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Este blog trata basicamente de ideias, se possível inteligentes, para pessoas inteligentes. Ele também se ocupa de ideias aplicadas à política, em especial à política econômica. Ele constitui uma tentativa de manter um pensamento crítico e independente sobre livros, sobre questões culturais em geral, focando numa discussão bem informada sobre temas de relações internacionais e de política externa do Brasil. Meus livros podem ser vistos nas páginas da Amazon. Outras opiniões rápidas podem ser encontradas no Facebook ou no Threads. Grande parte de meus ensaios e artigos, inclusive livros inteiros, estão disponíveis em Academia.edu: https://unb.academia.edu/PauloRobertodeAlmeida

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quinta-feira, 22 de maio de 2025

O que se passa ao Sul: Argentina - Joaquim Levy

O que se passa ao Sul 

Joaquim Levy 

As principais mudanças do governo Milei, as que farão mais diferença para o país, são realmente microeconômicas. 

Faz um ano e meio que Javier Milei foi eleito presidente da Argentina. A evolução da inflação e a liberalização do câmbio têm sido bem discutidas, mas mudanças microeconômicas profundas ainda não ganham tanta atenção, apesar de elas provavelmente serem as que farão mais diferença para o país. A gestão macro do governo Milei calcou-se em reajustes dos gastos do governo central abaixo da inflação, principalmente em pessoal e previdência social, possibilitando superávit primários e diminuindo a pressão sobre os juros, que ainda continuam abaixo da inflação. Já os principais impostos foram mantidos, com pequena redução temporária naqueles sobre as exportações, e bondades pré-eleitorais, como redução do IR de profissionais, revertidas. Essas ações têm paralelos abrandados no Brasil: ajustar certos gastos abaixo da inflação, reforçando o fiscal, foi um ingrediente “secreto” para o sucesso do Plano Real, diminuindo a pressão inflacionária na transição da moeda, antes de os juros ganharem proeminência na manutenção do câmbio e controle da demanda doméstica. Robustecer a arrecadação foi chave para o equilíbrio macroeconômico quando o câmbio brasileiro flutuouem1999. Os juros reais negativos ajudaram a dissolver (“licuar”) a dívida do Banco Central argentino, que foi sendo transferida para o Tesouro, e permitirão a dívida pública cair de 85% para 73% do PIB em 2025, com um superávit primário do governo central de apenas 1,3% do PIB. Assim, o Tesouro tem podido focar na sua dívida externa, cerca de 30% do PIB, e em reforçar as reservas internacionais que alcançaram 5,5% do PIB após desembolsodo FMI (no Brasil, a dívida externa da União é de 3% do PIB e as reservas umas seis vezes mais). A recente liberação do câmbio contou com três fatores: a boa safra em 2024-25, apesar da seca na virada do ano; a anistia fiscal que transferiu deUS$9 a 15 bilhões “do colchão” para os depósitos bancários e poderá ser ampliada; e o empréstimo de US$ 20 bilhões com o FMI, a que talvez se somem US$ 20 bilhões de bancos multilaterais e swaps com a China, formando um pacote de 7% do PIB, equivalentes ao Brasil tomar R$ 800 bilhões no exterior para estabilizar a moeda. Na fronteira entre o macro e o microeconômico tem estado a flexibilização das importações — para ansiedade de alguns setores industriais e moderação da inflação —e o realinhamento das tarifas de energia e transportes, agora atenuado e parcialmente casado com a redução das transferências aos governos subnacionais, um grande dreno fiscal na última década. Mas as principais mudanças são realmente microeconômicas. Elas cobrem a liberalização dos aluguéis, aumentando a oferta de moradia; as relações de trabalho, com aumento do período probatório, anistia em favor da formalização de relações de trabalho existentes, medidas tipo MEI para ajudar as microempresas, flexibilização do seguro-desemprego, cujo valor passa a depender de acordos coletivos com sindicatos, e mesmo a dispensa de frentistas no posto de gasolina. Há diversas outras iniciativas, cujos efeitos conhecemos no Brasil, como admitir capital estrangeiro na aviação doméstica e em serviços nos aeroportos e liberar a importação de equipamentos para o setor de óleo e gás e de máquinas usadas de modo geral. Além da redução de exigências regulatórias, fitossanitárias e de registro, inclusive de pesticidas e fertilizantes, na agropecuária. Como sempre ocorre quando se mexe em estruturas de décadas, algumas medidas são quase anedóticas. Deu-se fim, por exemplo, na limitação da área plantada com erva mate, nos tetos para o preço da uva cobrado às vinícolas e volume e tipo de produção de vinho, vindos dos 1980s; e na estatal do azeite criada em 1947. Revogou-se ainda o arsenal de restrições no setor de algodão (com impacto na indústria têxtil) e açucareiro, como cotas para suprimento interno vindas dos anos 1970. Mutatis mutantes, é como ter acabado com o IBC, IAA e intervenções setoriais que ainda nos assombram com suas centenas de bilhões de reais em precatórios que terão que ser encaixados no arcabouço fiscal em 2027, mas cujo fim deu nova vida ao agro brasileiro a partir dos 1990s. A expansão das exportações de vinho e do interesse em investir na terra, inclusive por estrangeiros, já se faz sentir na Argentina. Algumas mudanças são ainda mais profundas, porque a arquitetura social argentina é particular. A saúde, por exemplo, é ligada aos sindicatos, por meio das chamadas Obras Sociales, criadas na era peronista e postas no centro do sistema em 1970. Financiadas por assalariados e empregadores, elas correspondem aos velhos institutos por categorias no Brasil, como o IAPI e IAPETEC, extintos e integrados ao INPS há sessenta anos. Até o ano passado, mesmo os planos de saúde privados (prepagas) eram intermediados por essas Obras. Com a eliminação dessa intermediação, benefícios passam a ser expressão do Estado, não de grupos ou categorias, e se dá mais liberdade para planos privados. As transferências de renda também deixaram de ser intermediadas por grupos políticos ou setoriais. Mas nem tudo é simplificação transversal, como ilustra o lançamento do regime de incentivo a grandes investimentos em áreas estratégicas (RIGI), com benefícios fiscais de 30 anos e outras vantagens. Esse regime contrasta, por exemplo, com a proposta esboçada há pouco pela Fazenda em parceria com MDIC, MMA e MME para atrair investimentos em data centers no Brasil, que no fundo apenas antecipa os ganhos gerais da reforma tributária. O desmonte dos labirintos Borgeanos da arquitetura social e econômica argentina impulsionará a produtividade do país, mesmo que no curto prazo cause deslocamentos não compensados pelo aumento de certas transferências sociais. É essa expectativa que provavelmente dá popularidade ao governo. Acompanharmos essas transformações é fundamental, porque o Brasil logo poderá ter um parceiro bem distinto, alterando e ampliando nosso espaço econômico. 

