Celso Lafer fez uma palestra sobre Ruy Barbosa na Academia Brasileira de Letras, no último dia 4 de abril, que transcrevo abaixo. Ele repassa as grandes contribuições imorredouras do "homem mais inteligente do Brasil" (segundo os baianos, e provavelmente verdade quanto à diversidade de seus interesses intelectuais), do qual registro uma reflexão (ao final) sobre o ler, o pensar, o refletir e expressar ideias. Transcrevo, pois também me serve como ensinamento:
Concluo com uma das grandes lições de Ruy na Oração aos Moços: que ele seguiu na sua vida, obra e percurso: “os que madrugam no ler, convém madrugarem também no pensar. Vulgar é o ler, raro o refletir. O saber não está na ciência alheia, que se absorve, mas, principalmente, nas idéias próprias, que se geram dos conhecimentos absorvidos, mediante a transmutação, por que passam, no espírito que os assimila. Um sabedor não é armário de sabedoria armazenada, mas transformador reflexivo de aquisições digeridas”.
Grande Ruy Barbosa, grande Celso Lafer!
Paulo Roberto de Almeida
Brasília, 10 de maio de 2019
Ruy
Barbosa, 170 anos: dimensões da atualidade do seu legado
CELSO
LAFER
Palestra
na Academia Brasileira de Letras, 4 de abril de 2019
-I-
Ruy Barbosa faleceu em 1923 e como Joaquim
Nabuco, seu colega na Faculdade de Direito do Largo São Francisco e confrade na
Academia Brasileira de Letras, nasceu há 170 anos, em 1849. Foi um
contemporâneo mais moço de Machado de Assis, a quem sucedeu na presidência da
ABL, tendo proferido quando de seu falecimento, em nome de seus confrades, em
30 de setembro de 1908, o “Adeus a Machado de Assis”. Daí as convergências
geracionais e de sensibilidade deste ciclo de conferências, que hoje se
encerra.
Ruy teve em vida, pela sua atuação pública,
uma presença indiscutível na cena nacional. Usufruiu na sociedade brasileira de
seu tempo de um generalizado reconhecimento como um ícone intelectual, admirado
orador e advogado, homem de notável cultura e excepcional conhecimento e
domínio da língua portuguesa. Uma de suas mais relevantes dimensões é a de
publicista e, como tal, é uma estrela de primeira grandeza, no que José
Veríssimo qualificou de literatura de questões públicas em nosso país.
O culto a Ruy e a preservação de seus
múltiplos legados se prolongou após o seu falecimento e a Casa de Ruy Barbosa,
inaugurada pelo Presidente Washington Luís em 11 de agosto de 1930, vem se
dedicando a manter viva a sua memória, cabendo destacar a publicação, com cuidados
editoriais e prefácios de muita qualidade de destacados ruístas, das dezenas de
volumes de suas obras completas, uma empreitada ainda não concluída
explicitadora da amplitude dos seus interesses.
A esta ciclópica tarefa dedicou-se Américo
Jacobina Lacombe que foi nosso confrade. Explica em seu À sombra de Ruy
Barbosa que colocou em ordem e foi preparando para publicações o acervo de
Ruy, do qual se considerava o “Guarda-mór” – uma responsabilidade que exerceu
com zelo e qualidade durante décadas – na condição de Diretor da Casa de Ruy
Barbosa.
A obra e a personalidade de Ruy são múltiplas
na sua unidade. Comporta por isso muitos ângulos de abordagem no seu trato, que
os seus estudiosos, no correr dos anos vêm analisando à luz das suas próprias
preferências intelectuais. Exemplifico com trabalhos dos nossos confrades.
Foi com A vida de Ruy Barbosa que Luis
Viana Filho iniciou o seu percurso de grande biógrafo, que foi a marca da sua identidade
intelectual. João Neves da Fontoura, foi um notável orador que marcou a cena
pública do nosso país; compreensivelmente escreveu Ruy Barbosa, Orador.
