O trabalho que segue foi elaborado por mim no final de 2013, e apenas divulgado neste blog e em um ou outro desses boletins digitais que circulam alegremente no ciberespaço, sem receber ISSN ou qualquer outro crédito editorial. Não importa: não escrevo primariamente para ser publicado e divulgado amplamente, mas apenas por necessidade interna, primariamente, depois como forma de sistematizar algumas reflexões pessoais a partir de algumas leituras ou observações do momento, em último lugar, para alinhar argumentos que espero racionais em benefício dos mais jovens, que sempre podem aprender alguma coisa com quem já leu bem mais do que eles (pelo tempo, não por alguma inteligência especial) ou que tem mais experiência de vida, por ter viajado e aprendido algumas coisas ao redor do mundo, este nosso planetinha redondo, como diria um outro neófito.
Em todo caso, segue novamente reproduzido aqui, pois entendo que corresponde um pouco ao início de campanha eleitoral, no que ela possa ter de superficial, de mentiroso, de enganações, enfim, de todas essas maravilhas que nos prometem os candidatos. Como eu sou bem mais realista, prefiro deixar bem claro o que penso de toda essa malta e dos nossos problemas.
Paulo Roberto de Almeida
A degeneração, para os
neófitos
Paulo Roberto de Almeida
Degeneração é um outro nome para a decadência, processos que podem
atingir indivíduos, empresas, instituições públicas e privadas, sociedades ou
comunidades nacionais, enfim, países inteiros, nações antigas e modernas,
emergentes ou avançadas. Todos sabemos o que esses conceitos significam,
mediante uma simples consulta aos dicionários ou à literatura da área: os
registros disponíveis falam da erosão gradual dos costumes, da inoperância dos
poderes constituídos, da corrosão progressiva das relações entre pessoas e
grupos inteiros, da perda de dinamismo da base econômica, enfim da descrença
generalizada das pessoas na validade e legitimidades dos valores e princípios
que anteriormente davam sentido a uma determinada formação social.
Não é difícil reconhecer sinais de decadência, de retrocesso, ou
mesmo de simples estagnação, na vida do país: baixo crescimento econômico,
inovação declinante, dívidas crescendo, desigualdades persistentes ou em
expansão, população em processo de envelhecimento, comportamentos desviantes ou
antissociais. O que pode ter acontecido de errado? O mais provável é que as
instituições nacionais estejam enfrentando um processo de degeneração contínua,
o que se traduz em retrocesso no seu funcionamento e em nítido recuo na sua
capacidade de organizar a vida do país.
E quais são as instituições que podem estar atravessando esse
declínio? Elas são: o governo representativo, os mercados livres, o Estado de
direito e a própria sociedade civil. Estas são as instituições fundamentais que
construíram a prosperidade e o bem-estar da nação e que podem agora caminhar
para um itinerário de estagnação ou até mesmo de retrocesso.
Estou falando do Brasil, certo? Não exatamente...
Estou simplesmente transcrevendo a orelha de um livro que leio agora
(dentre vários outros), de Niall Ferguson, The Great Degeneration: How
Institutions Decay and Economies Die (New York:
Penguin Press, 2013), que trata exclusivamente das sociedades avançadas do
Ocidente capitalista: Estados Unidos e Europa ocidental, basicamente. Para o
conhecido historiador econômico, é a degeneração institucional que está por
trás da estagnação econômica e do declínio geopolítico que dela decorrem. O
livro analisa as causas dessa degeneração e suas profundas consequências para o
modo de vida, o bem-estar e o futuro das populações dessas nações avançadas
econômica e tecnologicamente e dispondo, ainda, de níveis de vida invejáveis
para todos os demais povos do planeta. Mas os sinais se acumulam de negligência
e de complacência com o lento declínio, observável a olhos vistos em alguns
países, e detectável em diversos estudos de especialistas econômicos. O
Ocidente, para Ferguson, está desperdiçando a herança institucional que erigiu
durante séculos e que foi responsável pela sua preeminência mundial no último
meio milênio. Para reverter a ruptura dos seus padrões civilizatórios, Ferguson
recomenda reformas radicais e lideranças à altura dos desafios.
