agressor pode se safar impune das ilegalidades e crimes perpetrados. Em quarto e último lugar, a delegação também se pronunciou contrariamente ao fornecimento de armas à Ucrânia, a pretexto de não provocar maior número de vítimas, o que se traduz num simples “convite” a que um governo soberano renuncie à defesa do seu povo e território.
Os quatro posicionamentos da delegação brasileira não são a rigor, ilegais, do ponto de vista do Direito Internacional, mas são altamente hipócritas, tendo em vista a acumulação de crimes de guerra e até, possivelmente, crimes contra a humanidade, perpetrados pelas tropas russas de ocupação. A hipocrisia puramente política – não teoricamente contrária ao direito internacional – se estende inclusive à oposição do Brasil à imposição de sanções à Rússia, a pretexto de que elas seriam “unilaterais”, e não aprovadas pelo CSNU, como se este pudesse fazê-lo não obstante o veto russo a qualquer medida contrária a seus interesses. No que concerne as sanções, cabe registrar que elas se conformam inteiramente ao espírito e à letra dos artigos 41 e 42 da Carta da ONU, que regulam tal faculdade. Ou seja, os países estão apenas aplicando as medidas previstas na Carta de San Francisco, numa situação em que – da mesma forma como ocorre nas cortes quando juízes se declaram impedidos de atuar em casos nos quais eles possam incorrer em qualquer conflito de interesse – o veto da Rússia não poderia ser aplicado em seu próprio favor, dado o fato de que ela é a parte agressora, aquela que violou as disposições mais relevantes do instrumento máximo do Direito Internacional.
A diplomacia brasileira apresenta, por nítida pressão da presidência, um triste quadro de contorcionismo verbal e subterfúgios retóricos para evitar de se colocar, como geralmente fez ao longo de sua história de dois séculos, sob o espírito e a guarda de sagrados princípios do Direito Internacional, e até mais do que isso, da moralidade. As perspectivas oferecidas a partir das pesquisas eleitorais efetuadas até meados de agosto não são prometedoras de uma necessária revisão dessa postura, senão complacente com a guerra de agressão da Rússia contra a Ucrânia, pelo menos de total indiferença ao indizível sofrimento do povo ucraniano em face dos brutais bombardeios efetuados pelas forças russas, quando não dos crimes de guerra perpetrados pelas tropas de ocupação. Ao que tudo indica, o ex, e talvez próximo, presidente partilha da mesma miopia política dos movimentos de esquerda que atribuem à Otan a principal responsabilidade pela guerra, pelo fato de a Ucrânia supostamente ameaçar a segurança do seu grande e poderoso vizinho. Não apenas Lula, mas seu principal conselheiro em política externa, o ex-chanceler Celso Amorim, acreditam que a Ucrânia deveria ceder terreno e cessar do opor resistência à ocupação, para tentar obter um armistício na guerra, ou seja, insinuam que o único fator do prosseguimento do conflito seria a tentativa da Ucrânia, apoiada por países ocidentais e da Otan, de defender o seu próprio território e soberania.
Qual será o posicionamento diplomático do Brasil a partir de 2023?
Se tal orientação prevalecer no novo governo, a tomar posse em 1º de janeiro de 2023, a sua diplomacia manterá, grosso modo a mesma postura objetivamente pró-Rússia do que a que se manifesta no atual governo, que atua mais por motivos oportunistas – compra de fertilizantes, eventualmente de diesel – do que por razões político-ideológicas, como pode ser o caso de um novo governo lulopetista. Talvez até se tenha uma postura ainda pior, já que Lula, que se considera como o criador do BRIC, hoje BRICS, pretende reforçar esse grupo, criado em 2009 com objetivos essencialmente de cooperação econômica, está sendo sutilmente, ou talvez até abertamente manipulado pelas duas grandes autocracias para seus objetivos estritamente nacionais.
A China, não apenas favorece uma ampliação do BRICS para outros países – como aliás já fez, no caso da República da África do Sul, em 2011, e como pretenderia fazer agora, em relação ao outros pretendentes –, como pretende fazer do BRICS uma verdadeira organização, capaz, eventualmente, de se contrapor a outros entes plurilaterais ou multilaterais dominados ou influenciados pelos países ocidentais. A Rússia, por sua vez, violadora serial do Direito Internacional, necessita do apoio do maior número possível de países dispostos a se manterem neutros, ou mesmo complacentes com os seus muitos crimes, de maneira a contornar o rigor das sanções unilaterais impostas pelos países ocidentais e os constrangimentos que ela enfrenta nos organismos multilaterais. De certa forma tem obtido esse apoio dos demais membros do BRICS, senão a total solidariedade da China – que estabeleceu com ele, pouco antes da invasão, uma “aliança sem limites” –, pelo menos a aparente neutralidade (mas hipócrita e oportunista) dos demais membros do Brics, ou seja, Índia, África do Sul e o próprio Brasil.
Em conclusão, pode-se dizer que a restauração da credibilidade e da legitimidade da diplomacia brasileira, em seus princípios e valores tradicionais, terá de aguardar a própria reconstrução de uma política externa coerente e condizente com as próprias cláusulas de relações internacionais que figuram no Artigo 4º de sua Constituição e que integram o seu patrimônio histórico de conformidade ao Direito Internacional em todas as circunstâncias. Existem pequenas possibilidades que essa reconstrução conceitual no plano da política externa, e substantiva no terreno da diplomacia operativa, seja efetuada no futuro imediato. Mas cabe sempre relembrar quais são esses princípios e valores para que os padrões tradicionais do Itamaraty sejam algum dia restaurados em plena legitimidade ética.
Paulo Roberto de Almeida
Brasília, 4127: 29/07-31/08/2022.
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