O que é este blog?

Este blog trata basicamente de ideias, se possível inteligentes, para pessoas inteligentes. Ele também se ocupa de ideias aplicadas à política, em especial à política econômica. Ele constitui uma tentativa de manter um pensamento crítico e independente sobre livros, sobre questões culturais em geral, focando numa discussão bem informada sobre temas de relações internacionais e de política externa do Brasil. Para meus livros e ensaios ver o website: www.pralmeida.org. Para a maior parte de meus textos, ver minha página na plataforma Academia.edu, link: https://itamaraty.academia.edu/PauloRobertodeAlmeida.

Mostrando postagens com marcador Gelson Fonseca. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador Gelson Fonseca. Mostrar todas as postagens

domingo, 12 de fevereiro de 2023

Gelson Fonseca e o definitivo A Equidade como Fonte do Direito - Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy (Embargos Culturais, Conjur)

 Do sempre arguto Arnaldo Godoy, em sua série milenar (ou seja, mais de mil embargos) dedicada a livros com alguma, muito ou mesmo nenhuma, inclinação para o Direito.

Embargos Culturais

Gelson Fonseca e o definitivo A Equidade como Fonte do Direito

Por 

O tema das fontes é central no estudo do direito. Um estudo sério de direito comparado consiste, necessariamente, na avaliação das fontes que se pretende compreender e comparar. Por exemplo, mais importante do que atentarmos para um determinado comando do direito de tradição islâmica seria entendermos o substrato da regra, cuja origem desconhecemos. Quem a determina? Quais poderes detém quem tem força para fazê-la valer? De igual modo, uma compreensão de enciclopédia jurídica é na prática uma projeção operacional dos vários sistemas que identificam as fontes do direito. A pergunta fundamental que a experiência jurídica nos põe é essa: de onde vem a força impositiva de um determinado comando? É o fascinante assunto das fontes do direito.

É o tema mais apaixonante dos antigos manuais de introdução ao estudo do direito e de introdução ao direito civil. Esses livros são importantes na formação do jurista. Não sei se ainda são estudados. Muito já se escreveu sobre a lei, sobre a doutrina, sobre os costumes, sobre os princípios gerais do direito, sobre a jurisprudência. Esta última, enquanto fonte, parece-nos hoje justificativa de um superlativo hebraico: a jurisprudência se tornou a fonte das fontes. A jurisprudência hoje tudo fixa, tudo altera, tudo comanda. Pior. A jurisprudência engole a si mesma, o que pode se inferir em recente decisão do Supremo Tribunal Federal, no rumorosíssimo caso da anulação de decisão tributária definitiva sem modulação de efeitos (Temas 881 e 885).

No contexto do estudo das fontes do direito há um tema hoje esquecido. Refiro-me à equidade. A equidade é um conceito derivado da filosofia de Aristóteles. No Livro V da Ética a Nicômaco, o estagirita mencionou uma régua que havia na Ilha de Lesbos e que media superfícies que não eram planas. Desse modo, metaforicamente, a aferição de uma dada medida levava em conta as características específicas do que se metrificava. Ao contrário das réguas convencionais, que medem apenas superfícies planas, e que, portanto, desprezam características específicas do que se está medindo, a régua de Lesbos permitia uma aferição completa. Era o indicativo de uma medida justa. 

Do ponto de vista da hermenêutica jurídica, a aplicação da equidade resulta na mitigação dos inconvenientes que resultam da aplicação estrita dos textos, que não leva em conta peculiaridades e aspectos muito específicos de um dado problema. Não se confunde com o conceito de equidade do common law, que é uma das variáveis da estrutura jurídica desse modelo. A equidade é instrumento de oposição à aplicação irrestrita de um texto jurídico que resulte em injustiça objetiva, e que a tradição do direito romano identifica no brocardo summum jus, summa injuria, isto é, o máximo de direito, o máximo da injustiça.

Há muitos anos tive notícia de um livro que tratava monograficamente do assunto, e que não conseguia localizar. Em recente evento no Liberty Fund, em São Paulo, conheci o filho do autor do livro. Refiro-me ao livro A Equidade como Fonte do Direito, de Gelson Fonseca, importantíssimo e competentíssimo advogado militante no Rio de Janeiro, nos anos de 1950 e 1960. O livro, que é texto definitivo sobre a equidade, é uma tese para o concurso de livre-docente da disciplina de Instituições de Direito, junto à antiga Faculdade de Ciências Econômicas do Estado da Guanabara. O livro é de 1968.

Eu já conhecia e admirava o filho de Gelson Fonseca. Trata-se do embaixador Gelson Fonseca Júnior, que se destacou como diplomata de carreira entre 1968 a 2016, quando se aposentou. O embaixador Gelson, entre outros postos, foi representante permanente junto à ONU, embaixador no Chile, cônsul-geral em Madrid e no Porto. Em São Paulo, conversamos sobre a trajetória do pai, advogado militante, e sobre o livro. Constatei que havia um único exemplar à venda, na Estante Virtual. A generosidade do embaixador resultou no encaminhamento do exemplar raro, que li numa sentada. Aprendi muito.

