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Este blog trata basicamente de ideias, se possível inteligentes, para pessoas inteligentes. Ele também se ocupa de ideias aplicadas à política, em especial à política econômica. Ele constitui uma tentativa de manter um pensamento crítico e independente sobre livros, sobre questões culturais em geral, focando numa discussão bem informada sobre temas de relações internacionais e de política externa do Brasil. Para meus livros e ensaios ver o website: www.pralmeida.org. Para a maior parte de meus textos, ver minha página na plataforma Academia.edu, link: https://itamaraty.academia.edu/PauloRobertodeAlmeida.

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quinta-feira, 29 de outubro de 2020

Perspectivas para as relações internacionais do Brasil: desafios de uma diplomacia ideológica - Paulo Roberto de Almeida

 Perspectivas para as relações internacionais do Brasil:

desafios de uma diplomacia ideológica

 

Paulo Roberto de Almeida

Notas para palestra para estudantes de RI da USP, a convite do Instituto Brasileiro de Debates; dia 28/10 às 20h, via zoom; disseminado via YouTube (link: https://youtu.be/xoOyjqahJRI). 

 


Questões selecionadas para exposição e debate: 

1) O sistema global: multilateralismo, direito internacional, política de poder

     Como a diplomacia brasileira vê o mundo e o papel dos principais atores

2) As Nações Unidas: reforma da Carta e conquista de cadeira no CSNU

     Uma velha aspiração, por vezes uma obsessão, o G-4 e as ilusões diplomáticas

3) A OMC e o esgotamento das negociações comerciais multilaterais 

     Brasil: ator diplomático relevante, a despeito da pequena participação nos fluxos

4) As relações bilaterais, em especial com países em desenvolvimento 

     A lenta construção de uma liderança, nem sempre bem orientada ou bem-sucedida

5) OCDE, G7; OTAN e os dilemas dos emergentes; como quebrar barreiras?

     Penetrar no inner circle, sem necessariamente entrar no clube; dupla personalidade?

6) Brasil, membro do BRICS: divergências, assimetrias, novas ilusões

     O peso de uma herança diplomática: o que fazer com cúpulas e com um banco? 

7) Mercosul: a escolha estratégica desde os anos 1990, necessitando reformas

     De um projeto de mercado comum às realidades da desintegração: o que fazer?

8) Relações com a Argentina: a mais importante relação, no mais baixo ponto

     Compromissos e não-soluções: fuga para a frente, em lugar de enfrentar os problemas

9) Relações com a China: a dimensão mais crucial do presente e do futuro do país 

     Objetivos múltiplos, estratégias diferentes para cada carência percebida do Brasil

10) Relações com a União Europeia: quais são as prioridades?

     A grande ilusão de um acordo comercial generoso: enfrentando as duras realidades

11) Relações com os Estados Unidos: da negligência benigna ao servilismo? 

Ups and downs de uma relação não muito especial: distância e proximidade

12) A ferramenta diplomática do Brasil: existe coerência na política externa?

     O processo de tomada de decisões: atores, iniciativas, orientações subjacentes. 


[Brasília, 9 de outubro de 2020]



 

sexta-feira, 13 de março de 2020

A diplomacia ideológica do governo Bolsonaro - Maristela Basso (Na Pauta online)


