Bolsonaro é uma aberração na história
Taísa Szabatura
Como diplomata e ex-ministro da Fazenda, Rubens Ricupero, 84 anos, testemunhou sete décadas de história do Brasil de uma posição privilegiada. Após terminar a faculdade de Direito, entrou para o Instituto Rio Branco, que forma os funcionários que trabalharão para a política externa do País, e começou a sua carreira no Itamaraty em 1960. Hoje é considerado por seus pares uma enciclopédia, por saber dados e números nacionais de vários períodos de cabeça. Passa a pandemia dando aulas virtuais e trabalha em seu próximo livro sobre a realidade brasileira, ainda sem título definido. Imunizado com a primeira dose da AstraZeneca, observa com espanto os disparates do governo Bolsonaro. Em entrevista à ISTOÉ festejou a queda do ministro das Relações Exteriores, Ernesto Araújo, considerado por ele como “condutor desastroso” da diplomacia desde o início do governo, e criticou a inoperância do ministro da Economia, Paulo Guedes, afirmando que nada realizou. “A política atual peca porque a visão de mundo que eles têm é irracional. São seguidores de uma seita”, disse. “Os atuais governantes são lunáticos e insanos, pessoas que não têm contato com a realidade.”
Quais forças que levaram à queda de Ernesto Araújo?
Ele caiu pelo conjunto da obra, graças à diplomacia desastrosa que conduziu desde o início do governo. Os erros cometidos em matéria de vacina ou a hostilidade à China não só em relação ao 5G, mas de modo geral, formam parte desse conjunto. Em termos imediatos, foi o Congresso, em especial o Senado, que impulsionou a ofensiva final contra ele. É preciso lembrar, porém, que há muito tempo ele era unanimidade: todos eram contra ele, a começar pela imprensa, os meios acadêmicos, os setores políticos junto aos quais sempre despontava como o pior ministro do governo.
Quais os erros dele à frente do ministério o senhor destacaria?
O principal foi aceitar a pregação de Olavo de Carvalho, através de quem fez sua carreira e chegou à posição de ministro. Foi por meio desse guru que ele se aproximou de Eduardo Bolsonaro e tantos outros. É um grupo sectário, que tem uma visão de mundo conspiratória e acredita que há uma destruição da herança política judaico-cristã, chamada globalismo. Organizações como a ONU, que procuram promover valores e novas regras, que violariam a tradição bíblica, seriam algo a ser combatido. A tolerância com as minorias sexuais e a promoção da igualdade de gênero, por exemplo, são vistas como uma ameaça. É em função disso que eles idealizam a política externa. Eles partem de uma visão distorcida da realidade mundial e, quando você tem um diagnóstico errado, qualquer terapêutica também será um equívoco.
Viramos realmente um pária perante o mundo?
Já somos um pária, não há dúvidas. São muitas as questões que nos envergonham, como direitos humanos, a questão dos povos indígenas, meio ambiente, destruição da Amazônia, a pandemia, os direitos da mulher e das minorias. É uma lista extensa de temas em que o Brasil está completamente na contramão do que se poderia chamar de estado atual da consciência moral da humanidade. Araújo e o próprio Bolsonaro, são pontos absolutamente fora da curva da nossa história. Acho que ambos, que são no fundo a mesma coisa, representam uma anomalia, uma aberração na história do Brasil e tenho confiança que essa aberração não vai durar além da eleição do ano que vem. Alguns erros já cometidos são, contudo, irreparáveis.
Quais seriam?
O Brasil era sempre visto como uma força de moderação, que buscava edificar consensos e evitava posições extremas. Tudo isso era uma constante em nossa história. Mesmo no governo Lula, em relação ao governo Fernando Henrique, houve continuidade. Claro que cada um dos governos teve ênfases diferentes, mas houve compatibilidade de valores. Ou seja, todos os governos democráticos, apenas com a exceção do atual, todos tinham a mesma adesão aos princípios básicos de direitos humanos. Com Bolsonaro, não. Dessa vez nós temos um governo que começou com um erro colossal de avaliação e não partiu de um bom julgamento da realidade internacional. Antes de se definir uma “diplomacia”, você precisa se perguntar: “Em que mundo eu estou situado? Quais são os problemas desse mundo e suas forças?” É a partir desse diagnóstico que se define como é possível obter o melhor resultado para o País.
E o governo não fez isso?
A política atual peca porque a visão de mundo que eles têm é irracional. São seguidores de uma seita. Na política há vários vieses, desde esquerda, extrema esquerda até extrema direita, mas esse grupo está fora do espectro. Os atuais governantes são lunáticos e insanos, pessoas que não tem contato com a realidade.
Bolsonaro é responsável por essa insanidade?
Bolsonaro é uma figura intelectualmente primitiva. Isso não quer dizer que ele não seja esperto. Ele tem intuição, tem astúcia de uma pessoa que procura sempre levar vantagem, mas ele não é alguém que leia livros ou que se preocupe com teorias assertivas. Ele não elabora nada.
As falhas de diagnóstico também valem para a estratégia econômica adotada pelo ministro Paulo Guedes?
