O Acordo Mercosul-União Europeia
Rubens Barbosa
O Estado de S. Paulo, 11/04/2023
Como uma das consequências das tensões geradas pelos interesses e políticas ocidentais em relação à Rússia e à China, a Europa voltou a buscar a ampliação de seus laços econômicos e comerciais com a América do Sul, em especial com o Mercosul. Desde janeiro, as visitas de alto nível ao Brasil de governos de países europeus (Alemanha, Espanha, Noruega, França) e as viagens do presidente Lula a Portugal e Espanha ainda este mês, parecem indicar uma renovada prioridade para a assinatura e a ratificação do Acordo do Mercosul com a União Europeia (UE).
No início de março, em Buenos Aires, representantes dos países do Mercosul e os da UE retomaram os entendimentos com vistas à assinatura e a ratificação do acordo de livre comércio entre os dois grupos, em negociação há 20 anos. Poucos dias antes da referida reunião, a direção da UE encaminhou “side letter” (protocolo adicional) contendo novas condicionantes para a assinatura do acordo. A proposta, que levou três anos para ser finalizada pelos países europeus e foi concebida pela desconfiança nutrida em relação aos compromissos do governo Bolsonaro, chegou em hora errada, em vista da mudança da política ambiental e da decisão do governo Lula de tomar medidas contra os ilícitos cometidos na Amazônia. A "side letter" era para ser mantida reservada, mas vazou para a imprensa por ONGs ambientalistas insatisfeitas com as tratativas. Sabe-se que o documento determina que os países teriam de assumir uma série de compromissos ambientais, de biodiversidade e sobre direitos humanos. Uma das novidades foi a proposta de uma nova meta de desmatamento provisória para ser cumprida até 2025. Segundo o texto, os dois lados se comprometem a "deter e reverter a perda de florestas e a degradação da terra até 2030, ao mesmo tempo em que proporciona desenvolvimento sustentável e promove uma transformação rural inclusiva". "Para este fim, a UE e o Mercosul estabelecerão uma meta provisória de redução do desmatamento de pelo menos 50% em relação aos níveis atuais até 2025. Os termos da “side letter”, se não atenuados, poderão estimular setores do atual governo, que, por pressão da indústria, querem reabrir as negociações e rever algumas das cláusulas incluídas no acordo, em especial no tocante a compras governamentais. A proposta, como apresentada, certamente deverá ser rechaçada pelo atual governo por incluir demandas que extrapolam os compromissos ambientais do acordo com a EU, os de preservação da Floresta Amazônica e os previstos no acordo de Paris de 2015. Com isso, ficaria inviabilizada a assinatura do acordo no segundo semestre deste ano, na presidência brasileira do Mercosul.
No capítulo sobre Desenvolvimento Sustentável e Meio Ambiente, foi incluído, pela primeira vez, o princípio da precaução, pelo qual os governos têm o direito legal de agir para proteger a saúde humana, animal ou vegetal ou meio ambiente, mesmo quando a evidência cientifica não é conclusiva. O Mercosul, por outro lado, registrou no acordo que a precaução só pode ser invocada com evidência científica e que o ônus da prova será do país que apresentar a reclamação contra o produto importado.
Com ou sem o acordo de livre comércio, os países do Mercosul terão de lidar ainda com dois conjuntos de novas medidas restritivas dentro da política de meio ambiente e mudança de clima (“green deal”) europeu.
Essas medidas impedem o acesso ao mercado europeu de produtos agrícolas provenientes de áreas desmatadas, o que afetaria produtos do agro brasileiro (carne, soja, café, cacau, azeite de palma, borracha, madeira) e obrigaria os produtores nacionais a ampliarem, com custos adicionais, programas de rastreabilidade e selo verde para demonstrar que a produção saiu de outras áreas, sem desmatamento recente. Por outro lado, produtos industriais, como siderúrgicos, cimento, fertilizantes serão taxados na fronteira pela emissão de gás carbono (carbon tax) para espelhar os custos das empresas europeias com medidas para a redução das emissões. O governo brasileiro, por meio do Itamaraty, sinalizou que irá recorrer a Organização Mundial de Comércio contra essas medidas unilaterais da Europa.
Na reunião de Buenos Aires, os negociadores da UE acenaram com a possibilidade de criação de um fundo de compensação no qual a UE iria discutir com os países do Mercosul a possibilidade de oferecer recursos financeiros para ajudá-los a se adaptarem às rígidas e unilaterais regulações ambientais que Bruxelas implementará progressivamente.
Nesse contexto, cabe lembrar que a União Europeia está criando um mecanismo de defesa comercial para permitir que o bloco possa retaliar medidas punitivas tomadas por outros países, como ocorreu no caso da Lituânia, que sofreu restrições da China, por manter relacionamento com Taiwan. Talvez seja o caso de Brasil e outros países, alvos de restrições protecionistas, também examinarem medidas de defesa comercial contra ações unilaterais de coerção de qualquer procedência.
No novo cenário geopolítico, deve interessar ao Mercosul e `a União Europeia concluir positivamente esse importante acordo. Por isso, é importante e urgente o pronunciamento do Mercosul em resposta `a essa “side letter”.
Rubens Barbosa, embaixador, primeiro coordenador nacional do Mercosul (1991-1994) e presidente do IRICe.