Os riscos da diplomacia do conflito


Sob Jair Bolsonaro, a diplomacia brasileira assumiu, sim, viés
ideológico. Do estilo “nunca antes visto no Brasil”, dos governos
petistas, passamos ao do “Brasil acima de tudo”, inclusive do
direito internacional e do multilateralismo pragmático alinhado e
bem arrumado da velha Academia de Rio Branco.
O Presidente Donald Trump, quando assumiu a presidência dos EUA, em 2017, trouxe de volta ao cenário internacional a já em desuso “diplomacia do conflito”, ou “do confronto”, intensificou a aplicação de sanções internacionais e passou a denunciar acordos importantes, dentre os quais, o de Paris sobre a mudança do clima, assim como o de não proliferação de armas nucleares.
O governante americano prefere o confronto à negociação e despreza a “diplomacia do consenso”. Ele não tolera o dissenso, não suporta o contraditório e tem a pretensão de rever a ordem internacional da “pax americana”, inaugurada no pós segunda guerra mundial.
No período de pouco mais de três anos no poder, as “negociações” iniciadas por Donald Trump tiveram pouco sucesso, exceto no que diz respeito ao Acordo Comercial com a Coreia do Norte, cujo presidente, Kim Jong-un, demonstra traços de personalidade e caráter semelhantes àqueles do presidente americano, associados aos mísseis intercontinentais capazes de incrementar qualquer entendimento diplomático. Trata-se da mais clara disputa pelo ultrapassado e conhecido “hard power”, ou “diplomacia dos canhões”. Nessa toada, também abriu flanco para a revisão do Tratado NAFTA[1] que precisava melhor se adequar aos interesses da nova ordem econômica americana pretendida por Trump.
Por outro lado, o Irã, embora presente na lista de prioridades do presidente Donald Trump, não representa uma ameaça militar efetiva aos EUA, e as relações entre esses dois países sempre foi de desconfiança, hostilidade e permeada de conflitos. Ambos vivem às turras em uma relação de represálias recíprocas.
A América Latina não existe para Donald Trump e sua proximidade com o presidente Jair Bolsonaro, se de fato existe mesmo, é de “intuitu personae” (personalíssima), e não se estende ao Brasil como tal.
Sob Jair Bolsonaro, a diplomacia brasileira assumiu, sim, viés ideológico. Do estilo “nunca antes visto no Brasil”, dos governos petistas, passamos ao do “Brasil acima de tudo”, inclusive do direito internacional e do multilateralismo pragmático alinhado e bem arrumado da velha Academia de Rio Branco.
Jair Bolsonaro reintroduziu no país práticas abandonadas há décadas pela nossa tradicional diplomacia, inclusive algumas já sepultadas no pós-regime militar brasileiro. Ademais, rejeita a independência que tínhamos conquistado dos EUA e recrudesceu a aproximação que vínhamos costurando de forma exitosa com os irmãos africanos. Não bastasse, o presidente Jair Bolsonaro deixou de observar o princípio da não intervenção nos assuntos internos dos nossos países vizinhos, as boas relações com os europeus e também nosso pragmatismo histórico.
Tudo isso porque Jair Bolsonaro prioriza, ingenuamente, as afinidades pessoais e ideológicas com certos governantes, em detrimento dos verdadeiros interesses do Brasil.
Dito de outra forma, Jair Bolsonaro decretou, no Brasil, o fim da ponderação, sensatez, circunspecção e proeminência do Itamaraty na condução da nossa politica externa e passou, ele mesmo, a traçar diretivas, criar agendas e construir e derrubar pontes. Com Bolsonaro, ou sob Bolsonaro, instaurou-se no país a “diplomacia do conflito e da surpresa”. Isto porque, nosso presidente está sempre pronto a brigar, discutir, contrariar e chocar. Não sabe governar para todos, pacificar, construir consensos, tanto no âmbito interno (nacional) quanto internacional.
Segundo afirmou nosso ex-Ministro Celso Lafer[2], a diplomacia do governo atual rompe a tradição do Itamaraty por ser de “enfrentamento”, que conduz a uma “diplomacia de combate”.
A tradição do Brasil sempre foi a da “diplomacia de cooperação”. Sempre primou pela solução pacífica das controvérsias, internas e internacionais, pela prevalência dos direitos humanos, do império do Direito e, em especial, pela elegância hermenêutica.
Em um mundo tensionado como o atual, com disputas importantes entre os EUA e a China e os renovados conflitos no Oriente Médio, o diálogo tornou-se fundamental e a diplomacia precisa ser construtiva.
A identificação de Jair Bolsonaro com Donald Trump, e outros líderes autoritários, não contribui para o fortalecimento do Brasil, nas suas esferas complementares interna e externa.
Jair Bolsonaro segue entrincheirado na zona de conflito, porque sabe fazer politica apenas por meio de altercações, brigas, escaramuças e ataques, foi assim que conduziu sua campanha eleitoral, com esse “modus operandi” se elegeu e com atritos exerce suas politicas, doméstica e externa, comunica-se com a imprensa e tenta desacreditar oponentes e dissidentes.
Como se vê, a diplomacia do “hard power” foi retomada pelo presidente Donald Trump. Já, no Brasil, nosso presidente inaugurou, no contexto da diplomacia internacional, o que pode ser chamado de “lost power”.
Porém, nem tudo está perdido.
A boa notícia para os brasileiros é que alguns de nossos governadores estão assumindo papel importante no cenário internacional, ocupando espaço na condução de políticas (regionais) internacionais. Passaram a celebrar, diretamente, acordos internacionais de cooperação em múltiplas áreas, trazendo, assim, investimentos estrangeiros para as suas regiões, e construindo parcerias com importantes players internacionais, servindo-se do que se chama de “sharp power”. Isto é, penetrando e perfurando o ambiente político e informativo dos países que mais interessam, desenvolvendo habilidades e ferramentas próprias com o intuito deliberado de influenciar e atrair politicamente nações estratégicas, seus governantes e investidores.
[1] Acordo de Livre Comércio Entre Canadá, Estados Unidos e México.
[2] Link para matéria: https://www.nexojornal.com.br/expresso/2018/02/06/O-que-%C3%A9-sharp-power.-E-como-ele-pode-minar-governos

