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terça-feira, 12 de maio de 2020

Bolsonaro quer legalizar esbulho de terras públicas - Rubens Ricupero

BOLSONARO QUER LEGALIZAR O ESBULHO DAS TERRAS PÚBLICAS, AFIRMA RICUPERO



A medida provisória 910, conhecida como MP da grilagem, “é um escândalo com poucos precedentes em 520 anos de história. É a legalização do esbulho de terras públicas em grande escala. A grilagem, o avanço de particulares nas terras públicas, ocorreu com muita frequência na história. Mas nunca com uma medida proveniente do Executivo, dando a isso legalidade”.
É o que afirma o embaixador Rubens Ricupero, ministro do Meio Ambiente e da Fazenda no governo Itamar Franco. Em entrevista ao TUTAMÉIA (clique no vídeo abaixo para ver a íntegra e se inscreva no TUTAMÉIA TV), ele alerta: “Se for aprovada, o governo brasileiro estaria transferindo para o patrimônio particular, de pessoas que são extraordinariamente monopolizadoras da propriedade da terra, terras que pertencem a todos os brasileiros”.
Seria mais uma ação contra o Brasil e os brasileiros perpetrada por Bolsonaro, que Ricupero considera um entrave para que o país consiga enfrentar com algum sucesso a pandemia do coronavírus e iniciar um processo de reconstrução nacional.
“Quanto mais mortes vamos ter que ter até que haja uma reação? Se dependesse de mim, isso teria terminado há muito tempo. O afastamento do atual governo é uma precondição sine qua. Não haverá condições para nós começarmos a reconstruir o país enquanto não acionarmos os mecanismos constitucionais para defender a Constituição e a democracia. Alguém tem que dizer que o rei está nu”.
Para ele, é preciso retirar Bolsonaro do poder por meios constitucionais: “Saída legal e constitucional existe. A Constituição prevê o impeachment. Motivos para isso temos de sobra, desde que começou o governo. Há agressões à Constituição, incitação ao fechamento do Congresso, do Supremo. [No dia da saída de Moro], ele admitiu vários delitos. Não há falta nem de lei nem de motivo; o que falta é vontade política. Vontade política tanto do Congresso, de abrir o procedimento, como do STF, que abriu várias investigações que não se concluem”, afirma.
E acrescenta: “Vejo poucas hipóteses, poucos cenários plausíveis. Um se inicia um processo de impeachment. Se isso não ocorrer, o segundo cenário é de deterioração gradual, segura e progressiva. Um agravamento cada vez maior. Uma obra de autodestruição de um país pode durar muito anos. Pode chegar a extremos de deterioração da vida econômica, política, mortes. Pode ou não conduzir a um basta. Apesar do sofrimento, da dor gigantesca, talvez não tenhamos chegado a um ponto que leva a um desfecho”.
PANDEMIA E CAMÕES
Ricupero fala ao TUTAMÉIA desde sua quarentena no bairro Higienópolis, na região central de São Paulo. Desde março, só saiu de casa uma vez, de carro, para tomar vacina contra a gripe. Ele fala dos sentimentos de incerteza e insegurança provocados pela pandemia e analisa a “crise política sem precedentes”.  Avalia: “Somos praticamente o único país da face da terra que tem que combater não só a pandemia, mas um presidente que trabalha contra. Ativamente contra. Procura a cada dia solapar os esforços [de combate à doença]. Isso não existe em nenhum outo lugar. Mesmo nos EUA, que é governado por uma pessoa que é, de certa forma, um inspirador de muita coisa do governo brasileiro, lá as atitudes são mais comedidas. A crise é sui generis, a capacidade de manifestar é muito limitada. Se não fosse isso, estaríamos indo para a rua para dizer em alto e bom som o que sentimos”.
Ricupero aponta como Argentina, Uruguai e Paraguai, que tomaram duras medidas preventivas, enfrentam a crise de forma muito mais eficaz. “Alberto Fernández, em 23 de março, decretou o lockdown, a proibição de sair na rua. Dois meses depois, a Argentina não tem 10% do número de mortos do Estado de São Paulo. Ele chamou o ex-presidente Macri para mostrar uma unidade nacional de solidariedade. É uma diferença da água para o vinho”. Cita, também, o exemplo exitoso da Índia no combate à propagação do vírus e afirma:
“Não há nada de fatal, de determinístico no que nos atinge. A diferença de comportamento da liderança é que explica a diferença de resultados. As boas lideranças, as lideranças humanas, sensíveis à ciência conseguiram minimizar, reduzir o impacto [da pandemia].”
Na análise de Ricupero, o comportamento de Bolsonaro “agride os fatos, agride a realidade, agride a ciência, agride os próprios ministros competentes dele, como foi o anterior ministro da Saúde. Ou se trata de um comportamento totalmente irracional ou, se tiver alguma racionalidade, só pode ser um cálculo, de que isso acabaria dando a ele a simpatia daqueles vão sofrer mais com perda de emprego, renda, dos empresários que pressionam para a reabertura precoce”.