O autor trata da equidade primeiramente sob uma perspectiva histórica. É o ponto de partida para o postulado básico da tese: a equidade encontra-se em todos os sistemas de direito. Na primeira parte do livro o autor expõe as linhas gerais da equidade na tradição judaico-cristã. Nesse sentido, explora a equidade no Antigo Testamento (com a aparente iniquidade do julgamento de Deus) e em seguida a equidade no Novo Testamento, cujo sentido é o amor. Essa comparação é também encontrada em Hans Kelsen, em interessante livro sobre a ideia de justiça nas Sagradas Escrituras.

O autor também trata do conteúdo da equidade na tradição grega e refere-se, entre outros, ao tema do direito natural, como aparece no teatro (Antígona). Nesse ponto, Gelson Fonseca (pai) concebe a equidade como uma parte efetiva do direito não escrito. O estudo da equidade na tradição romana é o ponto alto do livro. Não nos esqueçamos que os pretores decidiam por equidade, o que também afasta a premissa equivocada de que a tradição do common law seria refratária às estruturas conceituais e práticas do direito romano, em qualquer uma de suas fases.

Quanto ao direito inglês propriamente dito a equidade tem um papel determinante, quanto à função do rei de distribuir justiça, o que se desdobra ao longo da unificação de seu poder. Após 1066, explica-nos Gelson Fonseca (pai) a fixação do direito era da autoridade local. Cuida-se de um traço peculiar do feudalismo (enquanto um tipo ideal), o que se reflete na construção da topografia e das peças do jogo de xadrez. 

Na parte final o autor estuda a equidade entre os autores nacionais, a exemplo de Pontes de Miranda, Vicente Rao, Carlos Maximiliano, Caio Mário, Serpa Lopes e Washington de Barros Monteiro. Com vários exemplos tomados do direito positivo então vigente (o livro é de 1968), o autor concluiu que a equidade é fonte formal do direito, especialmente na sociedade moderna, "em que a lei é concebida sob o império da razão, como norma técnica do governo, em que ela disciplina relações sociais".

Pelo que entendi, o concurso não teria prosperado, por razões de formalidades e de procedimento. Ficou o livro: 150 páginas da mais exuberante forma de doutrina, hoje tão rara e tão macunaímica. 

 é advogado em Brasília (Hage e Navarro), professor livre-docente pela USP, doutor e mestre pela PUC-SP, professor titular mestrado-doutorado na Uniceub (Brasília) e professor visitante (Boston, Nova Déli, Berkeley, Frankfurt e Málaga).


sexta-feira, 10 de fevereiro de 2023

Gelson Fonseca: Qual é a principal regra que o Brasil violou, segundo o diplomata mais citado em estudos acadêmicos - Diego Viana (Valor)

 Qual é a principal regra que o Brasil violou, segundo o diplomata mais citado em estudos acadêmicos


“O Brasil tem 200 anos de tradição diplomática sólida. Vai recuperar seu lugar, usando suas vantagens no meio ambiente, no comércio”, diz Gelson Fonseca Junior

Por Diego Viana — Para o Valor, de São Paulo
10/02/2023 05h02  Atualizado há 2 horas

Após duas décadas em que as instituições multilaterais ganharam fôlego nas relações entre os países, com foros globais de tomada de decisão, como as conferências do clima, e debates no âmbito da Organização das Nações Unidas (ONU) e da Organização Mundial do Comércio (OMC), a ascensão da China como nova grande potência pode estabelecer uma nova bipolaridade no mundo, justamente quando os problemas do cenário internacional são mais claramente globais, a começar pela emergência climática.

Uma nova crise do multilateralismo seria apenas um novo capítulo de uma história composta de crises, aponta o embaixador Gelson Fonseca Junior, diretor do Centro de História e Documentação Diplomática (CHDD) da Fundação Alexandre de Gusmão (Funag), ligada ao Ministério das Relações Exteriores. Com todas as dificuldades, ferramentas multilaterais estão disponíveis e funcionam, diz. Os atritos entre americanos e chineses são decisivos para o futuro das instituições multilaterais, mas há temas em que os avanços são possíveis, sobretudo o meio ambiente. Nesse cenário, o Brasil pode ter posição de destaque, graças em parte a sua tradição diplomática realista.

Em janeiro, o Centro Brasileiro de Relações Internacionais (Cebri) e a Funag publicaram o livro “O Brasil no mundo: Estudos sobre o pensamento de Gelson Fonseca Junior”, com contribuições de diplomatas e professores sobre a obra do embaixador. Entre outros cargos, Fonseca foi representante permanente do Brasil na ONU de 1999 a 2003. É autor de obras que são referência no estudo das relações internacionais no Brasil, como o livro “A legitimidade e outras questões internacionais” (Paz e Terra, 1998), e dedicou diversos artigos à questão do multilateralismo. É o diplomata mais citado em estudos acadêmicos em relações internacionais no Brasil.