quinta-feira, 16 de maio de 2019

Ernesto Araújo, a batalha de Viena e o choque entre civilizações - Filipe Figueiredo (GP)

O autor desta matéria, muito bem pesquisada e excelentemente bem exposta, Filipe Figueiredo, coloca água no feijão do chanceler, que pretende provar que está em campanha para salvar uma coisa chamada civilização cristã ocidental, mas que na verdade nunca existiu com essa consistência que o patético chanceler beatamente afirma.
Como demonstra Filipe Figueiredo, os que derrotaram os muçulmanos foram mobilizados por algo mais (o vil metal) do que a fé e a religião, e sobretudo não possuíam unidade.
Mais importante: a tal conversa de "política externa sem ideologia" (e comércio exterior idem), nada mais é do que uma conversa fiada, pois o que mais faz o chanceler, e seus patrões, é defender uma ideologia conservadora de extrema-direita, eu até diria reacionária.
Paulo Roberto de Almeida


Ernesto Araújo, a batalha de Viena e o choque entre civilizações
Filipe Figueiredo
Gazeta do Povo, 15/05/2019

A História é uma das mais preciosas matérias-primas da humanidade. Ela serve de sustento para bons argumentos e para falácias; para avaliação e compreensão das sociedades; para derrubar mitos e ilusões. Nesse campo, a História é tanto remédio quanto insumo para essas mesmas mitologias e visões românticas sobre o passado, sobre a cultura e sobre si. E, como já disse o historiador britânico Peter Burke, “o dever do historiador é lembrar a sociedade daquilo que ela quer esquecer”. 

Na última semana, o chanceler Ernesto Araújo postou em seu perfil uma foto defronte uma pintura, com a legenda: “Ontem, no castelo de Varsóvia, com o retrato do rei polonês Jan Sobieski, vencedor da batalha dos portões de Viena em 1683”. A viagem do chanceler passou por Roma, Budapeste e Varsóvia, encontrando-se com representantes desses governos e da Santa Sé. Outro post com Matteo Salvini chamava o político italiano de “grande líder da regeneração europeia”.

A batalha de Viena
A batalha de Viena, em 12 de Setembro de 1683, quando os exércitos otomanos foram derrotados às portas da capital do império Habsburgo, foi de fato um importante evento histórico, uma data que se tornou posteriormente símbolo do fim do avanço otomano na Europa. O “posteriormente” é explicado pelo fato de que, naquele momento, ainda não se sabia do posterior declínio otomano, nem que os avanços de Habsburgos e da Rússia seriam tão rápidos e vastos quanto foram nos séculos seguintes.

Por causa desse significado posterior, de um momento em que os otomanos foram detidos em seu máximo avanço na Europa, a batalha ganhou contornos de um choque de civilizações. A cristandade europeia versus o califado muçulmano. É nesse contexto que o chanceler a celebra seu tuíte; embora não de forma explícita, a postagem por si só é uma celebração. E também congruente com suas ideias e como ele vê o mundo. Algumas dessas visões foram expressas em seu discurso de posse, já comentado neste espaço.  

Essa visão de uma batalha entre Ocidente e Oriente, entre cristãos e muçulmanos, é certamente sedutora, como toda visão romantizada. Uma épica luta entre valores, civilizações que se jogam uma contra a outra em um mesmo dia, em meio a poeira levantada pela maior carga de cavalaria da História, brados retumbantes, o som do choque de espadas e outras armas, o cheiro de pólvora dos mosquetes, onde surgem heróis e vilões. E, claro, assim como toda visão romantizada, uma amostra superficial e estreita.

A batalha de Viena está inserida em um contexto muito mais complexo e contraditório do que um “choque de civilizações”. O combate tampouco foi Islã versus cristianismo, mas parte de uma guerra política e com alianças e lealdades motivadas também por interesses políticos. No cerco de Viena estava em jogo a autoridade de Leopoldo I, imperador Habsburgo da Áustria e Sacro-Imperador Romano Germânico. Essa posição, e a localização geográfica de sua capital, o colocavam como defensor do Papado e de Roma.