O embaixador receia que o Brasil se transforme no epicentro da crise, com o agravamento muito acelerado dos casos, das mortes e do colapso de sistema hospitalar. “Isso tem muito a ver com a qualidade da liderança”, reforma. E cita Camões: “O fraco rei faz fraca a forte gente”.  Para Ricupero, “o erro do líder supremo contamina toda a população”.
POLÍTICA EXTERNA INCONSTITUCIONAL
Ao TUTAMÉIA, Ricupero fala do documento que assinou, na semana passada, classificando a atual política externa brasileira como inconstitucional. O texto, endossado por Fernando Henrique Cardoso e ex-ministros de diferentes posições políticas (confira o conteúdo abaixo) aponta como Bolsonaro fere princípios básicos estabelecidos na Carta de 1988, como a soberania, a independência, a autodeterminação dos povos, a não ingerência e a busca por soluções pacíficas para conflitos. “Esses princípios todos estão sendo violados na letra e no espírito”, ressalta.
Ex-embaixador do Brasil nos EUA, ele aponta exemplos e condena enfaticamente a aliança de Bolsonaro com os EUA. Diz que o Brasil, ao se definir como aliado estadunidense, está “hipotecando a sua independência e a sua soberania. Significa que os inimigos dos EUA passam a ser nossos inimigos. O Brasil não tem porque considerar esses países adversários. O Congresso precisaria analisar isso”.
Na visão de Ricupero, o governo também fere a Constituição ao votar contra resoluções em defesa dos direitos humanos e tem uma atitude “absolutamente inexplicável e inconstitucional no caso Venezuela”, quando determinou a saída dos diplomatas daquele país _medida que foi derrubada pelo STF. “Felizmente [o STF derrubou]. É um absurdo sem nome”.
O diplomata fala da possibilidade de frente democrática contra Bolsonaro e considera que o documento da semana passada, que também aponta caminhos para a reconstrução da política externa brasileira, “pode ser uma semente de uma coisa mais ampla, porque reuniu pessoas de crenças, de partidos diferentes. Espero que isso possa inspirar os líderes políticos”.
Nesta entrevista ao TUTAMÉIA, Ricupero avalia os impactos da pandemia no globo. “Ela vai acentuar, acelerar algumas tendências que já eram perceptíveis antes. Como a tendência a um certo esgotamento, uma desaceleração da globalização”. Prevê uma redução da excessiva dependência das economias em relação à China e uma volta a uma certa autonomia nacional, Haverá, segundo ele, “um grau maior de desintegração daquele acoplamento entre China e os EUA”.
Ele lamenta a falta evidente de cooperação internacional nessa crise e declara:
“Gostaria que depois da pandemia que se tirasse disso uma lição: a necessidade de haver um sistema global para detectar as pandemias no começo e evitar que elas se propagem. É como a imagem de um incêndio na floresta. Quando começa um foco, se ele for detectado em tempo e apagado, não há grandes danos. Não temos um corpo de bombeiros para isso”.
Leia a seguir a íntegra do documento assinado por Ricupero e outros ex-ministros condenando como inconstitucional a política externa de Bolsonaro.
 A RECONSTRUÇÃO DA POLÍTICA EXTERNA BRASILEIRA
Artigo assinado por FERNANDO HENRIQUE CARDOSO, ex-presidente da República e ex-ministro das Relações Exteriores; ALOYSIO NUNES FERREIRA, CELSO AMORIM, CELSO LAFER, FRANCISCO REZEK E JOSÉ SERRA, ex-ministros das Relações Exteriores; RUBENS RICUPERO, ex-ministro da Fazenda, do Meio Ambiente e ex-embaixador do Brasil em Washington; e HUSSEIN KALOUT, ex-secretário especial de Assuntos Estratégicos da Presidência

Apesar de nossas distintas trajetórias e opiniões políticas, nós, que exercemos altas responsabilidades na esfera das relações internacionais em diversos governos da Nova República, manifestamos nossa preocupação com a sistemática violação pela atual política externa dos princípios orientadores das relações internacionais do Brasil definidos no Artigo 4º da Constituição de 1988.
Inovadora nesse sentido, a Constituição determina que o Brasil “rege-se nas suas relações internacionais pelos seguintes princípios: I- independência nacional; II- prevalência dos direitos humanos; III- autodeterminação dos povos; IV- não-intervenção; V- igualdade entre os Estados; VI- defesa da paz; VII- solução pacífica dos conflitos; VIII- repúdio ao terrorismo e ao racismo; IX- cooperação entre os povos para o progresso da humanidade; X- concessão de asilo político”.
“Parágrafo único. A República Federativa do Brasil buscará a integração econômica, política, social e cultural dos povos da América Latina, visando à formação de uma comunidade latino-americana de nações.”
