O autor desta matéria, muito bem pesquisada e excelentemente bem exposta, Filipe Figueiredo, coloca água no feijão do chanceler, que pretende provar que está em campanha para salvar uma coisa chamada civilização cristã ocidental, mas que na verdade nunca existiu com essa consistência que o patético chanceler beatamente afirma.
Como demonstra Filipe Figueiredo, os que derrotaram os muçulmanos foram mobilizados por algo mais (o vil metal) do que a fé e a religião, e sobretudo não possuíam unidade.
Mais importante: a tal conversa de "política externa sem ideologia" (e comércio exterior idem), nada mais é do que uma conversa fiada, pois o que mais faz o chanceler, e seus patrões, é defender uma ideologia conservadora de extrema-direita, eu até diria reacionária.
Paulo Roberto de Almeida
Ernesto
Araújo, a batalha de Viena e o choque entre civilizações
Filipe
Figueiredo
A História é
uma das mais preciosas matérias-primas da humanidade. Ela serve de sustento
para bons argumentos e para falácias; para avaliação e compreensão das
sociedades; para derrubar mitos e ilusões. Nesse campo, a História é tanto
remédio quanto insumo para essas mesmas mitologias e visões românticas sobre o
passado, sobre a cultura e sobre si. E, como já disse o historiador britânico
Peter Burke, “o dever do historiador é lembrar a sociedade daquilo que ela quer
esquecer”.
Na última
semana, o chanceler Ernesto Araújo postou em seu perfil uma foto defronte uma
pintura, com a legenda: “Ontem, no castelo de Varsóvia, com o retrato do rei
polonês Jan Sobieski, vencedor da batalha dos portões de Viena em 1683”. A
viagem do chanceler passou por Roma, Budapeste e Varsóvia, encontrando-se com
representantes desses governos e da Santa Sé. Outro post com Matteo Salvini
chamava o político italiano de “grande líder da regeneração europeia”.
A batalha de Viena
A batalha de
Viena, em 12 de Setembro de 1683, quando os exércitos otomanos foram derrotados
às portas da capital do império Habsburgo, foi de fato um importante evento
histórico, uma data que se tornou posteriormente símbolo do fim do avanço
otomano na Europa. O “posteriormente” é explicado pelo fato de que, naquele
momento, ainda não se sabia do posterior declínio otomano, nem que os avanços
de Habsburgos e da Rússia seriam tão rápidos e vastos quanto foram nos séculos
seguintes.
Por causa
desse significado posterior, de um momento em que os otomanos foram detidos em
seu máximo avanço na Europa, a batalha ganhou contornos de um choque de
civilizações. A cristandade europeia versus o califado muçulmano. É nesse
contexto que o chanceler a celebra seu tuíte; embora não de forma explícita, a
postagem por si só é uma celebração. E também congruente com suas ideias e como
ele vê o mundo. Algumas dessas visões foram expressas em seu discurso de posse,
já comentado neste espaço.
Essa visão
de uma batalha entre Ocidente e Oriente, entre cristãos e muçulmanos, é
certamente sedutora, como toda visão romantizada. Uma épica luta entre valores,
civilizações que se jogam uma contra a outra em um mesmo dia, em meio a poeira
levantada pela maior carga de cavalaria da História, brados retumbantes, o som
do choque de espadas e outras armas, o cheiro de pólvora dos mosquetes, onde
surgem heróis e vilões. E, claro, assim como toda visão romantizada, uma
amostra superficial e estreita.
A batalha de
Viena está inserida em um contexto muito mais complexo e contraditório do que
um “choque de civilizações”. O combate tampouco foi Islã versus cristianismo,
mas parte de uma guerra política e com alianças e lealdades motivadas também
por interesses políticos. No cerco de Viena estava em jogo a autoridade de
Leopoldo I, imperador Habsburgo da Áustria e Sacro-Imperador Romano Germânico.
Essa posição, e a localização geográfica de sua capital, o colocavam como
defensor do Papado e de Roma.
Realidade versus idealização
Isso explica
o fato de que foi o Papa Inocêncio XI o principal financiador da resistência
contra os exércitos otomanos. Independente de defesas da fé, o suprimento do
“vil metal” foi de suma importância para as defesas europeias. O pagamento dos
soldados poloneses, que só tinham obrigação de servir em defesa de seu
território, é o exemplo mais famoso, já que seu rei, o Jan Sobieski III do
retrato, não estava exatamente disposto ao custeio de um exército para salvar
Viena e o imperador.
