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terça-feira, 4 de outubro de 2022

O futuro do Brasil, 1: declínio da democracia brasileira? - Paulo Roberto de Almeida

 futuro do Brasil, 1: 

declínio da democracia brasileira?

 

Paulo Roberto de Almeida

(www.pralmeida.orghttp://diplomatizzando.blogspot.com)

Notas sobre o primeiro dos dois destinos do Brasil em 30/10/2022: a via antidemocrática. 

 

Sumário: 

1. Axiomas preliminares

2. A História não se repete, nem mesmo como farsa

3. Uma nova Idade das Trevas?

 

1. Axiomas preliminares

Não há, nem haverá “fascismo brasileiro”, mesmo que vença as eleições de 30 de outubro de 2020 aquele candidato que proclama ter um torturador confirmado, e condenado, como seu herói pessoal. No máximo, o que teremos será uma espécie de lumpen-fascismo, nem novo. nem velho, e que, na verdade, nada mais representará, a exemplo de vários outros países tomando esse mesmo caminho tortuoso da direita extrema, do que um mero governo de extrema-direita, mas sem qualquer organização partidária ou fundamentação doutrinal: um quase fascismo puramente instintivo que representa a mais notável agregação de ignorância, truculência e estupidez capaz de se concentrar num único “comandante” sem qualquer qualidade, sequer carisma próprio. Um contraste, contudo, com os partidos ou movimentos de extrema direita desses outros países: bem diferente dos partidos ideológicos europeus, da sua vertente direitista mais extrema, ou dos ultraconservadores americanos, a extrema direita brasileira não tem líderes reconhecidos, não tem pensadores reputados, não tem sequer uma organização própria. Ela é um ajuntamento de oportunistas, que, em sua grande maioria, trocariam facilmente seu extremismo por alguma outra tendência momentânea de conveniência, enquanto durar essa oportunidade de subir ao topo do poder. O poder, para a maioria deles, não é um objetivo preciso, uma finalidade voltada para a construção de qualquer coisa organizada no Brasil, e sim, apenas um meio para capturar recursos públicos, ou seja, os da coletividade.

Este é o objetivo que os une verdadeiramente: a apropriação de fundos estatais, por quaisquer canais e ferramentas. A ideologia, se ela existe, vem num distante quinto lugar, se por acaso entrar em linha de conta, o que é muito pouco provável. Esse agrupamento de sanguessugas predatórios encontra-se na melhor situação possível: poder apropriar-se desses recursos sem ter a responsabilidade, ele mesmo – ou seja, o conjunto de “representantes do povo” –, pela gestão efetiva das contas públicas, que fica entregue aos burocratas do Executivo. Não se trata de um grupo novo, nem mesmo inédito na política brasileira, mas ele foi se firmando desde aproximadamente uma década atrás. Parece ter construído um sistema que se poderia chamar de “parlamentarismo de fachada”, ou “parlamentarismo fake”: os representantes do povo manipulam a seu bel prazer os fundos existentes – partidário e eleitoral –, manipulam como querem as emendas parlamentares, até inventaram emendas secretas, que representam o ideal para todos, pois que circulam impunemente por canais obscuros da burocracia governamental e pelas comissões e dutos do Congresso.

Ora, não se tem fascismo quando existe um parlamento funcionando, até dotado de muita liberdade de movimentos, quando se trata de organizar o saque e a rapina do Estado. Essa modalidade híbrida de governança não é uma doença de pele, que poderia ser eventualmente extirpada por alguma pomada eleitoral em 2022, ou mesmo mais adiante. Ela já penetrou fundo no corpo do Estado, mesmo sem deixar muitos traços na epiderme da sociedade brasileira. Ou seja, ela persistirá por mais tempo do que um ou dois períodos de mandatos presidenciais, e é completamente indiferente se essa governança da rapina se apresenta sob forma de populismos de esquerda ou de direita. Esse fascismo instintivo é indiferente a ideologias progressistas ou reacionárias, tanto que partidos supostamente sociais, ou progressistas, também aprovaram os desvios de verbas públicas. Não foi apenas por puro acaso que esquerda e direita se juntaram nesse “fascismo pecuniário”. 

