Um outro texto que jamais foi publicado, e talvez não devesse, mas integra a série séria (se ouso dizer) dos divertissements diplomáticos.
Paulo Roberto de Almeida
Brasília, 27 de maio de 2016
Aprenda diplomacia por sua própria conta (e
risco), em apenas um dia
Paulo
Roberto de Almeida
Confesso que tenho começado a me
preocupar com o curso futuro das profissões baseadas em regime de guildas ou
corporações de ofício, como é caso da minha própria, a casta diplomática,
fundada, assim como o estamento vizinho dos economistas, em um sistema de
seleção altamente especializado e exclusivo, que abre as portas para uma
reserva de mercado destinada apenas aos iniciados nos segredos da “arte”.
Digo isto por uma razão muito
simples. Ao percorrer as estantes de economia das grandes livrarias de
Washington, o que faço com bastante freqüência, deparo cada vez mais com livros
– no mais das vezes “livrinhos”, mas em alguns casos “livrões – voltados para a
educação do público em geral, dando todas as regras e instrumentos para um bom début na profissão que antes se julgava
fechada e restrita a uma tribo bissexta de indivíduos fanatizados por equações
matemáticas e curvas de utilidade marginal, à imagem desses nerds – o nosso popular “cdf” – que se
vêem nos filmes americanos para adolescentes. Pois não é que depois da voga dos
livros espirituais e de auto-ajuda – a interminável sucessão de How to Do…? –, começaram a surgir guias
rápidos para a nobre profissão de economista? Vejamos alguns títulos que eu já
encontrei nas estantes:
-
The Complete Idiot’s Guide to Economics;
-
The Complete MBA for Dummies;
-
Economics in One Lesson;
-
One Day MBA in Management;
-
The Instant Economist;
-
Economics: A Self-Teaching Guide.
Tudo isso me cheira a dumping
social e a concorrência desleal contra os true
economists. De minha parte, comprei um outro tipo de manual, The Armchair Economist: Economics and
Everday Life (Steven E. Landsburg), uma elegante discussão sobre os
fundamentos da análise econômica que não usa sequer uma única equação, mas
entendo que ele não se aplica aos nossos propósitos. Comecei a imaginar, então,
como se poderia ter guias equivalentes para a outrora refinada e aristocrática
profissão de diplomata:
-
An Idiot’s Guide to Diplomacy
-
The Complete Kit for Being a Good Diplomat
-
Diplomacy in One Lesson
-
Teach Yourself Diplomacy in One Day
-
Diplomacy for Dummies
-
The Instant Diplomat
Estaremos condenados a enfrentar
uma horda de amadores, fazendo pressão sobre os nossos (já parcos) salários e
retirando o caráter mais ou menos elitista (no bom sentido da palavra) de nossa
profissão? Não; não precisa se preocupar: ainda não surgiram esses livros,
muito embora eu mesmo tenha pensado em escrever, com base em minha experiência
pregressa de negociador e de “pensador” desses processos, um Mercosul for Dummies e até mesmo um Idiot’s Guide to the FTAA. Por certo já
surgiram e proliferam, desde Versalhes, os guias
diplomáticos, desde os clássicos (e aborrecidos) de Harold Nicolson e de
Ernest Satow, até os mais modernos, como o bem completo Guide to International Relations and Diplomacy, editado por Michael
Fry, Richard Langhorne e Erik Goldstein (nada menos que 175 dólares). Mas eu me
refiro, mais exatamente, a outros tipos de guias, algo como Diplomacy for Beginners ou então International Relations: A Do It Yourself
Guide.
Esperando que um dia possam surgir
esses tão preclaros quanto necessários guias do self-made diplomatist, decidi propor algumas simples regras para
quem deseja seguir a profissão sem se submeter a esses exigentes concursos de
provas do Instituto Rio Branco ou sem sequer precisar pedir ao presidente para que
ele lhe designe para um desses postos cobiçados do exterior. Sendo um home-made diplomat, você estabelece suas próprias regras de procedimento e
passa a reorganizar o mundo à sua imagem e semelhança, quem sabe até
candidatando-se, algum dia, ao Prêmio Nobel da Paz?