Miguel Reale, meu antecessor na cadeira 14 esclareceu “A posição de Ruy Barbosa
no mundo da filosofia” em consonância com o seu recorrente interesse pela
história das ideias no Brasil. Elmano Cardim, foi jornalista e diretor do Jornal
do Comércio e escreveu, como seria de se esperar, Ruy Barbosa, o
jornalista da República. Nosso confrade Alberto Venâncio Filho, grande
estudioso do pensamento jurídico brasileiro, dedicou-se à análise de Ruy
Barbosa, como advogado e jurista.
O legado de Ruy Barbosa, como se vê, estimulou
e inspirou muitas gerações. Qual é hoje a sua atualidade?
Há uma certa dificuldade no acesso à sua
mensagem, pois o seu estilo de grande orquestrador das palavras não se amolda
com facilidade aos que tem preferência pela palavra sintética. Esta dificuldade
se magnificou na era digital, seja por parte dos que apreciam o sincopado não
argumentativo do “twitter”, seja pelo instantâneo do metabolismo incessante das
mídias sociais, que não abrem espaços para os nexos do enquadramento que
caracterizou o modo de argumentar de Ruy.
Na defesa destes nexos afirmou em A
Imprensa e o dever da verdade: “O discurso não entra a cair no vício de sobejo, senão
quando excede a matéria do seu tema. Só principia a superabundância, onde se começa a descobrir a superfluidade.”
Há, porém, uma outra razão no plano das
idéias que cabe mencionar, destacado por Bolivar Lamounier no seu livro-ensaio
sobre Ruy, de 1999. Em síntese aponta Bolivar que a obra e o legado de Ruy
enfrentaram depois da sua morte uma dupla desqualificação, que se aguçou com o
clima político e intelectual abastecido pelos desdobramentos da Revolução de
1930. Uma proveio do pensamento autoritário da Direita, outra, do pensamento
autoritário da Esquerda, ambas coadjuvadas pela ciência social acadêmica. Todas
têm em comum a deslegitimação do Direito como instrumento de ação política que
caracterizou Ruy, cujo pensamento foi tido como um expressão de um formalismo
liberal e juridicista, desconhecedor das diferenças que separam o Brasil real
do Brasil legal, o ser do dever-ser, a dinâmica das forças sociais e econômicas
da infraestrutura que moldam a superestrutura.
Esta desqualificação deixou na sombra um dos
grandes legados de Ruy que foi o de ter se dedicado no correr da sua vida e da
sua atuação, como registra Bolivar “a formação da esfera pública e a criação
institucional da democracia no Brasil”. É esta vertente e a sua atualidade que
vou explorar neste texto, indicando igualmente sua coerência com a atuação
internacional de Ruy que foi episódica, mas muito significativa.
-II-
Inicio com a Oração aos Moços – o discurso
de paraninfo com que Ruy Barbosa brindou a turma de 1920 da Faculdade de
Direito do Largo São Francisco, registrando que fazia parte do meu “léxico
familiar”. A turma de 1920 foi a de Horácio Lafer que integrou a comitiva dos estudantes
que foi ao Rio convidar Ruy para o paraninfado. Meu pai assistiu a formatura e
guardou a lembrança do impacto que sentiu ao ouvir A oração aos Moços,
que foi lida - porque Ruy, adoentado, não pode comparecer à cerimônia – pelo
Prof. Reinaldo Porchat que veio a ser o primeiro reitor da USP. Soares de Melo
que foi denodado artífice de Ruy como paraninfo da sua turma, relata em sua
circunstanciada História da Oração aos Moços a qualidade da leitura que
Porchat fez da mensagem de Ruy.