Realidade versus idealização
Isso explica o fato de que foi o Papa Inocêncio XI o principal financiador da resistência contra os exércitos otomanos. Independente de defesas da fé, o suprimento do “vil metal” foi de suma importância para as defesas europeias. O pagamento dos soldados poloneses, que só tinham obrigação de servir em defesa de seu território, é o exemplo mais famoso, já que seu rei, o Jan Sobieski III do retrato, não estava exatamente disposto ao custeio de um exército para salvar Viena e o imperador.

Outro exemplo, menos conhecido e tão importante quanto, é o do engenheiro Georg Rimpler, o responsável pela modernização das defesas austríacas. E que ocupava sua posição por ser, sem um julgamento de valor, um mercenário muito bem pago. Claro, o custeio de um exército ou de pessoas treinadas nas artes militares é algo sempre presente, e não seria apenas a existência de um pagamento que diminuiria um eventual caráter civilizacional da batalha.

Ainda assim, é um exercício interessante pensar se tais soldados teriam defendido Viena a troco apenas da fé ou de um eventual butim de guerra. O que torna superficial a visão romântica é o fato de que a suposta cristandade da batalha estava fragmentada. A Europa havia recém saído da Guerra dos Trinta Anos, motivada, dentre outras razões, pelo conflito entre católicos e protestantes; por séculos a Europa foi dividida de forma violenta e amarga por esse cisma do cristianismo.

Contra o católico Leopoldo I estavam os húngaros protestantes liderados por Imre Thököly, aliado do sultão. Seu desejo era a independência, rei de uma Hungria protestante em caso de vitória otomana. Juntando húngaros e valáquios, ao menos cinco mil cristãos protestantes estavam no exército otomano. Outros reinos protestantes europeus fariam poucas objeções ao fim do Sacro Império, mesmo que nas mãos de muçulmanos. Ainda assim, a protestante Saxônia enviou cerca de dez mil homens para a batalha.

Tal exército protestante se retirou imediatamente após o final da batalha. Tensões religiosas e divergências entre nobres impediram que os saxões participassem da pilhagem do rico butim otomano, e também não participaram da ofensiva contra as tropas turcas em retirada. Além disso, uma ausência é bastante significativa. A França recusou pedidos do Papa para enviar seus poderosos exércitos em “socorro da Cristandade”. A França, país onde, até 1789, a Igreja Católica tinha enorme poder social e político.

Essa recusa foi motivada por falta de cristianismo ou por apostasia? Não, apenas interesse nacional. Os franceses não achariam nem um pouco negativo que os austríacos sofressem em mãos otomanas, enfraquecendo seu maior rival europeu pelo controle do continente e pela influência no mundo católico. Dos séculos XV ao XIX, franceses e austríacos estiveram em lados opostos em mais de duas dezenas de guerras, incluindo a citada dos Trinta Anos. O estranho era a paz entre Paris e Viena.

Incluindo mais de um conflito em que franceses e otomanos foram secretamente aliados contra austríacos; o imortal pensamento de que o inimigo do meu inimigo é meu amigo. A questão aqui não é diminuir a batalha de Viena ou apontar que franceses foram traidores, nada disso. Apenas mostrar que é romântico pensar um bloco homogêneo da cristandade em batalha. Cada ator, mais que sua religião, também tinha seus interesses e objetivos políticos em jogo; no ano seguinte, a França se aproveita e anexa a Alsácia dos austríacos.

Contradições e civilizações
O mesmo vale para o outro lado. Não se tratava de um Islã monolítico, mas dos exércitos otomanos. Primeiro, os já citados protestantes que combatiam nas fileiras do sultão. Além disso, as lealdades das hostes cossacas e tártaras também variavam de acordo com o cenário político do período. Líderes cossacos cristãos ortodoxos se aliaram ao sultão contra os católicos poloneses, por exemplo. E, no caso de Viena, um componente essencial da cavalaria europeia era formado por tártaros. Muçulmanos.

Milhares de tártaros sunitas de Lipka combateram pelo exército do rei polonês, usando palhas em seus elmos, como uma forma de diferenciá-los dos seus primos tártaros da Crimeia, que combatiam ao lado do sultão. Posteriormente, a vida de Jan Sobieski III seria salva por um oficial tártaro muçulmano, Samuel Mirza Krzeczowski, promovido por seu feito. O rei polonês, inclusive, é lembrado como um dos mais tolerantes perante seus súditos e aliados muçulmanos, com a construção de mesquitas, por exemplo. 