Valor: Um dos principais temas de sua trajetória é o multilateralismo. Hoje, com a escalada do atrito entre EUA e China, ele está em risco?
Gelson Fonseca Junior: Não me lembro de um momento em que o multilateralismo não estivesse em crise. A ONU foi criada com a expectativa de ter um grande papel na segurança internacional, mas isso foi logo antes de estalar a Guerra Fria. Então ela cumpriu esse papel em alguns momentos mais, em outros menos. Nos anos 90, pensávamos que, sem Guerra Fria, a ONU deslancharia. De fato, foram feitas conferências globais e criou-se um padrão de ação multilateral. Mas persistiu o problema do jogo de poder. Na Guerra Fria, os instrumentos de manutenção da paz eram prejudicados pela disputa global, mas as instituições multilaterais funcionaram. Muita coisa aconteceu, como a descolonização. Os países em desenvolvimento se juntaram para propor uma nova ordem econômica. Hoje, a questão de como vai evoluir a relação entre EUA e China é que vai definir o futuro do multilateralismo. Vai haver um confronto? Eles vão se acomodar? Esses países têm uma relação íntima na área financeira e na tecnológica. É possível desligar essa relação e partir para o confronto? O que as instituições multilaterais podem fazer para atenuar o conflito, que já se manifesta em protecionismo tecnológico? As respostas, quando vêm, envolvem muita torcida. Quem deseja a paz olha para o lado positivo: a China investe nos EUA, os dois ganham com as trocas. O quadro de instituições multilaterais está funcionando. Mas nada disso invalida a armadilha de Tucídides: a China cresce e os EUA querem manter a hegemonia, o que leva ao confronto. O militar pode ser descartado, porque daria cabo de ambos. Aliás, de nós também.

Valor: Um mundo bipolar fortalece a capacidade de negociação dos países emergentes?
Fonseca: Hoje, um problema ao falar de emergentes é: existe um pleito em comum dos emergentes? Nos anos 60, era fácil criar um grupo de emergentes, que partiam de realidades comuns e tinham demandas semelhantes. Hoje, esses países são muito diversos e os interesses idem. Não se pode ter política comum sem uma base comum. As posições estratégicas também mudam muito. Alguns são mais próximos da China, outros ligados aos EUA. E a agenda internacional ficou muito fragmentada. Qual seria a plataforma comum dos emergentes no meio ambiente? E em direitos humanos? Na reforma do Conselho de Segurança? Esse é o dilema. Em matéria de meio ambiente, tem algumas plataformas comuns. Nos direitos humanos, não. No caso do comércio, é complicado, porque temos problemas com a Índia, por exemplo.

Valor: E a governança global? O clima, por exemplo, exige um alto nível de articulação.
Fonseca: Temas como clima e saúde são por natureza globais. Mas outros também, como a aviação comercial e as telecomunicações. Alguns podem ser resolvidos tecnicamente, outros são mais complicados. Quando a humanidade vai perceber que é preciso ter regras mais constrangedoras em matéria ambiental? Para que houvesse ONU, morreram 40 milhões de pessoas. Só aí se decidiu avançar no sistema global de governança. Mas uma vez iniciado, é difícil controlar o processo. Entram questões políticas e de interesse. No clima, apesar das dificuldades, existe a consciência comum de que é preciso agir. Há pressão social e científica. Quando se chega ao plano da política, vemos que há perdas e renúncias, os países ricos não querem desembolsar tanto quanto os pobres exigem, e por aí vai.

Valor: O tema da governança revive a antiga questão da paz perpétua. É um beco sem saída?
Fonseca: O problema da governança global é imaginar uma racionalidade que resolva problemas irracionais. Hoje, instrumentos de governança existem. O primeiro é a ONU, cuja atuação é limitada. O problema não está nos instrumentos. Está na criação de vontade política para que os instrumentos funcionem. Por que a regulação do tráfego aéreo funciona? E por que os instrumentos da segurança não funcionam? Já a pergunta dos autores antigos, em seus projetos de paz perpétua, era: por que há guerras? Era o grande tema da humanidade. Ainda é, vide a Ucrânia. Teoricamente, o conselho de segurança poderia se reunir e mandar a Rússia voltar atrás. Mas pode? Pode no caso do Iraque. As instituições multilaterais têm sempre uma reserva de soberania. Na Carta da ONU, consta que os Estados têm o direito de atuar por fora em situações de legítima defesa. Então eles inventam uma razão para atacar uns aos outros invocando legítima defesa. Não tem como desligar um processo internacional da realidade do poder. As questões são levaas adiante se houver uma liderança que queira levar adiante. Quem lidera as negociações do clima? Não tem um país que seja o dono da história e possa se impor. É preciso articular, e esse é um processo difícil.

Valor: Lula assume com a mesma ambição do primeiro mandato: dar protagonismo global ao Brasil. O mundo atual não é o de 2003. Pode haver barreiras para esse protagonismo?
Fonseca: Por seu tamanho e a importância que temos em áreas como o meio ambiente, o Brasil é sempre protagonista. O mundo é outro, mas um lugar de importância para o Brasil está reservado. Nossa capacidade de mobilização é forte e conhecida na agenda multilateral, na OMC, na ONU. A expectativa de que o Brasil voltasse a ter papel relevante era natural. Somos protagonistas na cena internacional, não como superpotência, nem potência secundária, mas somos. Como, então? Tem um tipo de poder em que o Brasil se destaca. Não temos poder militar, nem ideológico, nem econômico, ou só em algumas áreas. Mas temos um poder diplomático. A tradição brasileira é de uma visão bem realista de como o mundo é e do que podemos fazer nele. E temos um comportamento diplomático que nos ajuda nesses processos de negociação. Tudo é negociado e o Brasil sabe negociar.