Aponto preliminarmente, também na condição de
professor da Faculdade na qual Ruy estudou, que um grande marco da sua trajetória
de orador, vincula-se à sua vida de estudante na Faculdade. Foi seu discurso de
8 de dezembro de 1868 – uma admirável “oraison funèbre” pronunciada na sessão
cívica em São Paulo, em homenagem a José Bonifácio, o moço. José Bonifácio, que
tinha sido seu professor e de Joaquim Nabuco na Faculdade de Direito de São
Paulo, foi uma grande personalidade pública do Império, com o qual Ruy
subsequentemente conviveu no parlamento e na vida política. Era de cariz radical,
guiado pela “ideia a realizar” da participação popular das massas ativas da
população – como mostrou nosso confrade Francisco de Assis Barbosa na
introdução do seu Perfil Parlamentar publicado pela Câmara dos
Deputados.
José Bonifácio, o moço, foi notável orador e admirável
liderança da mocidade acadêmica da Faculdade de São Paulo no século XIX, como
relatam Almeida Nogueira em Tradição e Reminiscências e Spencer Vampré
nas Memórias para História da Academia de São Paulo. José Bonifácio foi
um paradigma que influenciou Ruy ao lidar, como disse, com a sociedade do seu
tempo ”pela eloquência na tribuna, pela mocidade na cátedra, pela controvérsia
na imprensa, pela política no parlamento”.
Ruy dá o seu testemunho do magistério de José
Bonifácio, dizendo que graças a ele como professor teve “pela primeira vez a
revelação viva da grandeza da ciência que abraçávamos.” É um dado relevante de
sensibilidade e memória, explicativa do porquê inicia a Oração aos Moços
afirmando a importância que os seus “cinquenta anos de consagração ao Direito viesse
a receber no templo do seu ensino em São Paulo, o selo de uma grande benção.”
-III-
A Oração aos Moços pode ser
considerada o testamento político de Ruy. Nela fez uma avaliação do seu meio
século de trabalho na jurisprudência que se conjugou aos seus cinquenta anos de
serviços à Nação. Observou que atuou sem os meios e manhas da política
tradicional, mas que “em compensação tudo envidei por inculcar ao povo os
costumes da liberdade e à república as leis do bom governo, que prosperam os
Estados, moralizam a sociedade e honram as nações”.
Entre os serviços à nação cabe destacar a
ativa participação, que compartilhou com Joaquim Nabuco, na campanha
abolicionista. Ruy sublinhou que a questão da escravidão era a questão das
questões, a que todas as outras se subordinavam pois “encarna em si o começo da
solução de todas as demais”. Afirmou: “É no direito cientificamente real de
nossa época e de nossa nacionalidade que nos firmamos contra a legalidade
caduca do cativeiro”.
Rui participou com destemor e precisão
jurídica do movimento abolicionista brasileiro; por isso é figura de relevo do
recente livro de Angela Alonso Flores, votos e balas que desse movimento
trata com originalidade, baseada em abrangente pesquisa.
As limitações do tempo só me permitem apontar
que entre os serviços prestados à nação por Ruy estão: seus inovadores
pareceres sobre ensino apresentados na Câmara dos Deputados do Império como
relator da Comissão de Instrução Pública e que estão lastreadas na sua visão do
papel regenerador da educação no desenvolvimento material e moral do nosso país
e de nossa gente. Conjugam-se com sua subsequente preocupação em propiciar à
economia da República, a melhoria das condições de vida e progresso do povo, indo
além da sua base agrícola e abrindo espaço para o desenvolvimento da indústria,
o que não ocorreu no Império por muitas razões, dentre elas a escravidão.
Ruy também em conferência de 1919 na sua
segunda campanha presidencial foi atento à questão social. Reconheceu progressos
em matéria de direitos humanos mas propugnou pela sua abrangência por meio de
sua necessária extensão aos direitos sociais.