Outro
exemplo, menos conhecido e tão importante quanto, é o do engenheiro Georg
Rimpler, o responsável pela modernização das defesas austríacas. E que ocupava
sua posição por ser, sem um julgamento de valor, um mercenário muito bem pago.
Claro, o custeio de um exército ou de pessoas treinadas nas artes militares é
algo sempre presente, e não seria apenas a existência de um pagamento que
diminuiria um eventual caráter civilizacional da batalha.
Ainda assim,
é um exercício interessante pensar se tais soldados teriam defendido Viena a
troco apenas da fé ou de um eventual butim de guerra. O que torna superficial a
visão romântica é o fato de que a suposta cristandade da batalha estava
fragmentada. A Europa havia recém saído da Guerra dos Trinta Anos, motivada, dentre
outras razões, pelo conflito entre católicos e protestantes; por séculos a
Europa foi dividida de forma violenta e amarga por esse cisma do cristianismo.
Contra o
católico Leopoldo I estavam os húngaros protestantes liderados por Imre
Thököly, aliado do sultão. Seu desejo era a independência, rei de uma Hungria
protestante em caso de vitória otomana. Juntando húngaros e valáquios, ao menos
cinco mil cristãos protestantes estavam no exército otomano. Outros reinos
protestantes europeus fariam poucas objeções ao fim do Sacro Império, mesmo que
nas mãos de muçulmanos. Ainda assim, a protestante Saxônia enviou cerca de dez
mil homens para a batalha.
Tal exército
protestante se retirou imediatamente após o final da batalha. Tensões
religiosas e divergências entre nobres impediram que os saxões participassem da
pilhagem do rico butim otomano, e também não participaram da ofensiva contra as
tropas turcas em retirada. Além disso, uma ausência é bastante significativa. A
França recusou pedidos do Papa para enviar seus poderosos exércitos em “socorro
da Cristandade”. A França, país onde, até 1789, a Igreja Católica tinha enorme
poder social e político.
Essa recusa
foi motivada por falta de cristianismo ou por apostasia? Não, apenas interesse
nacional. Os franceses não achariam nem um pouco negativo que os austríacos
sofressem em mãos otomanas, enfraquecendo seu maior rival europeu pelo controle
do continente e pela influência no mundo católico. Dos séculos XV ao XIX,
franceses e austríacos estiveram em lados opostos em mais de duas dezenas de
guerras, incluindo a citada dos Trinta Anos. O estranho era a paz entre Paris e
Viena.
Incluindo
mais de um conflito em que franceses e otomanos foram secretamente aliados
contra austríacos; o imortal pensamento de que o inimigo do meu inimigo é meu
amigo. A questão aqui não é diminuir a batalha de Viena ou apontar que
franceses foram traidores, nada disso. Apenas mostrar que é romântico pensar um
bloco homogêneo da cristandade em batalha. Cada ator, mais que sua religião,
também tinha seus interesses e objetivos políticos em jogo; no ano seguinte, a
França se aproveita e anexa a Alsácia dos austríacos.
Contradições e civilizações
O mesmo vale
para o outro lado. Não se tratava de um Islã monolítico, mas dos exércitos
otomanos. Primeiro, os já citados protestantes que combatiam nas fileiras do
sultão. Além disso, as lealdades das hostes cossacas e tártaras também variavam
de acordo com o cenário político do período. Líderes cossacos cristãos
ortodoxos se aliaram ao sultão contra os católicos poloneses, por exemplo. E,
no caso de Viena, um componente essencial da cavalaria europeia era formado por
tártaros. Muçulmanos.
Milhares de
tártaros sunitas de Lipka combateram pelo exército do rei polonês, usando
palhas em seus elmos, como uma forma de diferenciá-los dos seus primos tártaros
da Crimeia, que combatiam ao lado do sultão. Posteriormente, a vida de Jan
Sobieski III seria salva por um oficial tártaro muçulmano, Samuel Mirza
Krzeczowski, promovido por seu feito. O rei polonês, inclusive, é lembrado como
um dos mais tolerantes perante seus súditos e aliados muçulmanos, com a
construção de mesquitas, por exemplo.