Valor: O período em que o Brasil abdicou desse realismo deixa cicatrizes?
Fonseca: Foi um período curto, em que se infringiram não só tradições da diplomacia brasileira, mas regras da diplomacia em geral. Um colega dizia que só há uma regra na diplomacia: seja gentil com as pessoas. E deixamos de fazer isso por alguns anos. Fechar a embaixada em Caracas foi inusitado. Nem os americanos, que impõem sanções a Cuba, deixaram de ter um escritório em Havana. Mas o Brasil tem 200 anos de tradição diplomática sólida. Vai recuperar seu lugar, usando suas vantagens no meio ambiente, no comércio e outras. Entre os parceiros, existe a torcida para que o Brasil volte ao protagonismo. Líderes da Europa, dos EUA, da América Latina, querem o Brasil participando das decisões. Os vizinhos querem que o Brasil ajude a consertar o Mercosul, a aumentar as relações comerciais desses países, a organizar uma frente comum de atuação.

Valor: Em 1981, sua tese no Itamaraty defendia a aproximação da diplomacia com o mundo acadêmico. Qual foi sua motivação?
Fonseca: Estava claro que a democratização iria acontecer. A pergunta era: como o Itamaraty vai viver a nova situação? Minha geração começou na ditadura e pensava a política externa na perspectiva dela. Nós nos preocupávamos com as limitações impostas por um governo militar. Meu primeiro chefe foi João Augusto de Araújo Castro, que tinha sido ministro de João Goulart e mantinha uma boa relação com jornalistas. E trabalhei com Ítalo Zappa, para quem o que dava legitimidade à política externa era o modo como ela era passada à sociedade. Mesmo na ditadura, o Itamaraty tinha uma relação com a imprensa diferente dos outros ministérios. Mas fui olhar para a relação para a universidade, onde, nos anos 80, havia um grupo muito pequeno, mas visivelmente de muita qualidade, estudando relações internacionais na universidade. Até então, não era comum que pessoas de formação acadêmica estudassem as relações internacionais. Meu chefe, Ronaldo Sardenberg, começou a interlocução com esse grupo. Hoje, o campo está consolidad.


terça-feira, 7 de janeiro de 2020

As Relações Internacionais do Brasil aos 100 anos da disciplina - Eduardo Uziel, Gelson Fonseca

Notas sobre o campo das relações internacionais no Brasil no centésimo aniversário da disciplina
Estudios Internacionales, 2019
Gelson Fonseca

terça-feira, 18 de junho de 2019

Relações Internacionais, Política Externa e Diplomacia Brasileira - pensamento e ação - Celso Lafer

GRUPO DE ANÁLISE DA CONJUNTURA INTERNACIONAL

É com grande satisfação que enviamos o presente convite ao próximo encontro do GACInt, a realizar-se no dia 26 de junho, quarta-feira, das 10h às 12h, na sala da Congregação do Instituto de Relações Internacionais (IRI), 2º andar, Cidade Universitária, São Paulo, para o 

Lançamento da obra 
"Relações Internacionais, Política Externa e Diplomacia Brasileira - pensamento e ação” 
apresentada pelo autor 
Prof. Celso Lafer
com comentários do prefaciador 
Emb. Gelson Fonseca Jr.  

Contamos com sua qualificada presença e engajamento ativo no debate que se seguirá às falas dos oradores. 
Cordialmente,

           Alberto Pfeifer                          Stefan Barenboim-Salej
           Coordenador                               Coordenador


Transcrevo o texto que preparei para apresentar o livro e que virou posfácio:

“A educação de Celso Lafer: um reconhecimento ao mestre”, Brasília, 19 julho 2018, 9 p. Discussão geral da obra em publicação pela Funag de Celso Lafer, Relações internacionais, política externa e diplomacia brasileira: pensamento e ação, com base num paralelo intelectual com a obra de Henry James, The Education of Henry Adams: an autobiography (New York: The Modern Library, 1999), e alguma referência às Confissões de Santo Agostinho.

A educação de Celso Lafer: um reconhecimento ao mestre

Paulo Roberto de Almeida
Diretor do Instituto de Pesquisa de Relações Internacionais, IPRI-Funag/MRE.
in: Celso Lafer, Relações internacionais, política externa e diplomacia brasileira: pensamento e ação (Brasília: Funag, 2018, 2 vols., 1437 p.; lo. vol., ISBN: 978-85-7631-787-6; 762 p.; 2o. vol., ISBN: 978-85-7631-788-3, 675 p.), 2o. vol., p. 1335-1347.