Pois bem, o que isso tem a ver com o Brasil? Em 2002, em plena
campanha eleitoral que se traduziu na mais importante mudança política já ocorrida
na história republicana do Brasil em condições de pleno funcionamento
democrático – ou seja, fora de golpes militares ou de revoltas civis – e que se
traduziu pela vitória do principal partido de oposição ao regime em vigor, eu
redigia os parágrafos finais de um livro que seria publicado no início de 2003,
logo em seguida à posse do novo governo: A
Grande Mudança: consequências econômicas da transição política no Brasil
(São Paulo: Códex, 2003). Nele, escrito antes mesmo dos dois turnos das eleições de
outubro daquele ano, eu já previa com segurança a vitória do candidato opositor
e traçava um roteiro do que iria acontecer e do que se esperava que ocorresse a
partir de 2003. Eu tinha certeza, por exemplo, da ruptura “neoliberal” no
terreno econômico, obviamente em relação ao que recomendavam os economistas
“aloprados” do PT, a maior parte ainda imbuídos daquela rústica esquizofrenia
econômica que ainda caracteriza boa parte da esquerda acadêmica no Brasil, Eu
também achava que os novos donos do poder – aqui sem qualquer ilusão – iriam
realmente introduzir um novo estilo de fazer política no Brasil, não
basicamente ético, como proclamava sua propaganda mistificadora, mas em todo
caso diferente, e que tudo isso poderia ser um sinal promissor de uma grande
transformação na vida da nação.
Como vários outros
observadores, fui confirmado, para melhor, nas minhas antecipações econômicas
e, como a maior parte dos analistas honestos, fiquei chocado, num cenário bem
pior do que se poderia imaginar, com as fraudes políticas, o reino de mentiras
e todos os crimes comuns logo cometidos pela nomenklatura que se apossou do
poder naquela conjuntura. Não que eu tenha ficado absolutamente surpreendido
com a possibilidade dessas transgressões, mas todos fomos surpreendidos pela
extensão, amplitude e profundidade das falcatruas cometidas pelo grupo que
pretendia reintroduzir a ética na vida política do Brasil. Ou seja, não foi uma
surpresa total – pelo menos para os que acompanharam a vida política, sindical
e a trajetória da esquerda no país, desde os anos 1960 – mas foi chocante
descobrir quão baixo era possível descer na degeneração moral e nas patifarias
políticas em tão pouco tempo.
Paradoxalmente,
esse livro, que foi o que me deu maior prazer na redação e na reorganização de
alguns materiais que já tinham sido preparados nos meses anteriores ao ano
eleitoral, foi, no entanto, o que menor sucesso de público teve, provavelmente
porque eu me encontrava no exterior no momento de sua publicação; depois, já de
volta ao Brasil, e trabalhando no coração do Estado, não podia defender
abertamente certas teses que foram sendo confirmadas ao longo dos meses e anos
seguintes.
Estruturado em
três partes, A Grande Mudança
tratava, em primeiro lugar, de uma nova forma de fazer política no Brasil – mas
eu estava apenas imaginando, e sugerindo medidas de correção de nossos
principais defeitos, se eu mesmo fosse presidente – e, numa segunda parte, se
ocupava da economia: nela eu já previa, em quatro capítulos revisionistas, a
orientação abertamente “neoliberal” da gestão econômica, tese que me rendeu
muitos apupos em seminários acadêmicos de que participei, para desgosto de
certa esquerda alienada (como, por exemplo, no encontro de ciências sociais da
Anpocs, em outubro de 2003). Numa terceira parte, eu tratava de temas
internacionais, num sentido amplo: o fim do socialismo e suas consequências
para o Brasil, a globalização e as negociações econômicas internacionais e
regionais, com algum destaque para o projeto americano de acordo hemisférico de
livre comércio, a malfadada Alca (que pronto seria implodida pelos novos
governantes).