Outra
rachadura no pensamento de dois blocos homogêneos é que vários aliados otomanos
eram forçados por laços de vassalagem ao combate, se juntando ao sultão contra
sua vontade. E, por isso, não desempenhando suas funções militares da melhor
maneira. Os tártaros da Crimeia, por exemplo, se recusaram em atacar os
exércitos poloneses. A ideia de uma luta de civilizações, naquele momento,
emanava apenas da crueldade do comandante otomano, Kara Mustafa Pasha,
executado por sua incompetência.
No saldo
final, a batalha de Viena foi, como todo o período moderno europeu, um enlace
multicultural, complexo e, novamente, contraditório. Muçulmanos contra o
califa, cristãos contra o imperador, tártaros muçulmanos contra tártaros
muçulmanos. Nas décadas seguintes, os otomanos ainda governariam boa parte dos
cristãos dos Bálcãs, enquanto os austríacos juntariam-se aos protestantes
prussianos e os ortodoxos russos para retalhar a Polônia, que por cento e vinte
anos deixou de existir como país soberano.
Romantismo e a alt-right
A visão
romântica da batalha é cada vez mais resgatada pelo contexto contemporâneo, com
atentados terroristas e questões migratórias na Europa. A ideia de que
muçulmanos seriam invasores e que essa invasão foi inicialmente repulsa em 1683
por uma suposta cristandade unida. Grupos radicais e a chamada alt-right
valorizam a batalha como marco de resistência do “Ocidente”. Exagero? É só
olhar para a intensa referência ao confronto em dois atentados terroristas
recentes.
Em 2011, na
Noruega, 77 jovens do Partido Trabalhista foram assassinados pelo terrorista
Anders Behring Breivik. Dentre seus motivos estavam o “marxismo cultural” e a
resistência contra a “invasão muçulmana”, um cavaleiro pelos “valores
ocidentais”. Tudo isso está em seu manifesto de mil e quinhentas páginas
chamado 2083, uma referência aos 400 anos da batalha. O cerco de Viena também
está em diversas referências do terrorista de Christchurch, na Nova Zelândia,
que deixou 51 mortos em Março de 2019.
Que visões
românticas e gloriosas de um passado militar seduzam extremistas e perfis da
alt-right não seria novidade, ainda mais com um suposto inimigo em comum. E não
se está chamando o chanceler de um representante da alt-right, mas é
surpreendente ver um chanceler de um país com profunda tradição de formação de
quadros diplomáticos ser seduzido por essa visão romântica, as ideias de um
espírito cruzadístico movendo o Ocidente, em meio aos textos laudatórios do
discurso de Varsóvia.
A própria
batalha de Viena fornece exemplos contrários, de como os interesses nacionais e
políticos sobressaiam os interesses ideológicos, religiões inclusas. Chamem de
pragmatismo, realismo, ganhos concretos, do que for. Contra os rivais
atenienses, Esparta se aliou aos persas, inimigos figadais de anos antes. Não
foram apenas as divergências teológicas que sustentaram o movimento de Lutero,
mas também a revolta contra o pagamento de vultosas contribuições para a
construção da basílica de São Pedro.
E quais os
interesses do Estado brasileiro em uma viagem europeia de seu chanceler que
negligencia alguns dos mais importantes parceiros comerciais e econômicos
brasileiros no continente, como a Alemanha, a França e os Países Baixos? Ou
então, pensando em laços históricos, a mesma Alemanha, assim como Portugal e
Espanha. A Itália une os dois fatores, como grande parceiro comercial e origem
de cerca de trinta milhões de cidadãos brasileiros.
Relações com
a Polônia e a Hungria possuem grande espaço para crescimento, disso não há
dúvidas, agora, nessa “política externa sem ideologia”, recortar uma viagem que
passa apenas por esses países não faz sentido fora de um discurso ideológico. O
discurso de valorizar uma “identidade ocidental” enquanto se desmonta a
independência do judiciário e a imprensa livre, temperados por uma narrativa
contra a União Europeia; claro, sem deixar de sorver nas polpudas verbas
europeias.
Nos casos
citados, Hungria é apenas nosso 90º destino de exportações, e 53º principal
origem de importações, para uma relação comercial deficitária de 248 milhões de
dólares. A Polônia não fica muito na frente, como 42º maior destino e maior
origem, para um superávit de 203 milhões de dólares. Cifras que, colocadas em
proporção, são uma parcela ínfima do comércio brasileiro. Em um cenário
econômico difícil, o chanceler buscar parceiros e investidores deveria ser mais
interessante do que cingir elmos para batalhas finais.
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