 

2. A História não se repete, nem mesmo como farsa

Nas condições reais do caso brasileiro, pode-se, talvez, estabelecer o seguinte: não cabe atribuir qualquer intenção fascista ao “bolsonarismo” atualmente no poder, e disputando um novo mandato, pois não se lhe reconhecem nem liderança própria, nem doutrina, nem movimento, nem alguma coerência no estabelecimento de qualquer projeto para a nação, mesmo que seja um puramente destrutivo. Pode-se, no entanto, reconhecê-lo como mero fenômeno, mas com “b” minúsculo, capaz de mobilizar os frustrados dispersos da sociedade brasileira, assim como Trump reuniu os frustrados do declínio industrial do país. Nos dois casos, os órfãos da crise econômica ainda são muitos, e não apenas em função da recessão provocada pela pandemia, ou antes pela recessão deixada pelo último mandato petista, lá atrás, e que abriu as portas ao atual mandatário. Tais circunstâncias podem significar tanto a derrota quanto a sobrevivência de cada um desses projetos profundamente antidemocráticos. 

A ocorrência de eventual sucesso eleitoral não concede, porém, ao vencedor uma organicidade maior do que essa fugaz vitória nas urnas, nem será capaz de alavancar um verdadeiro movimento, en bonne et due forme, na ausência dos elementos próprios ao regime fascista: 1) a liderança carismática, como de fato possuíam Mussolini, Hitler, Perón, Chávez, mas não Trump ou Bolsonaro; 2) o partido, guiado por uma doutrina explícita: i fasci, das Volk, Justicialismo, Bolivarianismo, o que falta tanto ao “trumpismo”, quanto, e menos ainda, ao “bolsonarismo”; 3) uma dinâmica política capaz de sufocar as instituições em direção de um regime autocrático, como fizeram aqueles caudilhos, no seguimento de um amplo uso de mentiras de todos os tipos, o que, aliás, também vem sendo feito pelos dois presidentes. 

Mas, não cabe enredarmo-nos num inútil debate terminológico sobre se existe, ou não, qualquer tendência fascista na atual conjuntura brasileira. O mais importante seria reconhecer uma realidade puramente prática, e que tem a ver com o momento presente da vida política brasileira: o país encontra-se numa encruzilhada, entre declínio de sua democracia, que foi representado pela vitória do “bolsonarismo”, desde 2018, e o reforço da antidemocracia, eventualmente a partir de 2023, em caso de vitória neste 30 de outubro de 2022. O desenlace dessa encruzilhada e os possíveis caminhos a serem seguidos a partir de agora dependem de como sejam encarados os desafios colocados aos protagonistas principais e incontornáveis da sociedade brasileira: seus eleitores e cidadãos ativos. 

A dúvida ainda não respondida é esta: e se a sociedade não for nada do que gostaríamos que ela fosse: aberta, tolerante, progressista, acolhedora das causas das minorias, pacifista, solidária, “cordial”, enfim, democrática e educada. E se tudo isso não corresponder aos simples fatos da vida? No sentido contrário: e se ela for realmente conservadora, saudosista e propensa a aceitar algum “salvador da pátria”: Vargas, Jânio, Lula, Bolsonaro. Ela é fundamentalista, armamentista, intolerante, racista, autoritária, ignorante e tosca? 

Ficamos decepcionados com essa segunda perspectiva? Provavelmente sim, mas apenas pesquisas qualitativas dotadas de certo refinamento metodológico poderiam responder a essas dúvidas. Finalmente, a aparente popularidade do presidente – depois das muitas denúncias que afastaram parte da classe média que o tinha eleito – pode estar restrita a uma franja popular que temporariamente beneficiada pela ajuda emergencial, além daquelas categorias também favorecidas pela política oficial: agronegócio, alta finanças, capitalistas. A continuidade das políticas de inclusão social em formato ampliado pode redundar no reforço das chances eleitorais do atual presidente, o que implica, de fato, a deterioração continuada do ambiente democrático no Brasil. 

 

3. Uma nova Idade das Trevas?

A despeito do alerta anterior contra o mau uso de analogias históricas, o título desta seção parece incorrer no mesmo pecado venial. A designação, entretanto, não tem tanto a ver com um recuo absoluto da nação, sua economia e governança, para o estado de anomia geral das instituições e estruturas produtivas como na sequência das invasões bárbaras no império romano do Ocidente, e sim com o fato de os novos bárbaros brasileiros serem, precisamente, pessoas ignorantes no amplo espectro da gestão governamental e no campo especializado da política externa e da diplomacia do Estado. No terreno artístico-cultural e no das instituições científicas de pesquisa e desenvolvimento, o barbarismo dos atuais governantes  já foi mais de uma vez demonstrado, podendo se afirmar que já existe um fosso profundo separando as entidades universitárias e as autoridades do governo, de modo geral, e as da educação em particular. No meio ambiente e na negação da pandemia, a imagem internacional do país já foi praticamente soterrada, como ocorreu no caso do obscurantismo antivacinal.