Não pretendo,
obviamente, mais de dez anos depois de redigido aquele livrinho polêmico,
retomar suas teses principais para confirmar ou corrigir meus argumentos em
torno da economia, da política ou das relações internacionais do Brasil. Mas,
na onda de euforia continuada – e bastante reforçada por doses maciças de
propaganda enganosa – com o “sucesso” do governo em vigor, minha intenção agora
é a de examinar, com minha lupa impiedosa e meu bisturi iconoclasta, o que eu
considero ser, de fato, um retrocesso institucional, um dos mais profundos em
nossa história republicana, e que não tem a ver, apenas, com o baixo
crescimento e a perda de dinamismo da economia nacional, e sim com fatores
políticos alimentados e reforçados pelo partido no poder.
Meu objetivo é
puramente analítico, uma vez que não pertenço, nem nunca pertencerei, a
qualquer partido ou agrupamento político, incapaz que sou de me submeter à
disciplina de qualquer programa que possa ser elaborado por algum movimento
determinado, de qualquer orientação política ou ideológica que seja. Sou por
demais libertário para me dobrar às conveniências eleitorais de qualquer
liderança política, pretendendo, ao contrário, manter minha independência de
pensamento seja qual for o partido ou a coalizão que ocupar o poder, agora em
2014 ou mais adiante.
O que tenciono
fazer, nos meses de campanha eleitoral, é justamente me libertar da ditadura
dos eventos correntes e das pesquisas de opinião para refletir sobre o que é o
Brasil atualmente, como ele chegou ao estado atual de retrocesso institucional,
e como ele poderia avançar, no terreno econômico, político e educacional, com
base em análises totalmente descompromissadas com as plataformas eleitorais e
resolutamente orientadas para uma crítica radical da atual situação de erosão
moral e decadência política em nosso país. Para isso, não necessito do modelo
analítico de Niall Ferguson para poder examinar o caso do Brasil; mas acredito,
sim, que a clara decadência do governo representativo, o retrocesso visível em
relação às reformas econômicas que vínhamos experimentando desde os anos 1990,
a perda do sentido do respeito à lei e a deformação completa da noção de sociedade
civil, sob a nova hegemonia dos “companheiros”, são elementos importantes do
que chamei de grande retrocesso no Brasil.
A esses quatro
grandes fatores podemos acrescentar diversos outros, entre eles aquilo que eu
também já chamei de “mediocrização” do estabelecimento universitário no Brasil,
que na verdade percorre toda a cadeia do ensino, do primário ao pós-doutorado,
em especial nas ciências sociais e humanidades (mas a que não estão imunes
outras vertentes da pesquisa especializada. Ela é obra, em grande medida, das
“saúvas freireanas”, ou seja aquela classe de pedagogos deformados, inspirados
na obra de um dos nossos grandes idiotas, Paulo Freire, e que o elevaram à
condição de “patrono da educação brasileira”.
O Brasil tem, por certo, muitas outras causas que explicam sua atual
decadência institucional e seu renitente retrocesso econômico, que poderão ser
examinadas com maior ou menor grau de detalhe. O importante seria destacar,
neste momento, meu compromisso com uma análise empiricamente embasada, meu
engajamento com um trabalho intelectual voltado para a busca de soluções
factíveis, não utópicas (como em geral a esquerda costuma fazer), para os
problemas do Brasil, e a irrenunciável postura de independência em relação a
quaisquer forças ou movimentos voltados para a luta político-partidária e a
conquista do poder. Sequer aspiro à condição de “conselheiro do príncipe”, pois
sou um péssimo conselheiro – devido a minha brutal sinceridade – e não pretendo
servir a nenhuma liderança política. Minha vocação está unicamente voltada para
o estudo e a compreensão dos problemas brasileiros e a aplicação das soluções
mais racionais, do ponto de vista da eficiência econômica e da justiça social,
para os desafios detectados. Não tenho nenhuma ilusão de que quaisquer
propostas que eu possa ter venham a ser implementadas, não que elas sejam
exatamente utópicas, mas porque o Brasil carece de estadistas que possam
liderar um processo de reformas que julgo necessário e até indispensável se
quisermos inverter a nossa trajetória atual de decadência e de retrocesso.
Os dados estão lançados em face de um cenário ainda altamente
incerto em seus desdobramentos eleitorais, e o meu roteiro de navegação ainda
está sendo traçado. Em mais alguns meses veremos se o diário de bordo traz
algumas propostas inteligentes. Ao trabalho, daqui para a frente.
Hartford, 14 de Dezembro de 2013.