João Mangabeira, que foi seu discípulo e teve
o prazer da sua intimidade, afirmou: “na questão social ninguém no Brasil viu
tão cedo, tão largo e tão longe quanto Ruy na sua época”. Foi o único, dentre
os líderes brasileiros, como realça Mangabeira em Ruy, o Estadista da República,
que se declarou pela democracia social. Mangabeira foi uma destacada figura pública
brasileira, de orientação socialista e cariz democrático. Daí o relevo de sua
afirmação, reiterada por Hermes Lima, que foi nosso confrade e também como João
Mangabeira figura pública de linhagem socialista. Desta matéria tratou em texto
de 1983 de maneira circunstanciada e abrangente, como era do seu feitio, nosso
saudoso confrade Evaristo de Moraes Filho, inspirado pela ação e pelo convívio
do seu pai, Evaristo de Moraes, com Ruy.
Em Figuras do Direito, que recolhe
dois admiráveis estudos sobre Ruy, San Tiago Dantas observou que transfundir na
história a força operativa de um pensamento está fora do alcance da vontade
individual. Ruy, no entanto, exprimiu na trajetória da sua vida e obra, com
efetiva ressonância nacional, a trama dos problemas políticos da sociedade
brasileira, não só do seu tempo, mas as dos nossos dias, com destaque para os
desafios da consolidação e vigência das instituições democráticas.
Ruy tinha a capacidade de sacrifício e sempre
soube perder, lembra Oswald de Andrade. Assim, nas palavras do grande
modernista “como a semente do Evangelho que precisa morrer para frutificar, ele
sempre soube morrer pelo dia seguinte do Brasil.” Por isso a árvore da
liberdade está subjacente ao seu legado. É o que vou a seguir destacar.
- IV-
O Direito representou para Ruy o caminho do
seu empenho político. Este foi o de ser “o mais irreconciliável inimigo do
governo do mundo pela violência, o mais fervoroso predicante do governo dos
homens pelas leis”. (Discurso de 18 de maio de 1911 no Instituto dos Advogados)
e um defensor do civilismo que norteou as suas duas campanhas presidenciais. O
programa do civilismo, para Ruy, estava voltado para a observância das
condições de justiça, e requer “o governo da lei contraposta ao governo do
arbítrio”. (O Dever do Advogado, 1911).
Ruy viveu o direito, como aponta Miguel
Reale, em função do agir e o seu excepcional domínio das doutrinas e das
instituições jurídicas esteve a serviço da implantação das práticas
democráticas republicanas em nosso país. Sustentou a defesa do positivo papel
que os advogados podem exercer na vida pública de uma democracia. Para ele, “o
trato usual do Direito, o hábito do seu estudo, a influência penetrante de sua
assimilação, conduz a independência dos juristas “. (Discurso de 18 de maio de
1911 no Instituto dos Advogados).
A autonomia do jurista em relação ao poder é
um traço marcante da personalidade de Ruy e do sentido apostolar do seu
percurso. Neste sentido, no mundo do Direito brasileiro, Francisco Campos é,
como aponta San Tiago Dantas, o seu oposto, por força de um realismo implacável
e de um criticismo que relativiza todas as posições doutrinárias. Por isso, os
seus grandes talentos de jurista estiveram à vontade para acomodar os impulsos
autoritários do pragmatismo do poder. Disso são exemplos o seu decisivo papel
na redação da Constituição de 1937 do Estado Novo e no Ato Institucional nº 1, inaugurador
do regime implantado em 1964.
Na Oração aos Moços, Ruy engloba na
missão do advogado, uma espécie de magistratura: o da justiça militante. Nisto
inclui “não transfugir da legalidade para a violência”; “não antepor os
poderosos aos desvalidos, nem recusar patrocínios a estes contra aqueles”; não
“quebrar da verdade ante o poder”; não colaborar em perseguições ou
atentados, nem pleitear pela iniqüidade ou imoralidade”; “não se subtrair à defesa
das causas impopulares, nem à das perigosas, quando justas.”