O caso do Guedes é diferente. Ele deve achar esse papo de globalismo uma baboseira enorme, pois é um homem do mercado financeiro. Ele deve ter pouca paciência com essas teorias de Olavo de Carvalho. Ele tem outro tipo de problema: uma visão anacrônica do neoliberalismo da escola de Chicago. Ele quer aplicá-la justamente no momento em que os antigos praticantes a estão abandonando. O grande pecado dessa escola é o de dar uma confiança excessiva ao mercado e minimizar a posição do Estado. O pior problema do Guedes é que ele não tinha experiência prática no serviço público. Sem nenhum conhecimento de regras orçamentárias, ele começou a apresentar propostas fora das possibilidades do País.
O que o senhor chama de propostas fora da realidade?
Guedes disse que iria zerar o déficit público em um ano. Olha, o déficit público brasileiro é um problema que desafia o governo desde a independência, em 1822. Nenhum governo brasileiro conseguiu zerar isso. Como imaginar que alguém, por milagre, iria fazer isso em um ano? E como ele iria fazer? Vendendo todas as estatais e todos os imóveis da União? Aí ele também se enganou. Há muitas estatais que são dificílimas de vender, pois a resistência é muito grande, como Petrobras, Banco do Brasil e por aí vai. Tanto isso é verdade que ele não conseguiu mover um centímetro na privatização dessas estatais. Também os imóveis, são uma ficção. No papel, a União federal é dona de milhões e milhões de imóveis, mas muitos desses imóveis estão ocupados, às vezes há mais de um século, por posseiros ou outras pessoas. Ele mostrou que não tinha nenhum conhecimento real do problema. E o déficit só aumentou no lugar de diminuir.
Mas ele conseguiu aprovar a Reforma da Previdência. Isso não seria um sucesso?
Foi a única reforma que ele fez. E essa reforma já estava mais do que mastigada pelo Temer. Só não passou na época do Temer por causa daquele fatídico encontro, a altas horas da noite, dele com o dono da JBS. Não fosse isso, já estava pronta para ser votada. O atual governo recebeu isso de bandeja. Guedes até atrapalhou, não fez nada. As reformas Administrativa e Tributária estão paradas. No caso da tributária, ele está totalmente perdido. Ou seja, tudo indica que esse governo terá chegado ao fim tendo feito pouca coisa.
O senhor acredita no impeachment?
É difícil fazer uma previsão. Acho que no momento não há nada que indique politicamente que o impeachment irá ocorrer.
Tirar Bolsonaro não resolveria o caos na saúde?
Fui favorável ao impeachment desde o início do governo. Desde os primeiros momentos tivemos vários exemplos de crimes de responsabilidade que se multiplicaram, principalmente agora na pandemia. Porém, não houve uma mobilização da população na rua. E, além do mais, o presidente soube agir de uma maneira tática, procurando ganhar o apoio do Centrão e, pelo menos por enquanto, não parece correr o risco de deixar o poder. Não há dúvida de que nas próximas semanas e meses, veremos a situação da pandemia piorar muito. Já é insuportável, mas irá piorar ainda mais. Só vai melhorar quando tivermos vacinas e a campanha de vacinação ganhar mais ritmo. Infelizmente, isso só ocorrerá no segundo semestre e provavelmente até o fim do ano.
Quanto tempo vai demorar para o Brasil recuperar sua reputação internacional?
Se houver uma mudança de governo nas próximas eleições e nós tivermos uma política externa mais objetiva, sim. É algo que não é difícil: basta fazer o contrário do que está sendo feito. A nossa política externa é a anti-diplomacia. Até as pessoas que não são familiarizadas com a diplomacia, conseguem entender que isso não é um bicho de sete cabeças. Existe um livro famoso chamado “Como fazer amigos e influenciar pessoas”, do Dale Carnegie, que explica isso: diplomacia é fazer amigos e influenciar pessoas. O Brasil faz o contrário. Faz inimigos, hostiliza e antagoniza as pessoas.
Por quê o governo Bolsonaro critica tanto a China?
Estão provocando a China, pois sabem que é um país com uma perspectiva de longo prazo. A China não pensa em semanas ou meses, mas em décadas à frente. Até séculos. Porém, o país também é muito suscetível, já que no passado sofreu muita humilhação por parte dos ocidentais. Nós tivemos esse problema gigantesco no caso das vacinas. O atraso no fornecimento da matéria-prima, o IFA, foi um sinal que o governo chinês mandou como uma advertência ao governo brasileiro. Tanto que agora o governo parou de insultar a China. O governo andou até implorando ao embaixador chinês que permitissem a Bolsonaro uma conversa com Xi Jinping, algo que não lhe foi concedido. O atraso foi de algumas semanas e o Brasil sentiu as consequências disso. Uma coisa que mudou também foi a postura em relação à tecnologia do 5G, antes duramente criticada. Falava-se até em proibir a participação dos chineses no consórcio. Isso mudou da água para o vinho e o negócio está andando. Viram que se negassem isso à China, seria uma declaração de guerra.
Como o governo Biden pode ajudar o Brasil?
A eleição dele é um grande avanço. Logo no começo ele se voltou para o Acordo de Paris, se voltou para a OMS e para o Conselho de Direitos Humanos. Conseguiu aprovar esse pacote de ajuda trilionária aos seus cidadãos. Está conseguindo vacinar velozmente a população e tudo isso influencia o resto do mundo pelo exemplo. As pessoas esperam que os Estados Unidos promovam a democracia onde ela não existe, mas a melhor contribuição que eles podem dar é pelo próprio exemplo. O Trump era o anti-exemplo.