Se as Confissões de Santo Agostinho – que ocupam um lugar central na cultura cristã do Ocidente latino, ao dar início à tradição intelectual da autobiografia consciente e deliberada – apresentam essa característica de, pela sua própria natureza confessional, terem influenciado fortemente, segundo Stéphane Gioanni (L’Histoire, junho de 2018), o subjetivismo moderno, A Educação de Henry Adams inaugura, por sua vez – como construção consciente e deliberada de uma trajetória de vida tão confessional quanto as memórias do bispo da velha Hipona –, a moderna autobiografia intelectual, combinando objetivismo político com algum subjetivismo filosófico. Mais do que uma história de vida, ou uma simples memória, o livro de Henry Adams representa, mais exatamente, um grande panorama de história intelectual dos Estados Unidos entre a Guerra Civil e a Grande Guerra, um empreendimento talvez sem paralelo, até o início do século XX, na tradição ocidental das biografias “confessionais”.
Setembro de 2018 marca o centenário da primeira publicação completa da obra do bisneto de John Adams e neto de John Quincy Adams, dois antecessores presidentes. Sua educação primorosa, objeto da autobiografia (escrita na terceira pessoa), aproxima-se, em certa medida, da sólida formação intelectual de um dos maiores representantes da vida acadêmica e diplomática do Brasil: Celso Lafer. Cem anos depois da publicação daquela autobiografia pioneira, parece inteiramente pertinente seguir a “educação” de Celso Lafer, três vezes ministro, sendo duas como chanceler, chefe de missão em Genebra, professor emérito da USP, articulista consagrado, mestre de várias gerações de estudiosos de relações internacionais e de direito.
A melhor forma de fazê-lo é por meio de uma compilação de seus muitos escritos sobre as relações internacionais, a política externa e a diplomacia brasileira, textos até aqui dispersos em um grande número de veículos impressos e digitais. A trajetória intelectual de seu autor se confunde com a própria evolução dos estudos e da prática das relações exteriores do Brasil no último meio século, mas estes dois volumes reproduzem apenas uma pequena parte de sua gigantesca produção acadêmica, profissional ou jornalística, deixando de integrar, por especialização temática nas áreas do título, uma outra parte essencial de suas atividades intelectuais, que cobrem os terrenos literário, cultural e mesmo de política doméstica.
A colaboração que pude prestar na montagem e revisão da presente coleção de textos – artigos, palestras, discursos, conferências, capítulos de livros – de Celso Lafer constituiu, ao longo do ano de 2018, uma das maiores gratificações intelectuais de minha relativamente curta trajetória como diretor do Instituto de Pesquisa de Relações Internacionais, (IPRI), um modesto think tank, subordinado, como o Centro de História e Documentação Diplomática (CHDD) – seu contraparte do Rio de Janeiro –, à Fundação Alexandre de Gusmão (Funag), esta por sua vez vinculada ao Ministério das Relações Exteriores (MRE). Digo uma das maiores gratificações porque, justamente, dois de meus critérios na organização de eventos e publicações no IPRI são justamente esses: tudo o que for intelectualmente gratificante e inovar sobre a agenda “normal”.
Ainda antes de assumir formalmente a direção do IPRI, pude colaborar na montagem e realização de um seminário, de uma exposição e de um livro sobre o patrono da historiografia brasileira, o também diplomata, Francisco Adolfo Varnhagen: Varnhagen (1816-1878): diplomacia e pensamento estratégico (Brasília: Funag, 2016). Nesse primeiro empreendimento junto ao IPRI ofereci um estudo sobre o “pensamento estratégico de Varnhagen: contexto e atualidade”, no qual tive a oportunidade e o lazer de atualizar suas propostas de “reforma do Brasil”, apresentadas pela primeira vez em 1849, no Memorial Orgânico, documento magistralmente retirado das cinzas pelas mãos do presidente do IHGB, o historiador Arno Wehling, um especialista e também admirador da obra historiográfica de Varnhagen.
Logo em seguida, dediquei-me a retirar das “cinzas” de um injusto ostracismo político um outro colega diplomata, o economista de formação Roberto Campos, por meio de uma obra coletiva feita inteiramente à base da admiração de amigos: O Homem que Pensou o Brasil: trajetória intelectual de Roberto Campos (Curitiba: Appris, 2017). O livro, entretanto, por razões de oportunidade e de cálculo político, não foi publicado pela Funag, tanto quanto um outro, sobre o historiador e diplomata Oliveira Lima. Em seguida, aproveitando o desafio da publicação da magistral Fotobiografia de Oswaldo Aranha por seu neto, Pedro Corrêa do Lago (Rio de Janeiro: Capivara, 2017), e ajudado pela perícia documentalista de seu outro neto, Luiz Aranha, decidi montar, com a preciosa e estratégica ajuda do historiador Rogério de Souza Farias, uma compilação praticamente completa dos escritos de relações internacionais e de diplomacia brasileira produzidos ao longo de trinta anos pelo grande estadista gaúcho, o segundo maior chanceler brasileiro do século XX depois de Rio Branco, segundo Rubens Ricupero: “Oswaldo Aranha dominou a política exterior dos meados do século XX como Rio Branco o fizera na sua primeira década. Depois do Barão, ninguém mais alcançou, dentro e fora do país, o prestígio e a influência de Aranha, nenhum outro dirigiu a diplomacia com tanto acerto em tempos perigosos e de escolhas difíceis.” (Apresentação de Rubens Ricupero a: Oswaldo Aranha: um estadista brasileiro; Brasília: Funag, 2017, 1o. vol.).
A coletânea Aranha preenche, sem dúvida alguma, uma lacuna na historiografia brasileira da diplomacia contemporânea, ao recolher discursos, entrevistas, cartas e escritos diversos do político rio-grandense convertido em estadista de estatura mundial. Ela cobre momentos cruciais das relações internacionais e bilaterais do Brasil em pleno século XX, quando a diplomacia esclarecida de Aranha influenciou decisivamente a política do governo Vargas ao adotar a opção correta na voragem da Segunda Guerra Mundial, aliás a única concebível para um discípulo de Rui Barbosa, no formidável embate que se travou entre as democracias do Ocidente, capitaneadas por Churchill e Roosevelt, e os totalitarismos liderados pelos fascistas da Alemanha, Itália e Japão.
Esse trabalho de garimpo documental e de lapidação redacional dos escritos dispersos de Oswaldo Aranha, esteve, provavelmente, na origem da idealização, organização e montagem da obra que agora se apresenta: uma compilação seletiva dentre os muitos, incontáveis escritos até aqui dispersos de Celso Lafer, primeiro reunidos e organizados por ele mesmo, com a ajuda de Carlos Eduardo Lins da Silva, depois revistos e padronizados por mim, ao longo de muitas noites de indescritível prazer intelectual. Não sei se por pura emulação historiográfica, se por alguma secreta indução bibliográfica e documental, ou se por um evidente paralelismo diplomático, Celso Lafer e eu mesmo cogitamos, quase simultaneamente, que depois da “compilação Oswaldo Aranha” estava mais do que na hora de também pensarmos numa “compilação Celso Lafer”. Material, aliás abundante, não faltava para esse novo empreendimento.
A decisão foi então tomada em vista da existência, dispersa até aqui, dos seus muitos escritos de relações internacionais, de política externa e de diplomacia do Brasil, que constituem, ao mesmo tempo, um grande panorama do cenário mundial, político e econômico, nas últimas cinco décadas. Esses textos reproduzem meio século de ideias, reflexões, pesquisas, andanças e um exercício direto de responsabilidades à frente da diplomacia brasileira, em duas ocasiões, e, através dela, de algumas funções relevantes na diplomacia mundial, como a presidência do Conselho da OMC, assim como em outras instâncias da política global. Celso Lafer esteve à frente de decisões relevantes em alguns foros decisivos para as relações exteriores do Brasil, na integração regional, no comércio mundial, nos novos temas do multilateralismo contemporâneo.
Esta obra, construída ao longo de alguns meses de garimpo documental e de lapidação formal, a partir de um aluvião torrencial de pepitas preciosas que vinham sendo carregadas pelo fluxo heteróclito de publicações no decorrer de várias décadas, apresenta, finalmente, o que se espera seja uma obra de referência e uma contribuição essencial ao conhecimento da diplomacia brasileira e da vida intelectual em nosso país, a partir dos anos 1960 até aqui. Suas qualidades intrínsecas, combinando sólida visão global e um conhecimento direto dos eventos e processos que o autor descreve e analisa, representam um aporte fundamental a todos os estudiosos de diplomacia e de relações internacionais do Brasil, uma vez que reúne os relevantes escritos do mais importante intelectual desse campo, com a vantagem dele ter tido a experiência prática de conduzir a diplomacia brasileira em momentos significativos da história recente. As “questões polêmicas” da quarta parte reúnem alguns de seus artigos de jornal, nos quais exerceu um olhar crítico sobre a “diplomacia” implementada a partir de 2003, rompendo pela primeira vez a tradição secular da política externa brasileira, no sentido de representar o consenso nacional em torno dos interesses do país, para adotar o sectarismo míope de um partido que tentou monopolizar de forma canhestra (e corrupta) o sistema político.