Ao contrário do que muitos pensam,
ser diplomata não é tão difícil quanto levantamento de peso nos Jogos Olímpicos
ou acertar na loteria três vezes seguidas – como aquele deputado da comissão do
Orçamento – e não se exige sequer experiência prévia, bastando uma certa dose
de imaginação e muitas outras doses de um bom Scotch. Adquirindo um bom curso, quiçá em um dia você poderá estar
habilitado a tratar dos mais difíceis problemas deste mundo, como a paz no
Oriente Médio, o conflito Índia-Paquistão, as imunidades diplomáticas ligadas a
um concurso de misses na Nigéria ou
até mesmo o levantamento do embargo contra Cuba. Qual seria o segredo?:
Comece por aprender retórica, a arte de vender qualquer
coisa. Se não puder ter um kit
apropriado, faça apelo a esses programas de auditório: passe um dia e uma noite
assistindo Ratinho, Silvio Santos, Faustão e até mesmo Jô Soares (embora ele
seja mais propenso a complicar as coisas). Depois aprenda a falar em diplomatês – com a ajuda das novelas do
horário nobre, por exemplo –, complementando essas lições essenciais com um
curso rápido de diplomatês escrito,
que pode ser feito por correspondência ou então obtido nos links de discursos do site
www.mre.gov.br. Algumas lições de boas maneiras e de etiqueta também ajudam, mas hoje em dia, com a truculência exibida
por certos serviços diplomáticos, todo esse protocolo pode ser facilmente
substituído por aulas de kung-fu e de capoeira (mas não vale armas de
destruição em massa).
Técnicas de relações públicas são essenciais para o sucesso na profissão, e
também para uma boa progressão na carreira: houve mesmo um sujeito que galgou
rápido os degraus da diplomacia, tendo sido alcunhado de “o guarda-chuva mais
rápido da República”. Um outro foi apelidado de “João do Pulo”, tal a
sofreguidão com que se alçou ao sommet
embaixatorial, com a ajuda de uma boa caderneta de endereços, incontáveis idas
aos aeroportos e muitos salamaleques por semana. Relações públicas são tão importantes quanto o trabalho, sem
qualquer demérito para este último método, também eficiente, mas mais
apropriado para os que não moram em lugares chic
e não têm dinheiro de família para ostentar.
Por fim, um alfaiate competente
pode fazer muito pela sua imagem, assim como brilhantina e uma vistosa coleção
de gravatas. Roupas interiores podem ser compradas em lojas de departamentos,
mas as camisas têm de ostentar uma certa griffe,
do contrário você passará por um diplomata dos comuns, desses que são obrigados
a ganhar a vida escrevendo memorandos e telegramas. Ofereça flores e tenha
sempre pronto um mot-d’esprit para as
damas e consortes que encontrar, mas não exagere nas aproximações: o próximo
pode não gostar, a despeito mesmo de um certo grau de osmose nesses meios.
Você está preocupado com as
matérias clássicas da diplomacia, tipo história, geografia, direito
internacional, economia, línguas? Não há motivo para angústia: decore todo o Almanaque Abril e passe a ler os
editoriais do The Economist, pois ali
está tudo o que você precisa saber para um desempenho satisfatório em 90% dos
casos que for chamado a enfrentar. Os 10% restantes aprenda nos livros ou com
gente mais esperta que você, o que estou certo existe em qualquer corporação.
Seja um otimista e desminta a Lei
de Murphy: você pode se tornar um diplomata de sucesso estando nos lugares
certos nos momentos certos. Mas para isso você vai precisar de uma boa
astróloga, uma das profissões mais em voga no Brasil – ela acaba de superar os
sociólogos – e quase tão cheia de certezas definitivas quanto a própria
diplomacia. E, ao contrário do que dizem, não minta: não é preciso e não é
eficaz. Não pratique, tampouco, a hipocrisia: apenas saiba calar quando for
preciso.
Acomode-se, em contrapartida, na
diplomacia virtual e passe a trabalhar em casa, com base na internet e em
softwares de simulação (tipo War e
até mesmo Diplomacy). Quando estiver
cansado de um conflito, passe para outro, pois o bom mesmo da profissão é o
nomadismo obrigatório, poder ser um flâneur
rêveur nos Champs Elysées e no Hide Park. Com um pouco de sorte (e a ajuda
daquela astróloga) você vai estar no lugar certo e no momento certo, quando por
exemplo for assinado algum armistício ou um acordo comercial (lembre-se que
isso costuma se dar em Genebra, Paris ou Nova York).
E quando quiserem lhe mandar para
alguma savana ou altiplano, seja radical: ameace que vai ter de agregar e
trabalhar para o cerimonial de Santo Antonio do Salto da Onça ou de Cabrobó da
Serra, que isso costuma ter efeito dissuasório. Nem sempre funciona, mas tenha
certeza de que você será muito bem recebido nesses lugares, onde aliás passarão
imediatamente a lhe chamar de Senhor Embaixador e de Vossência. Não era isso
mesmo o que você pretendia?
Paulo Roberto de
Almeida
(um
diplomata autodidata e nômade por natureza)
Washington,
2 de agosto de 2003.