1) Recente trabalho do FGV/Ibre (Giambiagi e Tizziani) é uma benvinda exceção. Os relatórios do FMI continuam úteis. 

Joaquim Levy é diretor de Estratégia Econômica e Relações com Mercado do Banco Safra. Foi ministro da Fazenda e diretor-gerente do Banco Mundial.

segunda-feira, 29 de abril de 2024

O que Marcos Galperín, chefe do Mercado Livre, pensa sobre Milei, Argentina e os perigos da lacração - The Economist

 O que Marcos Galperín, chefe do Mercado Livre, pensa sobre Milei, Argentina e os perigos da lacração

Conheça as ideias, os temores e os desejos do homem mais rico da Argentina, cada vez mais extrovertido nas redes sociais

Por The Economist 

O Estado de S. Paulo, 28/04/2024


Até os bilionários refletem a respeito do caminho que não seguiram. Aos 17 anos, Marcos Galperín havia retornado de uma viagem jogando rúgbi competitivo na Austrália e na Nova Zelândia, duas potências dessa modalidade esportiva, quando ofereceram a ele uma vaga na Universidade da Pensilvânia para estudar administração. “Tive de fazer uma escolha”, lembra o fundador do Mercado Livre, a empresa que domina o setor de comércio eletrônico e pagamentos na América Latina, a partir do seu escritório em Montevidéu, capital do Uruguai. 

Mas velhos sonhos não morrem facilmente. “Se eu nascesse de novo, certamente seguiria uma carreira esportiva”, diz Galperín, agora com 52 anos. Ainda assim, ser bilionário tem suas compensações. No ano passado, ele comprou o Miami Sharks, um time de rúgbi dos Estados Unidos.

Galperín nasceu em meio à tradicional riqueza argentina: um império familiar do couro. Entusiasmado com a internet, ele fez as jogadas clássicas de um aspirante a magnata da tecnologia, frequentando a Faculdade de Administração de Stanford e abrindo um negócio a partir de uma garagem. Isso foi em 1999.

Hoje o Mercado Livre tem uma capitalização de mercado de cerca de US$ 70 bilhões, o que o torna a segunda empresa de capital aberto mais valiosa da região, depois da Petrobras, uma gigante brasileira do petróleo. 

