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domingo, 9 de janeiro de 2022

"Paulo Roberto, o embaixador ombudsman" - Sérgio Abreu e Lima Florêncio (2022)


 Meu grande amigo e colega de carreira, o embaixador Sérgio Abreu e Lima Florêncio, que fez inúmeros postos na sua longa trajetória no Itamaraty, dos mais fascinantes (Genebra, Nova York) aos mais desafiadores (o Irã da revolução dos aiatolás), brilhante intelectual, está publicando seu livro de "memórias amenas", na quais ele recorda um pouco de tudo, do seu início da vida estudantil ao mais diferentes episódios na carreira. No início de 2021 ele fez um texto sobre este escrevinhador, no seguimento de uma homenagem que fez em sua residência de Brasília, em meados do ano anterior, chamando diversos colegas da Casa, o que muito me sensibilizou. 

Ele encontrou uma designação para mim na qual eu ainda não havia pensado: Ombudsman. Talvez seja o caso. De minha parte, costumo me descrever como um contrarianista, um cético sadio ou até um anarco-diplomata, mas aceito com prazer a nova "profissão", ao mesmo tempo em que aproveito para agradecer a enorme distinção que ele me faz. 
Afinal de contas, não é todo dia, aliás acho que nunca, que sou objeto de um capítulo em livro de amigos (ou inimigos, os quais também devo ter). Recebo, com humildade, todos os tipos de críticas, que sempre nos ajudam a melhorar; elogios são mais bem-vindos ainda.  

Transcrevo aqui o seu texto, um dos capítulos de seu livro, que deverá ser publicado proximamente. Ao final, transcrevo o belo prefácio do embaixador Rubens Ricupero.

Paulo Roberto de Almeida

 

 

2.2 PAULO ROBERTO, O EMBAIXADOR OMBUDSMAN 

 

In: Sergio Abreu e Lima Florêncio: Diplomacia, Revolução e Afetos: de Vila Isabel a Teerã (Curitiba: Editora Appris, 2022; p. 57-58)

  

Toda instituição de excelência necessita, com certa regularidade, fazer autocrítica. Entretanto, entre seus integrantes, poucos são aqueles com vocação ou capacidade para exercer essa difícil função. 

O Itamaraty tem o privilégio de contar, em seus quadros, com um diplomata com esse perfil. Tem nas veias o sangue da contestação intelectual, o fascínio pelo debate de ideias e o respeito ao contraditório. Pessoas com essas virtudes têm, em geral, um percurso profissional marcado por incompreensão, crítica e injustiça. Esse é o caso de Paulo Roberto de Almeida. 

Personifica a inteligência contestatária que, apesar dos pesares, a instituição teve a sabedoria de preservar. Entretanto, essa vertente iluminista foi esquecida ao longo de uma década e meia e, nos últimos dois anos, sepultada da forma mais devastadora e abjeta. 

Conheci Paulo no início do Mercosul, ele assessor do Rubens Barbosa, e eu, Chefe da primeira Divisão do Mercosul, junto a talentosos jovens diplomatas, como Eduardo Saboia, João Mendes, Haroldo Ribeiro e Raphael Azeredo. Já naquele tempo era visível sua obstinação pelo conhecimento multidisciplinar, pela pesquisa, pela rebeldia esclarecida, pela irreverência intelectual, pela destruição criadora shumpeteriana que estimula seus neurônios.

Sempre admirei essa essência anímica do Paulo – essa junguiana “chama da alma”. Diversas vezes o aconselhei a arrefecer a chama, mas jamais extingui-la. Na verdade, meu receio maior não residia na sua essência anímica, mas nos Bombeiros de Farenheit 451, sempre prestes a inverter a direção das labaredas. 

Paulo deu relevante contribuição para a política externa do período de Fernando Henrique, em especial no momento-chave da criação do Mercosul. Soube reconhecer os méritos da diplomacia de Lula, ao mesmo tempo em que se revelou crítico contundente dos graves excessos e desvios, particularmente comprometedores na gestão ineficaz e equivocada de Dilma. 

Pela crítica corajosa à influência negativa do PT sobre a diplomacia brasileira, foi vítima de prolongada e injusta marginalização que estacionou sua carreira. Apenas no governo Temer, com o Chanceler Aloysio Nunes, teve o reconhecimento merecido, mas adiado de forma injustificável por uma década e meia. Foi então nomeado Diretor do IPRI – Instituto de Pesquisa em Relações Internacionais. Ali estava o homem certo no lugar certo. Teve desempenho brilhante e altamente dinâmico. 