Ruy em O Dever do
Advogado, observa que a ordem legal se manifesta por duas exigências: a
acusação e defesa. Esta independentemente do execrável do delito “não é menos
especial à satisfação da moralidade pública do que a primeira.” Cabe ao
advogado ser “voz do Direito no meio da paixão pública, tão suscetível de se
demasiar.” “Tem a missão sagrada, nesses casos, de não consentir que a
indignação degenere em ferocidade e a expiação jurídica em extermínio cruel.” Por
isso, “faz-se mister resistir à impaciência dos ânimos exacerbados, que não
toleram a serenidade das formas jurídicas.
Ruy exerceu a Magistratura
de Justiça Militante na sua análise do caso Dreyfus, um grande exemplo de
quebra da “verdade ante o poder”. O caso Dreyfus também é um exemplo em que as
circunstâncias políticas, nas quais a “paixão pública” se expressa por
movimentos que obedecem “a verdadeiras alucinações coletivas”. Elas também
ocorrem, como diz Ruy em O Dever do Advogado, mesmo em nações adiantadas
e cultas.
O texto de Ruy é de 1895, e
data do período de seu exílio na Inglaterra, a que se viu forçado pelo arbítrio
da presidência de Floriano Peixoto. Foi publicado no Jornal do Comércio
do Rio de Janeiro e passou subsequentemente a integrar Cartas da Inglaterra.
Ruy o escreveu, como disse, por ter o caso nele vibrado “profundamente no
coração a corda da justiça”. O texto de Ruy realça a importância para a
convivência coletiva da legalidade ferida nas garantias processuais pelo sigilo
do “huis clos”, como observou Baptista Pereira no prefácio à 2ª edição de Cartas
da Inglaterra, que nele identifica uma “autópsia do militarismo”, válida
também para o Brasil de Floriano Peixoto, que postergou na experiência de vida
de Ruy, a vigência das garantias legais.
O texto de Ruy também
corrobora a defesa que fez em 1920 sobre o dever da verdade - nos debates, nos
atos, no governo, na tribuna, na imprensa – e da transparência do espaço
público, pois, como afirmou, “o poder não é um antro: é um tablado. A
autoridade não é uma capa, mas um farol”. “A política não é uma maçonaria, e sim uma
liça.”. Daí a inaceitabilidade da falsificação e da mentira nas instituições (A
Imprensa e o dever da verdade). Estas foram as que permearam o processo e a
condenação de Dreyfus.
Ruy escreveu o seu texto no
calor da hora e com base nas informações hauridas na imprensa inglesa. Foram
suficientes, como o tempo demonstrou e a revisão do processo Dreyfus comprovou,
para Ruy demonstrar, de maneira inequívoca, que Dreyfus fora vítima de uma
flagrante denegação da justiça por total carência de devido processo legal, tendo
realçado que a clandestinidade do processo o inquinava de suspeita. Entreviu
que a verdadeira causa da condenação de Dreyfus foi o antissemitismo. Apontou
que o processo correu no segredo de um tribunal militar e “era pleito
sentenciado pela opinião pública”, registrando que esta, na França daquele
momento, vivia “o espasmo do ódio insaciável” que agitava contra o acusado
todas as classes da população.
Em 1919, na sua segunda
campanha presidencial, Ruy, em conferência de 24 de maio referiu-se a seu texto
em defesa de Dreyfus - como registra, o primeiro arrazoado jurídico escrito na
discussão de sua causa – para dela extrair uma lição de civilismo, apontando
que na França foi “crucificada a justiça na pessoa de um soldado pelas intrigas
da política de fações”, destacando no contexto, a importância do direito, da
justiça e da legalidade.
Em 1985 Ruy fez verter para
o francês o seu texto, que foi publicado no Rio de Janeiro. O texto chegou às
mãos de Dreyfus depois de sua liberação, mas antes de sua plena reabilitação
pela Corte de Cassação, em 1906. Dreyfus, no seu livro Souvenirs et
Correspondences registra que leu o texto de Ruy em 1900 identificando “no
autor um discernimento notável e uma grande liberdade de espírito.”
