Ser pária
Merval Pereira
O resultado da eleição presidencial dos Estados Unidos pode ser fundamental para o resto do mundo, mas especialmente para países como o nosso, governado por extremistas de direita que sentem-se protegidos pela “relação carnal” com a administração Trump.
O presidente Bolsonaro ainda tem em mente a ideia de uma China comunista que quer dominar o mundo. Realmente, ela quer, como todo potência, mas com armas capitalistas, investimentos e produção, o que faz parte do jogo do capitalismo internacional. O Brasil tem que se aproveitar da sua importância geopolítica para tirar vantagens dos EUA, da China e da Europa, e não ficar entregue aos EUA, fazendo a política de Trump, que até agora não nos deu nada em vantagem.
Se Joe Biden vencer a eleição americana, vai ficar difícil dar continuidade à política externa brasileira, porque o governo democrata vai exigir contrapartidas importantes do Brasil, especialmente na política ambiental. Com essa briga com a China, corremos o risco de virarmos párias mundiais, sem aliados, se EUA e Europa se unirem e voltarem a nos pressionar na questão do meio ambiente, o que é provável com a vitória de Joe Biden.
O chanceler brasileiro, Ernesto Araújo, um dos pilares da visão extemporânea de mundo que rege esse governo, anunciou ontem aos formandos do Instituto Rio Branco que o Brasil está disposto a ser um ‘pária internacional’ se for pela defesa da ‘liberdade’.
Segundo ele, na abertura da Assembleia Geral das Nações Unidas deste ano, os presidentes Bolsonaro e Trump “foram praticamente os únicos a falar em liberdade”. Para Ernesto Araújo, a ONU “foi fundada no princípio da liberdade, mas a esqueceu”. Ele acredita que o Brasil é o porta-voz da liberdade pelo mundo, e “se isso faz de nós um pária internacional, então que sejamos esse pária”.
Para Araújo, “talvez seja melhor ser esse pária deixado ao relento, do lado de fora, do que ser um conviva no banquete do cinismo interesseiro dos globalistas, dos corruptos e semicorruptos”. Globalismo é como os direitistas mais radicais chamam a globalização, e o “banquete” seriam os organismos internacionais como a ONU ou a Organização Mundial da Saúde (OMS) que representam a ideia de um mundo multipolarizado, mas que a direita internacional critica por, nessa visão, serem controlados por uma orientação esquerdizante do mundo, que quereriam impor a todos os países.
Os organismos internacionais, comandados por pessoas que não foram eleitas, querem impor ao mundo uma visão unificada, impedindo que as nações exerçam sua soberania. Como já disse o chanceler Ernesto Araújo, o globalismo seria “a configuração atual do marxismo”.
Mesmo com essa visão estereotipada das relações internacionais, o Brasil não tem se esquivado de se aliar a ditaduras, mesmo a chinesa, para defender seus pontos de vista sobre direitos humanos no Conselho da ONU, alterando fundamentalmente a posição tradicional brasileira a respeito do tema.
Em junho, apoiou uma resolução proposta por China, Cuba, Venezuela, Irã e Síria, que acabou aprovada, reduzindo o âmbito de atuação do Conselho dos Direitos Humanos, transformando-o em um lugar de debate de cooperação, e não de monitoramento de violações dos direitos humanos no mundo.
Juntamente com essas ditaduras, o Brasil tem recebido muitas críticas com respeito à violação dos direitos humanos, sobretudo de indígenas e minorias. O Brasil também se aliou a governos autoritários como Arábia Saudita , Paquistão, Egito e Iraque sobre direitos sexuais das mulheres, propondo, entre outras coisas, retirar o tema “educação sexual” das prioridades da ONU.
Nos documentos brasileiros, não há mais referências a temas como tortura, gênero, LGBT, desigualdade, e, juntamente com a Arábia Saudita, defende o fortalecimento da família com “pai e mãe”. Os crimes do ditador Duterte, das Filipinas, cometidos na guerra às drogas, não tiveram o voto do Brasil para uma investigação. Já somos, portanto, párias em diversos setores da sociedade internacional, e não acompanhamos mais os países progressistas da Europa ou mesmo da América Latina.
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