Depois de lutar contra a lentidão do serviço e os frequentes aumentos de tarifas por parte das empresas postais, o Mercado Livre construiu uma rede de entregas própria e vasta, ostentando aviões e a maior frota de veículos eléctricos do continente. 

O Mercado Pago processou pagamentos no valor de US$ 183 bilhões no ano passado e fornece cartões de crédito e empréstimos a cerca de 15 milhões de pessoas, 60% das quais nunca haviam feito um empréstimo antes, diz Galperín.

Quando jovem, ele teve muita autoconfiança. “Para ser sincero, pensamos que chegaríamos aqui muito mais rápido”, brinca. No entanto, ele também admite ter tido dúvidas a respeito do sucesso do Mercado Livre e destaca a sorte como um elemento da sua trajetória. “Por todos esses anos eu tive muita ansiedade… Você vê seu saldo no banco caindo todo mês. É uma sensação horrível.” O equilíbrio financeiro em 2005 não foi um momento de comemoração, mas de alívio.

Seguindo essa mentalidade, em 2014 ele se queixou dos patrões que usavam suas empresas como caminho para a fama. O Mercado Livre era diferente, disse ele. “Queremos que a empresa seja famosa. Quanto mais discreto for o nosso perfil pessoal, melhor.” Isto, no entanto, mudou.

Hoje ele fala abertamente, especialmente a respeito da Argentina, onde suas publicações nas redes sociais causam impacto regularmente. A economia argentina é como um esportista que já foi o melhor do mundo, diz ele. “Agora ele está obeso, viciado em drogas, tem câncer e AIDS e é alcoólatra”.

Tal como muitos argentinos, Galperín foi radicalizado por anos de caos econômico. Em 2019, ele se autodenominou democrata ao estilo de Bill Clinton. Hoje ele apoia o presidente da Argentina, Javier Milei, um autodenominado “anarcocapitalista”. Quando Milei foi eleito, em novembro, Galperín postou uma foto de pombas se libertando das correntes com uma palavra: “Livre”.

Milei teve um início impressionante, diz ele, apontando para superávits orçamentais mensais, queda da inflação e aumento da confiança do mercado. “Eles tiraram o álcool e as drogas, mas isso também é muito doloroso”, diz ele, referindo-se à recessão provocada por profundos cortes de gastos. Há um longo caminho a percorrer: “O paciente ainda tem câncer e AIDS e está obeso porque, para isso mudar, é preciso reformar muita coisa”. Apesar desta análise sombria, Galperín considera que as probabilidades de Milei conseguir reformar a economia estão aumentando.

A história da Argentina também molda suas outras opiniões. Ele está otimista em relação ao bitcoin, que pode ser comprado e vendido no Mercado Pago, porque afirma que é uma reserva de valor melhor do que dólares, euros ou ienes. “Vindo da Argentina, sei o que acontece quando você tem déficits permanentes: sua moeda se desvaloriza”, diz ele, ignorando as oscilações do próprio bitcoin.

Seu ceticismo em relação ao governo é mais amplo. “Não há inovação na Europa”, afirma, culpando a regulamentação excessiva. Ele ama Israel, pelo contrário, porque o país mostra “o triunfo do capitalismo”. 

Na Argentina, muitas pessoas discutem a respeito do capitalismo em vez de fazê-lo, sugere ele. E ele se preocupa com a influência da mentalidade lacradora, uma característica proeminente do último governo peronista da Argentina; ele traça uma linha reta entre a lacração, o socialismo e a ditadura. “Tudo começa com um discurso muito bonito sobre igualdade e termina em autoritarismo e pobreza”, diz ele.

O sucesso é a melhor vingança

Galperín é mais estridente na X (antigo Twitter), onde se envolve com figuras públicas e contas aleatórias, zombando de críticos com memes, emojis de beijinho e questionando se eles possuem ações no Mercado Livre. 

Judeu secular, ele é veemente no seu apoio a Israel na guerra em Gaza. Ele descarta a possibilidade de que sua sinceridade possa representar um risco para o Mercado Livre. Poucos fora da Argentina se importam com o que ele diz, argumenta ele, antes de insistir que na verdade não é tão extrovertido.

O Mercado Livre certamente está crescendo. Em 17 de abril, a empresa anunciou que contrataria mais 18 mil pessoas, elevando sua força de trabalho total para 76 mil funcionários. Esta é talvez a resposta mais reveladora aos seus críticos esquerdistas na internet. 


TRADUÇÃO DE AUGUSTO CALIL