Tal Idade das Trevas não cobre unicamente os temas mais evidentes de costumes e assuntos culturais, mas se estende a vários outros terrenos das políticas públicas, com destaque para o meio ambiente e para a diplomacia, que concentram o essencial das reações negativas da opinião pública internacional com respeito ao presidente e seus principais auxiliares nessas áreas. A suposta racionalidade de militares integrados ao governo, assim como a presença de alguns tecnocratas de boa formação não foi capaz de compensar a má imagem do Brasil no cenário internacional, a ponto de o ex-ministro da Fazenda Rubens Ricupero ter afirmado claramente que o Brasil se converteu em “pária internacional”. De fato, o Brasil encontra-se isolado como nunca na esfera internacional, por ações e omissões do presidente e do seu ex-chanceler acidental, e de uma política externa como nunca antes tinha sido experimentada no decorrer da história bissecular da diplomacia profissional. 

Mas a política externa ocupa uma parte muito pequena das preocupações dos vários grupos políticos articulados basicamente em termos de questões domésticas. Ela ocupa uma parte ainda menor da atenção da grande maioria do eleitorado e deve ser totalmente ignorada pela população mais pobre, cuja única angústia encontra-se na sobrevivência diária, assim como na sustentação familiar. Essa mesma população, grande parte do eleitorado, não tem a menor ideia de porque alguns indivíduos de linguagem incompreensível começam a falar de uma coisa chamada fascismo, que eles ignoram completamente o que seja. Não parece haver preocupação maior, igualmente, com o noticiário sobre a corrupção da família presidencial, uma vez que a população mais pobre sabe que os políticos são corruptos e ela não espera que seja de outra forma. O que a população pobre quer saber é se o político, ladrão ou não, vai efetivamente se preocupar com a sua sorte, em matéria de renda, emprego, segurança e futuro dos filhos. As acusações de “rachadinha” ou alertas sobre ameaças às instituições de Estado pelas ações e omissões do presidente passam muito longe de suas preocupações diárias. 

Em outros termos, enquanto não ocorrer algum desastre econômico, causado pelo esgotamento completo das finanças públicas, com mais desemprego e perda de renda, a popularidade do governo e da figura do presidente deve continuar em níveis satisfatórios, o que quer que façam as oposições políticas ou as deste núcleo desimportante de acadêmicos destacados da realidade da população mais humilde. O mais provável, portanto, é que continue essa Idade das Trevas, que só o é para nossa frágil percepção da realidade da maioria do povo. 

O que ocorrerá em caso de vitória da atual quadrilha no poder? Se não houver alternância política em 30 de outubro de 2022, com base numa plataforma democrática, com propostas economicamente sustentáveis, a atual Idade das Trevas pode continuar no Brasil, não como construção de algum fascismo de novo tipo, mas como continuidade do velho fascismo pecuniário que já ficou consagrado nas práticas orçamentárias do parlamentarismo de fachada. Sou bastante pessimista no tocante a qualquer uma dessas perspectivas, de vitória ou de derrota dos novos bárbaros. O caráter predatório do estamento político parece ser uma qualidade muito bem partilhada pela maior parte dos políticos profissionais, de quaisquer tendências. Como eles não parecem exibir muita virtù, não cabe sequer esperar que possam ser bafejados pela fortuna. Eles estão bem focados em construir sua própria fortuna pessoal, no sentido mais vulgar da palavra. Em outros termos, minha aposta, nesta primeira nota sobre nosso futuro imediato, é sobre o declínio irresistível da atual democracia de baixa qualidade do Brasil, qualquer que seja o vencedor no pleito de 30 de outubro de 2022. Uma segunda nota tratará do improvável salvamento da democracia pelo afastamento dos novos bárbaros, uma possibilidade que ainda figura no horizonte das escolhas de um eleitorado fragmentado por todos os tipos de propaganda mentirosa.

 

Paulo Roberto de Almeida

Brasília, 4248, 4 de outubro de 2022, 5 p.