Henry James, ao escrever em 1907 a sua autobiografia intelectual, admitia, indiretamente – segundo o prefácio de Henry Cabot Lodge à obra finalmente publicada em setembro de 1918 pela Massachusetts Historical Society –, que a grande ambição do neto e bisneto de presidentes era a de “completar as Confissões de Santo Agostinho”. Mas, diferentemente do pai da Igreja Cristã, que, como grande intelectual, trabalhou a partir de uma multiplicidade para a unidade de ideias em torno da fé cristã, seu moderno êmulo americano reverteu a metodologia, passando a trabalhar a partir da unidade para a multiplicidade de ideias (The Education of Henry Adams: an autobiography, p. xxxiv, da edição de 1999 da Modern Library). Isso talvez porque, à diferença da angustiada defesa de uma rígida crença nos dogmas cristãos, exibida no quarto século da nossa era pelo pai intelectual da Igreja Católica, Henry Adams ostentava o agnosticismo científico típico dos primeiros darwinistas sociais do final do século XIX.
Celso Lafer, herdeiro intelectual de grandes pensadores judeus do século XX, é, provavelmente também, um agnóstico pragmático, combinando destreza acadêmica e tino empresarial, como sempre foi a outra vertente de seus familiares e de um grande antecessor na diplomacia, seu tio Horácio Lafer, ministro da Fazenda e das Relações Exteriores na República de 1946. O modelo da autobiografia de Henry Adams, com suas três dezenas de capítulos seguindo a trajetória do ilustre herdeiro dos Adams nas grandes capitais do mundo ocidental – Washington, Londres (seu pai foi ministro na Corte vitoriana), Berlim, Paris (a Exposição Universal de 1900), Roma e muitas outras cidades dos Estados Unidos e da Europa–, poderia servir, eventualmente, para retraçar a carreira intelectual e diplomática de Celso Lafer, que também percorreu as grandes capitais da diplomacia mundial, como intelectual ou ministro das Relações Exteriores.
O jovem Adams, ao acompanhar como secretário o seu pai, designado em 1861 ministro plenipotenciário de Abraham Lincoln junto à corte da rainha Vitória, construiu uma educação “diplomática” no centro do que era então o maior império do planeta; ele pode encontrar-se com líderes britânicos da estatura de um Palmerston ou Gladstone, assim como, em suas andanças pela Europa, com “anarquistas” bizarros, ao estilo de um Garibaldi. Celso Lafer, por sua vez, construiu sua educação diplomática na observação direta do que foi feito por seu tio, Horácio Lafer, antes como ministro da Fazenda do Vargas dos anos 1950, depois à frente do Itamaraty, numa segunda fase do governo JK, dedicando a ambos trabalhos analíticos posteriores que figuram com realce em sua bibliografia. Da gestão do tio na política externa, destacou sobretudo sua ação no campo econômico: acordos comerciais, integração regional e aproximação à Argentina.
Essa educação continuou nos anos seguintes, de forma não surpreendente nos mesmos grandes temas focados anteriormente e, como Henry James, no contato direto com personalidades de realce na cena mundial; percorrendo as páginas dos dois volumes de Celso Lafer é possível registrar alguns dos grandes nomes do estadismo mundial, com quem Celso Lafer encontrou-se ou conviveu ao longo dessas décadas. Ele discorre, sempre de modo empático, mas penetrante, sem dispensar aqui e ali o bom humor, sobre líderes estrangeiros como Mandela, Shimon Peres, Koffi Annan, Antonio Guterres e, retrospectivamente, sobre o êmulo português do embaixador Souza Dantas, o cônsul Aristides de Souza Mendes, um justo entre os injustos do salazarismo. Dentre os diplomatas distinguidos do Brasil figuram os nomes de Saraiva Guerreiro e de Sérgio Vieira de Mello, para mencionar apenas dois nessa categoria.
Comparecem igualmente vários colegas e autores de renome, intelectuais da academia ou da diplomacia, como José Guilherme Merquior, Sergio Paulo Rouanet, Gelson Fonseca Jr., Synesio Sampaio Goes, Rubens Ricupero, Gilberto Dupas, Celso Furtado, Miguel Reale, Fernando Henrique Cardoso, entre os brasileiros. Estudiosos  estrangeiros, alguns conhecidos pessoalmente, aparecem sob os nomes de Karl Deutsch, Raymond Aron, Andrew Hurrell, Octavio Paz, Morgenthau, Kissinger e Prebisch. Suas resenhas e prefácios registram autores conhecidos na área, a exemplo de Sérgio Danese, Fernando Barreto, Gerson Moura e Eugenio Vargas Garcia, contemplados com extensas notas publicadas na revista Política Externa, da qual foi um dos responsáveis, junto com Gilberto Dupas e Carlos Eduardo Lins da Silva, durante vários anos.

