‘É parte da cura o desejo de ser curado’
É muito triste constatar que a diplomacia brasileira vive o seu pior momento
Editorial Estadão | 19/02/2021, 3h
Sábias palavras do filósofo romano Sêneca, o Jovem, ainda no distante século 1.º. Pena que essa antiga máxima não tenha sido adotada pelo governo brasileiro ao tratar a pandemia de covid-19. Ao contrário, assumindo explícito negacionismo o presidente Jair Bolsonaro só colecionou atos contrários ao fundamental “desejo de ser curado”: o rebaixamento de uma doença nova, desconhecida e por vezes mortal a “gripezinha”, a demissão dos ministros Mandetta e Teich, culminando com a convocação de um militar especializado em logística para a pasta da Saúde. Apesar de sua “expertise”, o planejamento do atual ministro mostrou-se caótico e obscurantista: recomendou medicamentos não apropriados e foi negligente com a necessária pressa na compra de vacinas, sobretudo pelas interferências do presidente.
Não bastasse, foi de enorme gravidade o vergonhoso papel desempenhado pelo Brasil na defesa de seus próprios interesses e de potenciais aliados em causas comuns na cena internacional. Em outubro, Índia e África do Sul propuseram à Organização Mundial do Comércio (OMC) a liberação do licenciamento compulsório e temporário de patentes com vista às pesquisas de vacinas e medicamentos de combate à epidemia. O Brasil votou contra a proposta dos parceiros do Brics, contrariando uma tradição de pioneirismo nesse assunto nas últimas décadas, preferindo seguir a orientação de Donald Trump. Dado o apoio chinês e russo à proposta de liberação, o Brasil ficou totalmente isolado na entidade que agrega as potências emergentes.
A ideia de licença compulsória obrigatória de patentes numa circunstância grave que a justifique não é modismo atual. Essa possibilidade de suspensão temporária de um direito de propriedade intelectual diante de um motivo de grande interesse público foi prevista na legislação britânica contida no Estatuto dos Monopólios do Reino Unido, votado no Parlamento em 1624. Posteriormente o tema foi tratado em acordo internacional firmado em Paris em 1883, quando foram estabelecidas regras gerais de licença contra o exercício abusivo de direitos sobre patentes. Só em 1967 foram estabelecidas regras específicas, num congresso em Estocolmo.
Por fim, em 1994 foi firmado na OMC o Trade-Related Aspects in Intelectual Property Rights (Trips), ou direitos sobre propriedade intelectual relacionados ao comércio. O Trips prevê a quebra de patentes em situações emergenciais, mas antes deve ser feita uma tentativa de negociação entre governo e empresa detentora. Caso não cheguem a acordo, está prevista a liberação temporária da patente e uma compensação em royalties ao proprietário intelectual.
Rússia e China não assinaram o tratado. Índia firmou, mas conseguiu exercer por dez anos uma carência de suspensão temporária, durante a qual montou sua próspera indústria farmacêutica atual.
Já o Brasil não exigiu a carência e perdeu o bonde industrial que a Índia pegou. Mas fez insistente pressão para enfrentar as patentes dos medicamentos contra a aids, conseguindo grandes conquistas com os genéricos, liberações e preços junto aos grandes laboratórios detentores da propriedade intelectual. Essa atitude constante brasileira foi elogiada e admirada pelo mundo todo, tendo a Índia como apoiadora de primeira hora nessa direção. Dentro desse contexto histórico, foi grande a decepção na África do Sul e na Índia com a posição brasileira em plena pandemia, alinhada com os grandes laboratórios norte-americanos e europeus na reunião da OMC. Até manifestações de rua houve nesses países criticando o Brasil. Embora derrotada pelas pressões americanas e europeias, a proposta foi apoiada por mais de cem países e cerca de 400 entidades internacionais.
É realmente muito triste constatar que a diplomacia brasileira vive erraticamente seu pior momento em sua respeitada história. Herdeira da eficiente diplomacia portuguesa do século 18, conduzida por brilhantes diplomatas como dom Luís da Cunha e Alexandre de Gusmão e continuada no século 19 pelos não menos brilhantes visconde do Rio Branco e seu filho, o barão. Este último e Joaquim Nabuco adentrariam o século 20 com um trabalho decisivo na discussão e consolidação de nossas fronteiras. E no decorrer do século o Itamaraty firmou-se no cenário internacional como exemplo de boas práticas diplomáticas para todo o mundo, despertando admiração e respeito. Prestígio confirmado pela atuação de Oswaldo Aranha no comando da Assembleia-Geral da ONU em 1947/48.
O mais surpreendente nessa guinada ideológica inconsequente da nossa diplomacia é que ela contraria até a política externa praticada pelo regime militar a partir de março de 1974, no governo Ernesto Geisel. O então chanceler Antônio Azeredo da Silveira, notabilizado como Silveirinha, anunciou a nova postura diplomática do “pragmatismo responsável”, em oposição ao anterior alinhamento automático aos Estados Unidos. Ironicamente, o Brasil adotava o mesmo pragmatismo comercial praticado pelos Estados Unidos em relação aos seus interesses. Ou como dizia John Foster Dulles, experiente diplomata conservador norte-americano dos anos 1950, “não existe amizade entre os países, apenas interesses comuns”.