O caso Dreyfus foi um caso
rumoroso, de alcance internacional, cuja relevância Ruy anteviu desde o
primeiro momento. Dividiu e mobilizou a opinião pública da França da 3ª
República com repercussão na Europa. Hannah Arendt sublinha o seu alcance
histórico para o século XX, considerando-o uma cristalização antecipatória,
explicativa das origens do que veio a ser o totalitarismo.
Na defesa de Dreyfus
alinharam-se no tempo as correntes liberais e democráticas. Neste sentido cabe
lembrar que a posição de Ruy, que estava em sintonia com essa corrente,
repercutiu favoravelmente na diplomacia aberta, caracterizadora da Conferência de
Haia de 1907, que deu espaço ao papel da imprensa na cobertura de suas
atividades. O influente jornalista William Stead que escreveu sobre o Brasil em
Haia apontou que Ruy como chefe da delegação brasileira não só se impôs no
âmbito multilateral, pelo seu conhecimento e combatividade em relação aos
demais delegados. Sua pioneira defesa de Dreyfus, atestada pelo próprio
Dreyfus, à ele deu “um cunho de distinção”, que conferiu à Ruy prestígio
perante a opinião pública esclarecida que acompanhou de perto a Conferência.
Haia foi o primeiro grande
ensaio da diplomacia multilateral no século XX e o momento inaugural da
presença brasileira nos grandes foros internacionais.
Nela, Ruy atuou com informações
sobre a cena internacional que lhe foram previamente dadas por Joaquim Nabuco e
em estreita coordenação com o Chanceler Rio Branco. Foi bem sucedido porque
tinha todas as qualidades para a diplomacia parlamentar do multilateralismo: o pleno
domínio dos assuntos, a vocação de infatigável trabalhador e a capacidade de
exprimir-se, inclusive de improviso e com perfeição, em francês - a língua
oficial da Conferência – a que se conjugou a combatividade, que sempre o
caracterizou, como advogado, político e parlamentar.
Ruy em Haia contestou a
igualdade baseada na força e sustentou, no âmbito do Direito Internacional Público,
a igualdade dos Estados. A posição do Brasil, pela sua voz, representou uma
primeira formulação brasileira da tese da democratização do sistema internacional
e, nesta linha, uma contestação ao exclusivismo, até então preponderante, do
papel da gestão da vida internacional atribuída às grandes potências. Assim, da
mesma maneira que em nosso país a sua prática de homem público e de publicista
esteve voltada para a construção de um espaço público democrático, e neste contexto,
o Direito foi o meio para o seu perseverante fazer político , assim também em Haia,
na sua prática diplomática, voltou-se coerentemente para os males das
imperfeições do sistema internacional, indicando o papel do Direito na
democratização do espaço internacional.
A autonomia do jurista em
relação ao poder, que caracterizou a maneira de ser de Ruy, também marcou a sua
atuação na Haia. Nela encontrou o tom certo para afirmar a posição independente
do Brasil, cuja especificidade era distinta, como observou, dos que imperavam
na “majestade de sua grandeza” e dos que se encolhiam “no receio da sua
pequenez”.
Ruy manteve a posição
independente do Brasil em relação aos EUA quando este, como potência em
ascensão, se alinhou com as demais Grandes potências. Relevante, neste sentido,
a propósito das relações do Brasil com os EUA, o que Ruy, mais adiante, disse
na sua Conferência, A Imprensa e o dever da verdade: “Não quero, nem
quererá nenhum de vós, que o Brasil viesse a ser o símio, o servo ou a sombra
dos Estado Unidos. Não acho que devemos nos entregar de olhos fechados à sua política
internacional, se bem haja entre ela e a nossa, interesses comuns bastante graves
e legítimos, para nos ligarem na mais inalterável amizade, e nos juntarem
intimamente em uma colaboração leal na política do mundo. Tal é o meu sentir de
ontem, e amanhã.”