Outra rachadura no pensamento de dois blocos homogêneos é que vários aliados otomanos eram forçados por laços de vassalagem ao combate, se juntando ao sultão contra sua vontade. E, por isso, não desempenhando suas funções militares da melhor maneira. Os tártaros da Crimeia, por exemplo, se recusaram em atacar os exércitos poloneses. A ideia de uma luta de civilizações, naquele momento, emanava apenas da crueldade do comandante otomano, Kara Mustafa Pasha, executado por sua incompetência.

No saldo final, a batalha de Viena foi, como todo o período moderno europeu, um enlace multicultural, complexo e, novamente, contraditório. Muçulmanos contra o califa, cristãos contra o imperador, tártaros muçulmanos contra tártaros muçulmanos. Nas décadas seguintes, os otomanos ainda governariam boa parte dos cristãos dos Bálcãs, enquanto os austríacos juntariam-se aos protestantes prussianos e os ortodoxos russos para retalhar a Polônia, que por cento e vinte anos deixou de existir como país soberano.

Romantismo e a alt-right
A visão romântica da batalha é cada vez mais resgatada pelo contexto contemporâneo, com atentados terroristas e questões migratórias na Europa. A ideia de que muçulmanos seriam invasores e que essa invasão foi inicialmente repulsa em 1683 por uma suposta cristandade unida. Grupos radicais e a chamada alt-right valorizam a batalha como marco de resistência do “Ocidente”. Exagero? É só olhar para a intensa referência ao confronto em dois atentados terroristas recentes.

Em 2011, na Noruega, 77 jovens do Partido Trabalhista foram assassinados pelo terrorista Anders Behring Breivik. Dentre seus motivos estavam o “marxismo cultural” e a resistência contra a “invasão muçulmana”, um cavaleiro pelos “valores ocidentais”. Tudo isso está em seu manifesto de mil e quinhentas páginas chamado 2083, uma referência aos 400 anos da batalha. O cerco de Viena também está em diversas referências do terrorista de Christchurch, na Nova Zelândia, que deixou 51 mortos em Março de 2019.

Que visões românticas e gloriosas de um passado militar seduzam extremistas e perfis da alt-right não seria novidade, ainda mais com um suposto inimigo em comum. E não se está chamando o chanceler de um representante da alt-right, mas é surpreendente ver um chanceler de um país com profunda tradição de formação de quadros diplomáticos ser seduzido por essa visão romântica, as ideias de um espírito cruzadístico movendo o Ocidente, em meio aos textos laudatórios do discurso de Varsóvia.

A própria batalha de Viena fornece exemplos contrários, de como os interesses nacionais e políticos sobressaiam os interesses ideológicos, religiões inclusas. Chamem de pragmatismo, realismo, ganhos concretos, do que for. Contra os rivais atenienses, Esparta se aliou aos persas, inimigos figadais de anos antes. Não foram apenas as divergências teológicas que sustentaram o movimento de Lutero, mas também a revolta contra o pagamento de vultosas contribuições para a construção da basílica de São Pedro. 

E quais os interesses do Estado brasileiro em uma viagem europeia de seu chanceler que negligencia alguns dos mais importantes parceiros comerciais e econômicos brasileiros no continente, como a Alemanha, a França e os Países Baixos? Ou então, pensando em laços históricos, a mesma Alemanha, assim como Portugal e Espanha. A Itália une os dois fatores, como grande parceiro comercial e origem de cerca de trinta milhões de cidadãos brasileiros.

Relações com a Polônia e a Hungria possuem grande espaço para crescimento, disso não há dúvidas, agora, nessa “política externa sem ideologia”, recortar uma viagem que passa apenas por esses países não faz sentido fora de um discurso ideológico. O discurso de valorizar uma “identidade ocidental” enquanto se desmonta a independência do judiciário e a imprensa livre, temperados por uma narrativa contra a União Europeia; claro, sem deixar de sorver nas polpudas verbas europeias.

Nos casos citados, Hungria é apenas nosso 90º destino de exportações, e 53º principal origem de importações, para uma relação comercial deficitária de 248 milhões de dólares. A Polônia não fica muito na frente, como 42º maior destino e maior origem, para um superávit de 203 milhões de dólares. Cifras que, colocadas em proporção, são uma parcela ínfima do comércio brasileiro. Em um cenário econômico difícil, o chanceler buscar parceiros e investidores deveria ser mais interessante do que cingir elmos para batalhas finais.