REVISTA INTELIGÊNCIA – INSIGHT
Ano XXV – nº 102 – setembro de 2023
O que foi feito do apanhador no campo de centeio?
JORIO DAUSTER
Os milhões de leitores em todo o mundo do livro de J.D. Salinger “O apanhador no campo de centeio” sabem que Holden Caulfield, aos 17 anos, está se recuperando de um colapso nervoso numa clínica psiquiátrica após ser expulso do colégio no ano anterior e passar três dias muito doidos em Nova York. Como ícone da rebelião dos adolescentes contra as convenções da vida adulta, todos nós que em algum momento compartilhamos de suas angústias e incertezas nos perguntamos o que foi feito de Holden após a crise que o deixou tão abalado a ponto de exigir uma longa internação.
A última página do livro oferece uma perspectiva relativamente otimista de superação, mas ainda cercada de sérias dúvidas. Em suas próprias palavras: “Uma porção de gente, principalmente esse cara psicanalista que tem aqui, vive me perguntando se eu vou me esforçar quando voltar para o colégio em setembro. Na minha opinião, isso é o tipo da pergunta imbecil. Quer dizer, como é que a gente pode saber o que é que vai fazer até a hora em que faz o troço? A resposta é não sei. Acho que vou, mas como é que eu posso saber? Juro que é uma pergunta cretina.”
Essa declaração, típica do protagonista e narrador do livro, está muito longe daqueles reconfortantes epílogos de certos romances em que, nas palavras de Henry James, se distribuem “os últimos prêmios, pensões, maridos, esposas, bebês, fortunas, parágrafos adicionais e observações jubilosas.” Não é à toa que, em livros infantis, são comuns esses remates finais que servem para tranquilizar as jovens mentes temerosas de um desfecho trágico. Mas ainda recentemente vimos isso na saga de Harry Potter, em que os personagens, já mais velhos e com famílias constituídas, vivem os famosos happy ending em que Hollywood também já foi mestre.
No entanto, se Salinger nos abandona no escuro, só faz estimular a curiosidade intelectual de quem ainda se surpreende com a força quase mítica de um personagem que viu a luz do dia em 1951, mas que, pela cronologia da obra, já teria hoje mais de cem anos.
Esse desejo de saber o que foi feito de Holden ao voltar a encarar as atribulações cotidianas certamente não é privilégio de poucos, já tendo inclusive havido duas tentativas literárias de responder a essa indagação existencial. Em 2009, o autor sueco Fredrik Colting escreveu um livro intitulado “60 Years Later: Coming Through the Rye”, em que Holden Caulfield foge de um asilo para velhos em Nova York aos 76 anos e sai vagando pela cidade como seu genuíno alter ego fizera décadas antes. Salinger, enfurecido, processou o autor, e o livro teve sua comercialização proibida por uma decisão judicial. Mais recentemente, Mary O’Connell escreveu “In the Rye”, em que Holden Caulfield mais uma vez circula por Manhattan, agora aparentemente em busca de sua professora de literatura norte-americana. Diante das complicações legais impostas por Salinger, o romance nunca chegou a ser publicado. Se temos dois casos conhecidos, não é difícil imaginar quantas reencarnações de Holden Caulfield jazem nas gavetas de frustrados autores que sonharam com o day after do herói de suas juventudes.
Uma linha de investigação especulativa nos leva à própria obra de J.D. Salinger, porque, curiosamente, ele usou o nome Holden Caulfield em diversos contos publicados antes do “Apanhador”, a começar por aquele intitulado “Slight Rebellion off Madison”, comprado pela The New Yorker já em 1941, mas, devido à Segunda Guerra Mundial, só aproveitado pela revista cinco anos mais tarde. No entanto, esses contos não revelam uma linha do tempo consistente, e os personagens que carregam aquele nome têm características inteiramente diferentes e até contraditórias. Como exemplo mais notável dessas discrepâncias, num deles Holden Caulfield é um soldado que morre em ação em 1944 – quando o Holden do “Apanhador” teria dezesseis anos em 1949. Assim, permanece um mistério porque o autor tinha tamanha fixação pelo nome, mas, infelizmente, os contos não podem nos servir como uma indicação prévia sobre o futuro do “nosso” Holden.
Outra possível pista poderia ser dada pelas semelhanças existentes entre o próprio Salinger e o rapaz que zanza por Nova York sem ter coragem de confessar aos pais que foi expulso do colégio. Ambos, o autor de carne e osso e sua criação literária, pertenciam a famílias de alta classe média, moravam em excelentes apartamentos nas partes mais nobres de Manhattan, tinham problemas nas escolas, exibiam personalidades complexas. Mas as convergências são mais profundas e bem mais sombrias.
Como sargento do Corpo de Contrainteligência do Exército, a função de Salinger consistia em interrogar prisioneiros de guerra graças à sua fluência em alemão e francês. Todavia, embora não participasse diretamente da luta armada, ele desembarcou na Normandia no famoso Dia D, em junho de 1944, e presenciou todas as carnificinas que ocorreram ali e na longa marcha que atravessou as Ardenas e o conduziu até a Alemanha no ano seguinte. Em abril de 1945, entrou no campo de extermínio de Kaufering IV, parte do complexo de Dachau, onde viu as pilhas de cadáveres semicarbonizados. Num de seus poucos comentários sobre o que vivenciou como combatente, ele disse certa vez à filha: “Você nunca realmente elimina do seu nariz o cheiro de carne queimando, por mais tempo que viva.” Não surpreende que dias depois de terminada a guerra, profundamente perturbado, Salinger se internou num hospital de Nuremberg sofrendo o que à época se chamava de “fadiga de combate”, mas hoje é caracterizado como transtorno de estresse pós-traumático.