Nessa época, os jovens diplomatas que, junto comigo, conheceram Paulo nos chamados tempos heróicos do Mercosul, haviam então galgado posições de direção e souberam fazer justiça a esse batalhador da nossa política externa. Além disso, Embaixadores de grande prestígio, como Rubens Ricúpero e Rubens Barbosa (seu chefe durante anos), defenderam Paulo e se empenharam por sua promoção a Embaixador. Foi nesse momento que organizei encontro em nossa casa para celebrar o tão adiado reconhecimento do mérito. Disse então que não estávamos festejando a promoção do Paulo, porque era o Itamaraty que estava sendo promovido. Promovido pelo resgate da justiça. 

Com a eleição de Bolsonaro, a política externa brasileira perdeu prin­cípios, valores e paradigmas que marcaram sua história. Nas áreas de meio ambiente, direitos humanos, multilateralismo, relações bilaterais, o Brasil tem hoje a diplomacia do delírio, da submissão e do prejuízo ao interesse nacional. É uma tragédia a gestão do Chanceler Ernesto Araújo. 

Paulo, uma das primeiras vítimas desse desvario, foi logo afastado da direção do IPRI. O motivo, de tão ridículo, vale aqui ser lembrado – autorizou a publicação de entrevistas de FHC, Rubens Ricupero e do próprio [EA] nos Cadernos de Política Exterior da Funag. 

Nesse momento sombrio, Paulo tem sido o mais obstinado e contundente crítico da desastrosa política externa. Ele personifica o Ombudsman de uma instituição dilapidada em seus alicerces pela irresponsabilidade do Presidente e do Chanceler.

 

Brasília, 30 de janeiro de 2021.


 

Prefácio

 

In: Sergio Abreu e Lima Florêncio: Diplomacia, Revolução e Afetos: de Vila Isabel a Teerã (Curitiba: Editora Appris, 2022; p. 11-13)

 

Se o livro de Sérgio Florêncio fosse uma composição musical, não seria uma sinfonia, mas sim um ciclo de canções ou de peças de piano como as de Robert Schuman, ligadas por um fio comum. Isto é, em lugar de uma peça única cheia de som e de fúria para orquestra grandiosa, o que nos oferece o livro é a escala humana intimista, em surdina, da música de câmara, um conjunto de breves textos alados, transpirando graça, leveza, humor e harmonia, durando dois ou três minutos no máximo, como as Cenas de Infância ou o Carnaval de Schumann.

Sérgio Florêncio inovou em dois gêneros, o da crônica e o da autobiografia, ou melhor, combinou ambos escrevendo uma autobiografia em crônicas. Esse enfoque lhe permitiu subverter o critério cronológico da autobiografia, com agilidade de cineasta que salta décadas para a frente e para trás no tempo, sem perder a unidade da narrativa. Começa não em Vila Isabel, como se poderia pensar erroneamente pelo título, mas sim por Teerã. Termina por uma das mais belas evocações que já li da figura de um pai ternamente amado, num texto ao mesmo tempo pungente e de humor malicioso.

Inverter a ordem cronológica e começar pelo meio, que é mais ou menos onde se situa a experiência do posto no Irã, foi um acerto por dar oportunidade de abrir o livro com o pico de intensidade histórica. O período passado em Teerã converteu o narrador na principal testemunha brasileira dos princípios tumultuados da Revolução Iraniana, condição privilegiada pelo seu significado muito além daquele instante. Testemunha inteligente, sensível à complexidade de um movimento surpreendente, que inauguraria uma teocracia justamente no país do Oriente Médio que se empenhara mais sistematicamente em ocidentalizar e modernizar suas estruturas.

Até nossos dias, transcorridos mais de 40 anos, a revolução contra o último Xá desafia a compreensão da imensa maioria dos analistas ocidentais. Desde o início, todos ou quase todos subestimaram as profundas raízes populares da revolução. Jovem diplomata, Sérgio Florêncio esteve entre os raros que percebeu a intensidade da reação da população iraniana a uma ocidentalização artificial, alienada em relação às tradições de uma antiga cultura, imposta de cima para baixo por regime corrupto, submisso a interesses estrangeiros.

A cegueira do preconceito que impede até diplomatas experimentados de reconhecerem as mudanças históricas se revela com força no diálogo de Sérgio com seu chefe. Representante da velha escola diplomática elitista, conservador próximo ao monarca e aos ocidentais, o embaixador descreve com nojo os populares que se haviam atravessado em seu caminho numa das manifestações que anunciavam o levante:

“Eu vi um bando de maltrapilhos, sujos, gritando como animais. Eram como ratos fugindo da sarjeta [...]”.

E a resposta do jovem secretário: “Eles querem construir um país digno, justo e livre”.

