Quando um Putin quer, um Putin briga, invade, tortura, estupra e mata
Lúcia Guimarães - Opinião
Folha de S. Paulo, 8.fev.2023
"Quando um não quer, dois não brigam," disse nenhum chefe de Estado democrático quando Hitler invadiu a Tchecoslováquia em 1939, num reino de terror que custou a vida de 345 mil.
Metáforas pedestres não prestam, de maneira geral, para discutir política externa, especialmente como referência ao maior ataque militar não provocado desde a Segunda Guerra Mundial, lançado há um ano —uma ocupação cujas atrocidades valeriam múltiplas condenações no Tribunal de Haia.
Quando ouço o presidente que teve meu voto falar sobre a imensa tragédia ucraniana, sou transportada no tempo para minha adolescência de mimeógrafos, diretórios estudantis e esquerdismo infantil.
Se a pauta da reunião apressada da sexta-feira (10), em Washington, inclui o extremismo político que gerou tentativas de golpe no Brasil e nos EUA; se os dois aliados concordam sobre a gravidade da disseminação de informação falsa, Lula e Biden têm papo para um fim de semana inteiro ao pé da aconchegante lareira de pedra em Camp David.
Nesta quarta-feira (8), um time de investigadores internacionais revelou "fortes indícios" de que Vladimir Putin autorizou a transferência para os "separatistas" em território ucraniano de armas como o míssil Buk, que derrubou o avião da Malaysia Airlines sobre a Ucrânia em julho de 2014, matando 298 civis. A carnificina ocorreu quatro meses depois da invasão e anexação da Crimeia e foi rapidamente debitada da conta do Vladimir por valorosos repórteres investigativos cooperando em vários países da Europa.
Desde a primeira invasão da Ucrânia, há nove anos, assistimos ao deplorável relativismo moral de —deixo claro— apenas uma parte da esquerda, que emoldura crises no contexto da Guerra Fria e de clichês contra o imperialismo ianque —um mal que seria combatido com o imperialismo do cosplay de tzar, ex-agente bundão da KGB, gângster e assassino em massa, o cabra que precisa continuar aboletado no Kremlin para continuar vivo.
Nesta semana, uma reportagem suprimida em julho de 2020 viu a luz do dia no site britânico Byline Times. A reportagem foi encomendada pela mãe de todas as publicações protetoras da santidade da imprensa independente, a Columbia Journalism Review, ligada à mais prestigiada escola de jornalismo nos EUA, na Universidade Columbia.
De acordo com o jornalista investigativo britânico Duncan Campbell, a reportagem, encomendada para investigar o quanto a centenária publicação de esquerda The Nation estava no bolso de Moscou, foi censurada, numa acomodação stalinista repulsiva.
O cardinalato que informa Lula sobre a invasão da Ucrânia —injustificável sob qualquer critério moral ou ideológico— quer que acreditemos que há "duas lógicas" em jogo e reserva tolerância para a anexação da Crimeia e condenação idiota a noções expansionistas da Otan usando, como argumento, até comentários do impune genocida Henry Kissinger.
O Estado brasileiro –e a diplomacia é de Estado, não de partido— nada tem a ganhar acomodando o autoritarismo fascista de Vladimir Putin, Narendra Modi ou Recep Tayyip Erdogan. O governo que trouxe Marina Silva de volta precisa parar de relativizar o papel dos assassinos da democracia.
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