Na sua avaliação dos resultados de Haia, Ruy em
discurso de 31 de outubro de 1907 fez uma observação que antecipou o tema “soft
power”, que é de grande relevância para o mundo interdependente em que estamos
envolvidos: ”Hoje, com efeito, mais do que nunca, a vida assim moral como
econômica das nações é cada vez mais internacional. Mais do que nunca em nossos
dias os povos subsistem de sua reputação no exterior”.
O tempo não me permite explorar o alcance de
uma subsequente ação diplomática de Ruy que foi a Embaixada em Buenos Aires, de
1916. Nela representou o Brasil no centenário da independência da República
Argentina. Os documentos desta missão foram reunidos no volume XLIII, 1916,
Tomo 1 das Obras Completas de Ruy, publicados em 1981 pela Casa de Ruy
Barbosa, precedida de um notável prefácio de Evaristo de Moraes Filho.
Em Buenos Aires, Ruy destacou em mais de uma
oportunidade a relevância do potencial de cooperação entre o Brasil e a
Argentina em uma vasta construção na ordem política, na ordem econômica e na
ordem jurídica. É assim um dos importantes patronos da parceria
argentino-brasileira que veio a ser, com grande atualidade, um dos temas fortes
da agenda diplomática de nosso país.
Ruy também proferiu uma importante
Conferência na Faculdade de Direito de Buenos Aires sobre os conceitos modernos
do Direito Internacional, também conhecido como o dever dos neutros, nela
analisado à luz da violência que caracterizou a 1ª guerra mundial. A
Conferência de Ruy teve larga, repercussão, inclusive na França. Desta
substanciosa conferência permito-me destacar como Ruy, com presciência observou
que dada a “interdependência em que até as nações mais remotas vivem umas das
outras, a guerra não pode isolar-se nos estados entre os quais se abre o
conflito”. Sua comoção, estragos e misérias repercutem sobre a fortuna dos
povos mais distantes. Neste sentido, Ruy antecipou o tema da indivisibilidade
da paz que posteriormente veio a ser consagrada, depois do término da 1ª guerra
mundial, pelo Pacto de Sociedade das Nações. (Art. II).
Ruy extraiu da sua avaliação sobre a guerra
um papel diverso do que teve a neutralidade no passado, como examina
circunstanciadamente na sua Conferência. Nas suas palavras: “A imparcialidade
na justiça e solidariedade no Direito, a comunhão na manutência das leis
escritas pela comunhão,
eis aí: a nova neutralidade, que se deriva
positivamente das Conferências da Haia, não flui menos imperativamente das
condições sociais do mundo moderno.”
Haia e Buenos Aires resultam
do empenho de Ruy em arguir no plano externo os méritos da domesticação pelo
Direito da força e dos benefícios da juridicidade nas relações internacionais. A
posição de Ruy está em consonância com dispositivos que regem as relações internacionais
do Brasil, contempladas no art. 4º da Constituição Federal, entre eles a defesa
da paz e a solução pacífica de controvérsias. O empenho de Ruy internacionalista
guarda total coerência com a sua dedicação no plano interno em submeter a razão
de Estado à razão do Direito.
São muito significativas as
iniciativas e contribuições de Ruy na construção institucional do país e que
perduram, com os ajustes do tempo até os dias de hoje. Ruy foi desde o tempo do
Império um defensor do federalismo. Entendia que o sistema federativo era o
único adaptável ao Brasil. Avaliou que a autonomia federativa dos Estados,
republicanizava o país mais depressa e mais seriamente do que se imaginava,
substituindo a inércia das antigas províncias. Daí a importância do seu papel na
modelagem jurídica do federalismo brasileiro desde o governo provisório até a
feição que assumiu na Constituição de 1891.
A criação e o papel do
Supremo Tribunal Federal tiveram em Ruy o seu grande patrono. Destacou, a
propósito do STF no seu discurso de posse de 19 de novembro de 1914 como
presidente do Instituto dos Advogados “o direito-dever de guardar a
Constituição contra os atos usurpatórios do governo e do Congresso.” Guiou-se
pelo seu tema recorrente de “sujeitar à legalidade os governos, implantar a
responsabilidade no serviço à nação” e opor-se “à razão de estado” como a
“negação virtual de todas as constituições”.
