Escrito entre 1519 e 1520,
A arte da guerra foi publicada enquanto Maquiavel (1469-1527) ainda vivia. Suas máximas concisas e conselhos práticos ao príncipe e aos cidadãos são semelhantes a passagens encontradas no general e filósofo chinês Sun Tzu. Entretanto, apesar de sua influência sobre líderes e pensadores, a obra nunca rivalizou em popularidade com
O príncipe, o livro mais conhecido de Maquiavel, muito menos com o
Ping-Fa, de Sun Tzu, ambos encontráveis nas prateleiras de qualquer livraria de aeroporto ao redor do mundo. Vejamos então por que é importante conhecer as ideias de Maquiavel sobre o fazer da guerra.
Em primeiro lugar, a mensagem mais importante de Maquiavel nesse livro ecoa um tema presente nas demais obras histórico-políticas do autor: a intencionalidade da ação, o seu planejamento, uma visão que hoje se convencionou chamar de estratégica. Tudo isso aparece como uma qualidade da ‘
virtú’ e uma necessidade de se construir meios consistentes com os fins para enfrentarmos as surpresas da ‘fortuna’,
dois conceitos que atravessam seu pensamento.
Nas palavras de Maquiavel, aqui transcritas da edição da Editora Universidade de Brasília, “(...) quem pretende fazer alguma coisa deve primeiramente preparar-se de modo que, surgindo a ocasião, tenha condições de satisfazer suas intenções”.
A queda do governo republicano da cidade, em 1512, e o banimento de Maquiavel da vida governamental tornaram mais claro ainda esse princípio. Nas obras que escreveu nesse período, como destacou Newton Bignotto em Maquiavel republicano, evidencia-se a sua convicção de que o “processo de fundação e conservação de uma república não é independente da escolha de sua estratégia de defesa”.
Seja em
O príncipe (1513), nos
Discursos sobre a primeira década de Tito Lívio (1513-1519) ou na
Arte da guerra (1519-1520), a questão militar ocupa um lugar central nas preocupações de Maquiavel, cuja contribuição singular para o pensamento político reside no realismo de sua concepção sobre as relações existentes entre força e convencimento, bem como na dimensão ética da articulação entre fins e meios.
Como observou o autor
Félix Gilbert, longe de tentar eliminar os conflitos, inclusive a guerra, Maquiavel os considera próprios à natureza da política, encontro da liberdade humana com a natureza e as necessidades. A conquista e a conservação dos objetivos políticos são possíveis, mas o poder da fortuna limita a liberdade de ação e não permite o conhecimento completo. Portanto, a ética é constituída pela própria conduta na ação política, pelo conteúdo dos fins estabelecidos, pela maneira de lidar com as necessidades e pelo resultado objetivo que a ação ajuda a estruturar no tempo e no espaço.
O papel dos cidadãos
O segundo motivo mais importante para se ler A arte da guerra com atenção ainda hoje diz respeito ao papel dos cidadãos na defesa da república. O crescimento das empresas militares privadas no mundo contemporâneo e as recomendações para a conformação de forças armadas “enxutas e profissionais” atualizam a questão.
Escrevendo no alvorecer da era moderna, o secretário florentino ocupou-se da guerra e da organização militar desde 1500, quando uma nova fase da guerra entre Pisa e Florença levou-o a defender a criação de milícias regulares, não mais compostas principalmente por mercenários.
O segundo motivo mais importante para se ler A arte da guerra com atenção ainda hoje diz respeito ao papel dos cidadãos na defesa da república
Na verdade, a partir de 1505 dedicou-se pessoalmente a executar planos para o rearmamento de Florença. Dentre outros escritos, destaca-se o seu Discurso sobre a preparação militar florentina, de 1506. Nomeado para o Conselho dos Dez das Milícias, concentrou-se nas tarefas práticas de organização de uma força militar consistente com o duplo requisito da estabilidade dos Estados: a justiça e as armas.
Interpretando fatos da época e reinterpretando a história da República romana, Maquiavel estava convicto de que não se poderia fundar e manter uma República moderna confiando apenas em mercenários e senhores da guerra (condittieri), pois somente um exército de conscritos poderia garantir a independência das cidades-estado italianas.
Os aspectos financeiros, logísticos, táticos e morais do exército de conscritos também não escaparam à Maquiavel. Não apenas afirma ele que “na guerra, a disciplina pode mais do que o ímpeto”, mas vê no armamento e na conscrição de elementos urbanos e rurais, bem como nas formas de treinamento e comando de tal força pública, um elemento de enfraquecimento relativo das classes abastadas e de amalgamento de elementos populares ao tecido institucional, moral e social do qual é feito o governo.
“A descoberta de Maquiavel não é, portanto, a da importância de uma boa milícia, mas sim de que uma boa milícia exige uma forma democrática de governo”, escreve Bignotto. O apelo ao patriotismo dos cidadãos-soldados só é possível se as instituições militares são consistentes com as instituições políticas. Portanto, se refaz o nexo entre o chefe militar e o chefe político (que o subordina), seja ele o príncipe ou o povo, conforme o tipo de Estado e de regime do país.
Aceitação questionável
Por outro lado, também é possível mencionar pelo menos dois elementos que dificultam a aceitação das ideias de Maquiavel sobre a guerra por parte do leitor contemporâneo. Em primeiro lugar, o fato mesmo de que as suas prescrições e lições não chegam a configurar uma teoria moderna da guerra, entendida como um programa de pesquisa científico, o qual desenvolve-se apenas no século 19, especialmente a partir da obra de Clausewitz (1780-1831).
O autor de Vom Krieg conhecia e respeitava as posições de Maquiavel, mas ainda que tenha deixado sua obra inacabada, uma leitura mais cuidadosa mostra a recusa de Clausewitz em subordinar a análise conceitual e empírica da guerra a preceitos gerais de caráter normativo que teriam validade universal, erro incorrido por Maquiavel e que o leva, por exemplo, a não considerar adequadamente o papel revolucionário da artilharia e das armas de fogo, focado que estava na evocação da infantaria e da condução dos assuntos militares na República romana antiga como contraponto à prioridade dada à cavalaria no fazer a guerra da aristocracia medieval.
- Alguns pontos relacionados à conduta de Maquiavel podem levar ao questionamento de suas ideias sobre a guerra. Um deles foi o fato de não considerar adequadamente o papel revolucionário da artilharia e das armas de fogo na época. (imagem: Wikimedia Commons)
Em segundo lugar, a própria forma utilizada por Maquiavel para redigir A arte da Guerra dificulta o acesso do leitor contemporâneo. A obra é dividida em um prefácio e sete livros (capítulos), na forma de um diálogo socrático que ocorre nos jardins construídos na década de 1490 para os aristocratas e humanistas florentinos.
O diálogo ocorre entre Cosimo Rucellai e Fabrizio Colonna (alter-ego de Maquiavel?) com outros patrícios e capitães da então recente república florentina, remetendo aos méritos das legiões romanas e procurando refutar a asserção de que a artilharia tornaria obsoletos os métodos clássicos.
Seja como for, vale estudar Maquiavel depois de 500 anos, lembrando, para citar palavras suas, que “os bons comandantes nunca se empenham numa batalha se a necessidade não os impele, ou a oportunidade não os chama”.
Marco Cepik
Diretor do Centro de Estudos Internacionais sobre Governo (CEGOV)
Universidade Federal do Rio Grande do Sul