A educação de Celso Lafer se fez, primordialmente, em intensas leituras e eventuais contatos, com grandes nomes do pensamento histórico, filosófico e político da tradição ocidental, desde mestres do passado remoto – Tucídides, Aristóteles, Grócio, Vico, Hume, Bodin, Hobbes Montesquieu, Kant, Tocqueville, Charles de Visscher e outros – até mestres do passado recente, inclusive alguns deles encontrados em carne e osso: Hans Kelsen, Carl Schmitt, Isaiah Berlin, Hanna Arendt, Norberto Bobbio, Raymond Aron, Hedley Bull, Martin Wight, Albert Hirschman, Stanley Hoffmann e muitos outros. Um desses “grandes mestres” aparece apenas marginalmente, ou episodicamente nos textos aqui coletados: Karl Marx, objeto de várias referências indiretas no exame da literatura especializada. Henry James, de seu lado, faz, em sua autobiografia, diversas referências ao pai do “socialismo científico” e afirmou ter seriamente considerado, junto com as teses ousadas de Darwin, os argumentos defendidos em O Capital, embora não demonstrasse entusiasmo com os anúncios precursores quando à derrocada do capitalismo.
James, na verdade, demonstra certo esnobismo em relação à maior parte dos teóricos que digeriu, em Harvard ou em suas leituras posteriores. Ao referir-se, por exemplo, à necessidade de conhecer os ensinamentos de Marx, continua dizendo que o confronto também devia ser feito em relação à “satânica majestade do livre comércio de John Stuart Mill” (p. 72). Mais adiante, ao fazer o balanço de sua visita à Exposição Universal de Paris, em 1990, que representava o triunfo do capitalismo da belle Époque, ele revela que “tinha estudado Karl Marx e suas doutrinas da história com profunda atenção, mas que não podia aplicá-las a Paris” (p. 379). No caso de Lafer, não há menção a algum estudo sério da doutrina marxista, mas as referências não faltam, seja por meio de Raymond Aron, seja através de obras de Hélio Jaguaribe.
Ambos, porém, Henry James e Celso Lafer, exibem o mesmo compromisso incontornável com os princípios do liberalismo político e dos governos democráticos. James, ao conviver mais longamente com o sistema parlamentar inglês, considerava que “o governo de classe média da Inglaterra constituía o ideal do progresso humano” (p. 33). Por classe média, ele queria dizer, obviamente, burguesia, em oposição à velha aristocracia de títulos, que não existia no seu país natal; ela estava surgindo, em sua própria época, mas apenas a partir do exibicionismo ostensivo dos “barões ladrões”, enobrecidos financeiramente a partir da idade dourada do capitalismo americano. Celso Lafer, do seu lado, sempre foi um liberal doutrinal e filosófico, não obstante seu alinhamento pragmático com a socialdemocracia na política brasileira, no que, aliás, ele combina com um de seus mestres, o jurista e intelectual italiano Norberto Bobbio.