Nesse conflito de visões irreconciliáveis, a história daria razão ao diplomata mais moço, capaz de perceber por intuição e empatia a autenticidade do movimento. Mais tarde, Sérgio Florêncio analisaria a Revolução Iraniana num texto exemplar incluído como apêndice, intitulado “Imagens e Raio X de uma revolução”. Em contraste com as versões superficiais predominantes nos Estados Unidos e países ocidentais, a penetração crítica da análise nos faz entender por que a Revolução de 1979 teve capacidade de resistir a tudo: isolamento, boicotes, sanções, guerra desencadeada pelo ditador iraquiano Saddam Hussein.

Tratou-se, como indica o apêndice, de 

 

[...] um movimento popular de bases mais amplas e heterogêneas, que contou com o apoio dos mais expressivos segmentos da sociedade iraniana [...] produziu transformações talvez duradouras no país, alterou o equilíbrio regional e vem exercendo forte impacto sobre movimentos radicais de contestação, de inspiração político-religiosa, em numerosos países islâmicos.

 

Com a mesma agudeza que demonstrara ao reconhecer a força original da revolução, Florêncio registra desapaixonadamente sua inexorável transformação em sistema teocrático cruel e repressivo. Evoca mais uma vez o terrível destino das revoluções que devoram os próprios filhos, destruindo os que tinham sonhado edificar um país mais livre, humano, respeitador dos direitos humanos e da dignidade das pessoas.

A história da Revolução Iraniana, da mesma forma que a do golpe que, bem mais tarde, vai testemunhar no Equador, é transmitida ao leitor por meio de textos envolventes, que combinam a capacidade de análise sociológica com os relatos de vida de pessoas de carne e osso carregadas pelo turbilhão dos acontecimentos.

O embate de ideias, de posições contrastantes, encarna-se em seres com nomes e histórias: Majid, o amigo iraniano de Ottawa reencontrado em Teerã como opositor ao regime, preso pela polícia do Xá, em seguida, novamente detido e torturado pela repressão teocrática; Hadi, o cozinheiro da embaixada, antigo guerrilheiro afegão, que insiste em alimentar o recém-nascido filho de Sérgio com mamadeira de chá; o motorista Jafa, que, ao volante da Mercedes com a bandeira do Brasil, trafega a toda velocidade na contramão de ruas estreitas.

O nascimento de Thiago, chamado de Filho da Revolução, em meio à caótica fase revolucionária inicial, é contado com verve de romancista. No meio da noite, na cidade transtornada, Sérgio é obrigado a escalar o portão de ferro do hospital, saltar o muro, para acordar o porteiro adormecido com golpes contra a vidraça. O motorista Jafa ensina como primeiras palavras ao pequeno Thiago o grito da revolução iraniana: Allah Akbar! Khomeini Rahbah, “Deus é grande e Khomeini é nosso líder!”.

O livro todo alterna continuamente as crônicas da infância em Vila Isabel, as proezas de menino no futebol, a variada e colorida galeria de tios, primos, parentes, vizinhos de rua, com os estudos, as viagens, as peripécias da vida nos diversos postos. Sempre saborosas, as histórias fazem rir, outras vezes emocionam. A nota que predomina do começo ao fim é o amor da família e dos pais, de Sonia, com quem casou, dos filhos, netos, amigos, companheiros de trabalho humildes. Nada de pretensão, de esnobismo diplomático, de tristezas inúteis.

Simples, direto, despojado, o estilo cativa pelo encadeamento quase cinematográfico das cenas rápidas, não deixando cair nunca a narrativa nem enfraquecer o interesse do leitor. Sente-se em todas as linhas o som genuíno da voz de Sérgio, sua personalidade se expressa sem disfarces ou artifícios. Nem traços de vaidade, egocentrismo ou esnobismo. Nenhum exagero, nada de grandiloquência ou drama, uma vida limpa, íntegra, de amor e trabalho, devoção ao Brasil, às causas justas.

Acima de tudo, o que sobressai é a ilimitada capacidade de afeto, palavra do título que resume a essência dessa vocação notável de contador de histórias, muito mais histórias de afetos que de revolução. Aqui e ali uma ponta de nostalgia, de saudades dos que se foram, jamais amargura, ressentimento contra ninguém.

E, iluminando as páginas, a alegria, a ternura pela gente simples, a sensibilidade para o talento e a luta do povo humilde, o humor desentranhado das situações mais inesperadas. Nada melhor, nessa hora de abatimento e desânimo, que esta reafirmação implícita de fé na força do espírito brasileiro para fazer renascer a esperança e a alegria de nosso povo.

 

São Paulo, 15 de junho de 2021.

Rubens Ricupero