Na Oração aos Moços
aponta que “entre as leis ordinárias e a lei das leis, é a justiça quem decide, fulminando aquelas,
quando com esta colidirem”. Também recomendou como paraninfo aos alunos da
turma de 1920 que iriam ser magistrados “não perder de vista a presunção de
inocência, comum a todos os réus, enquanto não liquidada a prova e reconhecido
o delito”; não cortejar a popularidade; não transigir com as conveniências; não
ter negócio em secretarias; não deliberar por conselheiros ou assessores.
Cabe igualmente lembrar que
Ruy, como advogado, respaldado na Corte pelo Ministro Pedro Lessa – antigo
professor de Filosofia do Direito no Largo de São Francisco e membro da ABL –
teve um grande papel na construção do alargamento da doutrina brasileira do
“habeas corpus” como garantia constitucional, que inspirou mais adiante o
instituto do mandado de segurança.
Ruy promoveu desde o governo
provisório (Decreto nº 119-A, de 7/01 de 1890) a separação da Igreja e do
Estado e a laicidade do Estado, consagrada na Constituição de 1891 e nas
constituições subsequentes. Implantou-se deste modo uma nítida distinção entre,
de um lado, instituições, motivações e autoridades religiosas e, de outro,
instituições estatais e autoridades políticas, de tal forma que não haja
predomínio de religião sobre a política. A laicidade não se circunscreve ao
reconhecimento da liberdade de consciência, religião e culto, assinaladora do
pluralismo da sociedade e um dos grandes ingredientes da tutela dos direitos
humanos. Significa que o Estado se dessolidariza e se afasta de toda e qualquer
religião, em função de um muro de separação entre Estado e Igreja, na linha da
primeira emenda da Constituição norte-americana. Esta matriz norte-americana da
laicidade, que influenciou a visão de Ruy, parte do pressuposto que a laicidade
é uma característica de organização do Estado. Não implica na laicidade da
sociedade civil, que é uma esfera autônoma para o exercício, sem interferência
estatal, da liberdade religiosa e de consciência. Trata-se, na lição de Michael
Walzer, de uma expressão da sabedoria liberal da arte da separação. Politicamente
representa uma maneira de responder, no plano jurídico, aos ímpetos
intransitivos da intolerância. Daí a vedação de relação de dependência ou
aliança do Estado com qualquer culto ou igreja, como se lê no § 7º do artigo 72
da Constituição de 1891, que está alinhado com o artigo 19-1 da nossa atual
Constituição. Por isso, num Estado laico como Ruy institucionalizou no Brasil,
as normas religiosas das diversas confissões são conselhos e orientações
dirigidas aos fiéis e não comandos para toda a sociedade.
Esta contribuição de Ruy
para a consolidação e vigência do espaço público e das instituições
democráticas em nosso país é da maior atualidade. Contém o muito presente risco
do indevido transbordamento da religião para o espaço público. Tutela a
finalidade pública da laicidade que é a de criar para todos os cidadãos, não
obstante sua diversidade e conflitos político-ideológicos, uma plataforma comum
na qual possam encontrar-se enquanto integrantes de uma comunidade política
democrática.
Concluo com uma das grandes
lições de Ruy na Oração aos Moços: que ele seguiu na sua vida, obra e
percurso: “os que madrugam no ler, convém madrugarem também no pensar. Vulgar é
o ler, raro o refletir. O saber não está na ciência alheia, que se absorve,
mas, principalmente, nas idéias próprias, que se geram dos conhecimentos
absorvidos, mediante a transmutação, por que passam, no espírito que os
assimila. Um sabedor não é armário de sabedoria armazenada, mas transformador
reflexivo de aquisições digeridas”.