Lula se afasta do rumo do não alinhamento externo
Augusto de Franco
Editorial, Valor Econômico (17/04/2023)
O Brasil, que trilhava caminho próprio independente, está tentado, sob Lula, a escolher o lado do Sul global, que serve objetivamente aos interesses chineses
Com o primeiro conflito armado entre dois países em solo europeu desde a Segunda Guerra - a invasão da Ucrânia pela Rússia -, e o cisma cada vez mais profundo entre as duas maiores economias do mundo - Estados Unidos e China - a ordem política mundial está mudando e colocando enormes desafios para todos os países. O Brasil, uma potência média, sem poder para influir decisivamente nos dois conflitos, construiu posições temerárias em ambos.
O presidente Lula, antes e durante a viagem à China, deu declarações improvisadas que se chocam com a gravidade da situação geopolítica global. Às vésperas de embarcar para o encontro com o presidente Xi Jinping, Lula e depois de propor um “clube da paz” para mediar uma saída pacífica para o confronto entre Rússia e Ucrânia, Lula afirmou que o líder ucraniano Volodymyr Zelenski não poderia ter “tudo o que quer”. Zelenski quer, em primeiro lugar, que parte de seu território, invadido e arrasado pelas forças russas, lhe seja devolvido.
Hoje, Lula recebe Sergei Lavrov, ministro das Relações Exteriores de Vladimir Putin, eterno mandatário da Rússia, que teve ordem de prisão expedida pelo Tribunal Penal Internacional. Celso Amorim, assessor especial de Lula, encontrou-se reservadamente com Putin, às voltas agora com a acusação de que envenena na prisão o mais famoso ativista da oposição, Alexei Navalny, detido por acusações forjadas, típicas de um regime governado por um ex-agente da KGB.
A proposta de “clube da paz” de Lula foi recebida com benevolência por Joe Biden e sem qualquer entusiasmo por Xi Jinping que, em comunicado conjunto da visita, incentivou o presidente brasileiro a continuar tentando - e não mais que isso. “A China recebeu positivamente os esforços do Brasil em prol da paz. As partes apelaram a que mais países desempenhem papel construtivo para a promoção da solução política da crise na Ucrânia”, registra o comunicado.
Ainda sobre a Ucrânia, em visita oficial a um país em litígio com os EUA, Lula disse que Washington e os líderes europeus não têm interesse na paz e fez menções positivas à iniciativa chinesa, que pede cessação das hostilidades, mas não a retirada das tropas russas. Utilizou a visita a uma instalação da gigante de tecnologia Huawei para criticar indiretamente o governo americano. “Queremos dizer ao mundo que não temos preconceito com o povo chinês. E que ninguém vai proibir que o Brasil aprimore sua relação com a China”, disse Lula. Os EUA alegam um problema de segurança nas relações com as empresas chinesas, sempre sob alcance da influência tentacular de Pequim, e não de preconceito contra o povo chinês.
Em cerimônia de posse de Dilma Rousseff no comando do Novo Banco de Desenvolvimento dos Brics, Lula entrou sem cerimônia por território alheio a seus conhecimentos. “Toda noite me pergunto por que todos os países precisam fazer seu comércio lastreado no dólar”, afirmou. É possível pregar com bons argumentos o uso de outras moedas para o comércio internacional, até mesmo que Brasil e China façam isso, mas não é possível ignorar que a moeda chinesa não é usada em trocas amplas internacionais porque a China é uma ditadura, com mercado fechado, que controla o câmbio e o leva para aonde ditar seus interesses econômicos. Por tudo isso, não é uma moeda confiável.
O objetivo claro de Lula é o de “ junto com a China (...) equilibrar a geopolítica mundial”. Os Brics são parte dessa tentativa, mas o bloco não é mais o mesmo de 2008 quando foi criado. A China pretende usá-lo de ariete na disputa com os EUA e quer ampliá-lo a mais países. China e Rússia tentam atrair o Brasil para o mesmo caminho, tornando-o um bloco ideológico com dinheiro suficiente para comprar lealdades.
Alinhar ideologicamente o Brasil aos interesses chineses, como faria o PT sem piscar os olhos, traria mais prejuízos que ganhos ao país. Em termos econômicos, seria quase a mesma coisa. O Brasil tem com a China relação semi-colonial: vende bens primários e compra bens industrializados. Europa e EUA são seu segundo e terceiro maiores parceiros comerciais e formam aliança instável contra Pequim. Nessa perigosa nova ordem em construção, a China sabe exatamente o que quer. O Brasil, que trilhava caminho próprio independente, está tentado, sob Lula, a escolher o lado do Sul global, que serve objetivamente aos interesses chineses.