É suficiente cotejar os ditames da Constituição com as ações da política externa para verificar que a diplomacia atual contraria esses princípios na letra e no espírito.
Não se pode conciliar independência nacional com a subordinação a um governo estrangeiro cujo confessado programa político é a promoção do seu interesse acima de qualquer outra consideração.
Aliena a independência governo que se declara aliado desse país, assumindo como própria uma agenda que ameaça arrastar o Brasil a conflitos com nações com as quais mantemos relações de amizade e mútuo interesse.
Afasta-se, ademais, da vocação universalista da política externa brasileira e de sua capacidade de dialogar e estender pontes com diferentes países, desenvolvidos e em desenvolvimento, em benefício de nossos interesses.
Outros exemplos de contradição com os dispositivos da Constituição consistem no apoio a medidas coercitivas em países vizinhos, violando os princípios de autodeterminação e não-intervenção; o voto na ONU pela aplicação de embargo unilateral em desrespeito às normas do direito internacional, à igualdade dos Estados e à solução pacífica dos conflitos; o endosso ao uso da força contra Estados soberanos sem autorização do Conselho de Segurança da ONU; a aprovação oficial de assassinato político e o voto contra resoluções no Conselho de Direitos Humanos em Genebra de condenação de violação desses direitos; a defesa da política de negação aos povos autóctones dos direitos que lhes são garantidos na Constituição, o desapreço por questões como a discriminação por motivo de raça e de gênero.
Além de transgredir a Constituição Federal, a atual orientação impõe ao país custos de difícil reparação, como o desmoronamento da credibilidade externa, perdas de mercados e fuga de investimentos.
Admirado na área ambiental, desde a Rio-92, como líder incontornável no tema do desenvolvimento sustentável, o Brasil aparece agora como ameaça a si mesmo e aos demais na destruição da Amazônia e no agravamento do aquecimento global.
A diplomacia brasileira, reconhecida como força de moderação e equilíbrio a serviço da construção de consensos, converteu-se em coadjuvante subalterna do mais agressivo unilateralismo.
Na América Latina, de indutores do processo de integração, passamos a apoiar aventuras intervencionistas, cedendo terreno a potências extrarregionais.
Abrimos mão da capacidade de defender nossos interesses, ao colaborarmos para a deportação dos Estados Unidos em condições desumanas de trabalhadores brasileiros ou ao decidir por razões ideológicas a retirada da Venezuela, país limítrofe, de todo o pessoal diplomático e consular brasileiro, deixando ao desamparo nossos nacionais que lá residem.
Na Europa ocidental, antagonizamos gratuitamente parceiros relevantes em todos os domínios como França e Alemanha. A antidiplomacia atual afasta o país de seus objetivos estratégicos, ao hostilizar nações essenciais para a própria implementação da agenda econômica do governo.
A gravíssima crise de saúde da Covid-19 revelou a irrelevância do Ministério das Relações Exteriores e seu papel contraproducente em ajudar o Brasil a obter acesso a produtos e equipamentos médico-hospitalares.
O sectarismo dos ataques inexplicáveis à China e à Organização Mundial de Saúde, somado ao desrespeito à ciência e a insensibilidade às vidas humanas demonstradas pelo presidente da República, tornaram o governo objeto de escárnio e repulsa internacional.
Criaram, ao mesmo tempo, obstáculos aos esforços dos governadores para importar produtos desesperadamente necessários para salvar a vida de milhares de brasileiros.
O resgate da política exterior do Brasil exige o retorno à obediência aos princípios constitucionais, à racionalidade, ao pragmatismo, ao senso de equilíbrio, moderação e realismo construtivo.
Nessa reconstrução, é preciso que o Judiciário, guardião da Constituição, e o Congresso Nacional, representante da vontade do povo, cumpram o papel que lhes cabe no controle da constitucionalidade das ações diplomáticas.
A fim de corresponder aos anseios do nosso povo e corresponder às necessidades reais do Brasil, a política externa precisa contar com amplo respaldo na opinião pública, e a colaboração na sua concepção de todos os setores da sociedade.
Requer também o engajamento do nosso corpo de diplomatas: uma política de Estado e não uma ação facciosa voltada para excitar os ânimos e exacerbar os preconceitos de uma minoria obscurantista e reacionária.
Nossa solidariedade e decidido apoio aos diplomatas humilhados e constrangidos por posições que se chocam com as melhores tradições do Itamaraty.
A reconstrução da política exterior brasileira é urgente e indispensável. Deixando para trás essa página vergonhosa de subserviência e irracionalidade, voltemos a colocar no centro da ação diplomática a defesa da independência, soberania, da dignidade e dos interesses nacionais, de todos aqueles valores, como a solidariedade e a busca do diálogo, que a diplomacia ajudou a construir como patrimônio e motivo de orgulho do povo brasileiro.
São Paulo, 8 de maio de 2020