E o homem que voltou da guerra não era o mesmo. Apesar de ter tido dois encontros gloriosos com o correspondente de guerra Ernest Hemingway, os milhares de camaradas mortos no curso da campanha tingiram de amargura as passagens mais tarde usadas em “O apanhador do campo de centeio” que ele continuou a escrever mesmo durante os bombardeios, levando sua máquina de escrever para debaixo de mesa. E, pouco depois de publicado o livro que o fez mais famoso do que desejava, Salinger se retirou em 1953 para os cafundós de New Hampshire onde levou uma vida de recluso até morrer em 2010, aos 91 anos.
É muito provável, assim, que a composição de “O apanhador no campo de centeio” tenha representado uma liberação para Salinger, uma imensa catarse, ao escrever, na verdade, um livro de guerra transmudando-o na experiência de um conturbado adolescente que tinha muito do autor. Entretanto, o que dificilmente se vê numa primeira leitura, quando as aventuras tresloucadas do rapaz dominam nossa percepção, é que ele transferiu também para Holden Caulfield seu transtorno de estresse pós-traumático – e talvez até mais em matéria de distúrbio mental.
No caso de Holden, o trauma é causado pela perda de Allie, o irmão mais moço que ele amava, que morre de leucemia no dia (precisamente indicado) 18 de julho de 1946. E ele relembra: “Eu só tinha treze anos, e meus pais resolveram que eu precisava ser psicanalisado e tudo, porque quebrei todas as janelas da garagem. Mas realmente acho que eles tinham razão. Dormi na garagem na noite em que ele morreu e quebrei a droga dos vidros todos com a mão, sei lá por quê. Tentei até arrebentar os vidros da camioneta que nós tínhamos naquele verão, mas a essa altura minha mão já estava quebrada e tudo, e não consegui. Reconheço que foi o tipo da coisa estúpida de se fazer, mas eu nem sabia direito o que estava fazendo, e vocês não conheciam o Allie. Minha mão ainda dói de vez em quando, nos dias de chuva e tudo, e nunca mais consegui fechar direito a mão – assim bem apertada – mas, fora isso, não me importo muito. De qualquer jeito, sei que não vou mesmo ser um cirurgião ou um violinista, ou droga nenhuma.”
Não podia ser mais clara a descrição de um surto psicótico, e é possível lamentar que, à luz do ocorrido, os pais de Holden não lhe tivessem proporcionado de imediato o prolongado tratamento que ele precisou ter poucos anos mais tarde. Pois o fato é que, ao longo do livro, as manifestações de rebeldia contra a hipocrisia do mundo adulto são acompanhadas de frequentes referências ao irmão e à depressão que lhe causa sua ausência, não faltando nem mesmo, como sintoma do transtorno, o desejo de se suicidar. Mas será que, por fim, Holden se recuperou totalmente com a ajuda do irmão mais velho D.B., que o visita na clínica psiquiátrica pouco antes da alta, e da maravilhosa irmã mais moça. Phoebe, que parece entendê-lo como ninguém e se mostra tão protetora ao sentir que ele está entrando numa crise profunda?
A essa hipótese otimista se opõe a triste possibilidade de que Holden sofresse realmente de um distúrbio bipolar que, dependendo de sua severidade, poderia persegui-lo durante toda a vida adulta. Essa eventualidade é estranhamente sugerida pelo fato de que a leitura do “Apanhador” despertou emoções poderosas em várias pessoas com comprovadas doenças mentais. Como se, de algum modo, elas tivessem sentido as vibrações negativas que incontáveis leitores sadios não percebem. Com efeito, vários episódios violentos foram associados ao romance, inclusive o assassinato da atriz Rebecca Schaeffer por Robert John Bardo e o atentado contra Ronald Reagan por John Hinckley Jr. E, no caso mais notável, depois de matar John Lennon, Mark David Chapman foi preso carregando um exemplar do livro comprado naquele mesmo dia e no qual tinha escrito: “Para Holden Caulfield, de Holden Caulfield. Essa é minha declaração.”
Mas, quem sabe, existe um epílogo menos trágico porque Salinger, desde que autorizou a publicação de sua última obra em 1965, escreveu incansavelmente até morrer. Seu filho Matt Salinger e a viúva do autor, Colleen O’Neill, são responsáveis por selecionar os escritos de quase meio século que verão a luz do dia – e talvez a circunstância de que Matt já representou o Capitão América no cinema comprove que ele tem o vigor necessário para levar a bom termo a gigantesca tarefa. Como há quem diga que esse tesouro literário contém nada menos de 15 romances, não custa sonhar que um deles seja a continuação do “Apanhador” e que nele possamos finalmente saber o que foi feito do nosso velho amigo Holden Caulfield.
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