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sexta-feira, 3 de fevereiro de 2023

Putin pretende dobrar as apostas: algumas milhares de vidas não custam nada a um ditador - Gideon Rachman (Financial Times)

 Putin promete vitória sobre Ucrânia em discurso para marcar batalha decisiva na 2ª Guerra Mundial


Putin funde guerra cultural a geopolítica e encontra pares em líderes como Orbán e Bolsonaro

Presidente da Rússia flerta com setor do Ocidente que alega se defender contra suposta decadência das sociedades
Gideon Rachman
Colunista-chefe de relações exteriores do jornal nipo-britânico Financial Times
FINANCIAL TIMES, 1º.fev.2023

Venho há algum tempo observando as guerras culturais de uma distância segura. Às vezes as questões envolvidas são interessantes. Mas o caráter virulento das discussões, que podem acabar com carreiras profissionais, me dissuadiu de participar delas.

Assim, tenho me limitado à minha seara geopolítica, evitando temas explosivos como banheiros para transexuais e optando por tópicos relativamente não controversos como o brexit ou a guerra nuclear.

Agora estou concluindo a contragosto que meu espaço seguro da geopolítica está se fundindo às guerras culturais. Veja os discursos de Vladimir Putin. Os argumentos que o líder russo apresenta para justificar a invasão da Ucrânia não se baseiam apenas na segurança ou na história.

Cada vez mais, Putin vem caracterizando a Guerra da Ucrânia como parte das guerras culturais.

No discurso de 30 de setembro em que celebrou a anexação de quatro regiões da Ucrânia, Putin acusou o Ocidente de "avançar em direção ao satanismo" e "ensinar desvios sexuais às crianças". "Estamos lutando para proteger nossos filhos e netos deste experimento que visa transformar suas almas".

Esses argumentos não se dirigem apenas ao povo russo, que talvez nem sequer seja seu alvo principal. Putin está flertando com um setor importante do Ocidente: conservadores culturais tão enojados com a alegada decadência de suas próprias sociedades que se sentem atraídos pela Rússia de Putin.

Na véspera da guerra na Ucrânia, Steve Bannon, ex-estrategista de Donald Trump, disse em seu podcast: "Putin não é ‘woke’. É anti-woke". Seu entrevistado, Erik Prince, respondeu: "Os russos ainda sabem qual banheiro usar". Mais ou menos na mesma época, Tucker Carlson, possivelmente o mais influente apresentador de TV pró-Trump nos Estados Unidos, pediu a seus ouvintes que questionassem a si mesmos: "Putin alguma vez já me chamou de racista? Ele está tentando acabar com o cristianismo?".

A chamada "guerra ao pensamento woke" hoje é absolutamente crucial à política do Partido Republicano. Nessas questões, muitos republicanos sentem mais afinidade com Putin que com democratas. Como me explicou recentemente Jacob Heilbrunn, analista arguto da América conservadora, a extrema direita republicana "enxerga Putin como defensor dos valores cristãos tradicionais e adversário dos LGBT+, dos transgêneros e do enfraquecimento dos valores masculinos responsáveis pela ascensão do Ocidente".

Em 2021, Ted Cruz repostou no Twitter um vídeo que contrastava um anúncio na TV russa convocando recrutas nas Forças Armadas, cheio de soldados musculosos e de cabeça raspada, com um anúncio semelhante americano destacando uma soldado mulher, filha de um casal de lésbicas. O senador republicano especulou: "Talvez uma Força Armada woke e emasculada não seja a melhor ideia".

A atuação desastrosa das forças russas na Ucrânia sugere uma resposta possível a Cruz: brutalizar seus soldados e tratá-los como bucha de canhão talvez não seja a melhor ideia. Mas, embora já não esteja tão em voga elogiar a Rússia de Putin, a direita dos EUA identificou outros líderes autoritários estrangeiros como seus aliados nas guerras culturais.

Em maio passado o líder húngaro, Viktor Orbán, discursou na Conferência de Ação Política Conservadora dos EUA e exortou os participantes a travarem uma luta comum contra "progressistas, os neomarxistas embriagados com o sonho woke, contra os que estão a serviço de George Soros". "Eles querem abolir o modo de vida ocidental." Orbán é visto amplamente como o líder da UE que tem mais afinidade com Putin.

A sobreposição de nacionalismo e cruzada anti-woke não é coincidência. As duas coisas têm em comum a nostalgia de um passado mitologizado de grandeza nacional e homogeneidade cultural, um tempo em que "os homens eram homens" e as mulheres e minorias tinham consciência de seu "devido lugar".

Não surpreende que trumpistas, adeptos do "America First", sintam afinidade com nacionalistas na Hungria ou na Rússia. Mas, embora as questões em pauta na Guerra da Ucrânia e na guerra aos wokes se sobreponham, estão longe de ser idênticas. O governo polonês tem uma visão semelhante à de Orbán sobre questões LGBT+, mas muito diferente no que diz respeito a Ucrânia e Rússia.

Alguns dos esforços feitos por Putin para se aproximar de supostos aliados no Ocidente têm sido no mínimo ineptos. Certa vez ele tentou comparar o destino da Rússia ao de J. K. Rowling, argumentando que seu país estaria sendo "cancelado" como a escritora britânica. Rowling respondeu asperamente que "críticas à cultura ocidental do cancelamento não devem vir de quem está massacrando civis".

Israel é um exemplo interessante de um país que tem evitado a divisão, tendendo à esquerda em questões da guerra cultural e à direita intransigente em relação ao nacionalismo. Os israelenses já foram acusados de "pinkwashing" —usar seu progressismo para acobertar a política áspera em relação aos palestinos. A abordagem poderia ser resumida como: "Ignore a Faixa de Gaza. Veja nossa parada do Orgulho Gay!".

Mas o atual governo de coalizão encabeçado por Binyamin Netanyahu está colocando em risco esse posicionamento delicado. A coalizão inclui ministros de partidos da direita religiosa que já sugeriram que médicos devem ser autorizados a recusar o tratamento de pacientes gays.

Netanyahu cultivou relações estreitas com Orbán, Putin e Jair Bolsonaro, ex-líder brasileiro conhecido por atacar gays. Mas ele também sabe que precisa conservar um relacionamento com uma Casa Branca em que os tão temidos progressistas woke estão em evidência. As guerras culturais viraram parte das lutas geopolíticas de hoje. Mas as alianças mistas nesses conflitos estão criando colaborações esdrúxulas.

Tradução de Clara Allain

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