Mais de uma centena de textos comparecem nos dois volumes, organizados em cinco partes bem identificadas, embora algumas repetições sejam detectáveis aqui e ali. O conjunto dos escritos constitui, sem dúvida alguma, um completo curso acadêmico e um amplo repositório empírico em torno dos conceitos exatamente expressos no título da obra: Relações internacionais, política externa e diplomacia brasileira: pensamento e ação. Os artigos, ensaios, conferências e entrevistas podem servir, em primeiro lugar, a todos os estudantes desses campos, não restritos, obviamente, aos próprios cursos de Relações Internacionais, mas indo ao Direito, Ciência Política, Filosofia, Sociologia, História, além de outras vertentes das Humanidades. Mas, os diplomatas profissionais e os demais operadores consolidados trabalhando direta ou indiretamente nessas áreas também encontrarão aqui um rico manancial de ideias, argumentos e, mais importante, “recapitulações” em torno de conferências, negociações, encontros bilaterais, regionais ou multilaterais que figuraram na agenda internacional do Brasil nas últimas décadas.
A diversidade de assuntos, inclusive em relação aos próprios personagens que aqui comparecem, em “diálogos”, homenagens, obituários ou relatos de encontros pessoais, possuem um inegável vínculo entre si, pois todos eles têm a ver, de perto ou de longe, com a interface externa do Brasil e com os voos internacionais do autor. Os textos não esgotam, obviamente, o amplo leque de interesses e de estudos do autor, que se estende ainda aos campos da literatura e dos assuntos culturais em geral, trabalhos que figuram em diversos outros livros publicados de Celso Lafer, vários monotemáticos e alguns na categoria de coletâneas, como por exemplo os três volumes publicados pela Atlas, em 2015, enfeixados sob o título comum de Um percurso no Direito do século XXI, mas voltados para direitos humanos, direito internacional e filosofia e teoria geral do direito. A sua produção variada, acumulada intensa e extensivamente em tão larga variedade de assuntos, permite o mesmo tipo de “assemblagem” ocasional efetuada na presente obra em dois volumes. Apresentando, por exemplo, seus escritos focados em Norberto Bobbio: trajetória e obra (São Paulo: Perspectiva, 2013), Celso Lafer começa por lembrar justamente essa prática do mestre italiano:
Bobbio, ao fazer, em 1994, um balanço de sua trajetória, observou que a sua obra caracterizava-se por livros, artigos, discursos sobre temas diversos, ainda que ligados entre si [nota: a referência aqui é à obra de Bobbio, O Futuro da Democracia]. Parte muito significativa e relevante da sua obra é constituída por volumes que são coletâneas de ensaios, reunidos e organizados em função dos seus nexos temáticos. Esses volumes de ensaios cobre os diversos campos do conhecimento a que se dedicou: a teoria jurídica, a teoria política, a das relações internacionais, a dos direitos humanos e o vinculo entre política e cultura, rubrica que abrange a discussão do papel do intelectual na vida pública. Esses volumes são representativos do contínuo work in progress da trajetória intelectual de Bobbio, esclarecendo como, no correr dos anos, por aproximações sucessivas, foi aprofundando a análise dos temas recorrentes do seu percurso de estudioso. (p. 23)

A partir da transcrição desse introito se poderia perfeitamente dizer: Ecce homo (talvez menos na linhagem nietzscheiana, e mais na do original bíblico). A afirmação se aplica inteiramente à própria trajetória acadêmica e profissional de Celso, ao seu percurso intelectual, à sua visão do mundo, com uma vantagem adicional sobre o jurista italiano, devido ao fato de Lafer ter sido bem mais do que um “simples professor”, ao ter exercido por duas vezes (até aqui) o cargo de ministro das relações exteriores (e uma vez o de ministro do desenvolvimento e de comércio exterior), funções certamente mais relevantes, para o Brasil, do que o cargo largamente honorífico concedido a Norberto Bobbio, já quase ao final da sua vida, de senador da República italiana.

O percurso de Celso Lafer, no Brasil e no mundo, sua postura filosófica, de defensor constante dos direitos humanos e da democracia política, suas aulas na tradicional Faculdade de Direito (e em muitas outras conferências em universidades e várias instituições em incontáveis oportunidades), sua luta pela afirmação internacional do Brasil nos mais diversos foros abertos ao engenho e arte da diplomacia nacional, todos esses aspectos estão aqui refletidos em mais de uma centena de trabalhos carinhosamente reunidos sob a direção do próprio mestre e oferecidos agora ao público interessado. Não apenas o reflexo de uma vida dedicada a construir sua própria trajetória intelectual, esses textos são, antes de qualquer outra coisa, aulas magistrais, consolidadas numa obra unitária, enfeixada aqui sob a tripla dimensão do título do livro.
Mais do que uma garrafa lançada ao mar, como podem ser outras coletâneas de escritos dispersos oferecidos a um público indiferenciado, a centena de “mensagens laferianas” aqui reunidas constituem um útil instrumento de trabalho oferecido aos profissionais da diplomacia, ademais de ser uma obra de referência aberta à leitura dos pesquisadores, dos professores e dos estudantes dessas grandes áreas de estudos e de trabalho acadêmico. Ao disponibilizar essa massa de escritos da mais alta qualidade intelectual ao grande público, esta obra faz mais do que reunir estudos dispersos numa nova coletânea de ensaios conectados entre si: ela representa, também e principalmente, um tributo de merecido reconhecimento ao grande mestre educador que sempre foi, e continuará sendo, Celso Lafer.
Vale!

Paulo Roberto de Almeida
Brasília, 19 de julho de 2018