Minitratado
das inutilidades burocráticas
Paulo Roberto de Almeida
Saindo
do trabalho além da hora, cruzei com um colega no corredor, ele numa direção,
eu na oposta. Trocamos apenas as palavras habituais de cortesia, sem parar a
não ser por um rápido aperto de mão, “olá, como vai?, trabalhando muito?”;
“Pois é, é o jeito!”, ele disse, acrescentando ao final: “Vamos esperar pela
aposentadoria”, ou algo do estilo (sou péssimo para memorizar certas coisas,
além de edições de livros). Havia, evidentemente, certo sentido de cansaço
naquelas palavras, algo de desalento ou coisa do gênero. Enfim, nos despedimos
e fui para casa sem pensar mais naquele encontro. Mas de alguma coisa serviram
aquelas palavras, retidas em minha consciência, aparentemente.
Chegando
na garagem do edifício, encontrei-me com outro colega, também voltando tarde do
trabalho, provavelmente não pelos meus motivos, mas ainda assim fiz aquelas
perguntas habituais e trocamos as palavras esperadas nessas circunstâncias:
“Olá, voltando tarde, fazendo hora extra?”; “Pois é, e o pior que não adianta
muito...”; “Muita coisa para fazer?”, perguntei enquanto subíamos de elevador
para o mesmo andar; “São coisas sobre as quais não há nada a fazer”, disse ele,
acrescentando logo em seguida: “Sabemos que não vai adiantar nada, que não há
nada a fazer, ainda assim, precisamos responder, para constar...”, terminou
ele; enquanto eu virava a chave do meu apartamento, ainda tive tempo de dizer a
ele: “Inutilidades burocráticas...”, ao que ele assentiu, disse boa noite e
também girou a sua chave.
Entrei
em casa ensimesmado com as duas conversas, e imediatamente tive a ideia de
escrever este minitratado, o primeiro que me é inspirado diretamente por um
evento corrente, um fato concreto, não um divertimento do espírito, como
ocorreu com todos os demais desta série. Não tenho palavras, aliás, nem
imaginação, apenas impressões vazias, como numa verdadeira inutilidade
burocrática. Que coisa mais inútil escrever sobre uma total inutilidade, sem
ter perspectiva de avançar nenhum argumento inteligente, alguma palavra
significativa sobre alguma realidade efetiva, la verità effetuale delle cose, como dizia meu amigo Niccolò, há
muito tempo atrás, muito tempo mesmo.
O
que pode haver de interessante em certas inutilidades burocráticas, tarefas das
quais é preciso se desempenhar mesmo sabendo que elas não servem para
literalmente nada, apenas para alimentar o próprio processo burocrático? O que
poderia significar de produtivo adentrar num roteiro kafkiano, no qual não se
sabe sequer para que servem todos aqueles papéis que se movem de um lado a
outro para, ao final, não produzir sequer um grama de valor agregado na
formação do PIB nacional?
Enfim,
um burocrata verdadeiro pode até ficar excitado, até quase ter um estado
orgástico, com esse tipo de inutilidade inútil – com perdão pela redundância – mas
imagino que um racionalista paretiano, como este que aqui escreve, só pode
sentir-se incomodado com certos exercícios de pura transpiração burocrática,
sem qualquer inspiração produtiva, numa total ineficiência administrativa. Por
que a burocracia deveria ser produtiva, ou eficiente, se a sua razão essencial
de existência é apenas... existir? Por que deveria ela servir para algo quando
a razão burocrática tem como única razão e justificativa servir a si própria e
justificar-se pelo simples fato de continuar fazendo sempre as mesmas coisas,
sem que alguém pergunte para que, exatamente?
Kafka
é, de fato, o melhor autor para tratar de “inutilidades burocráticas” como essas
incidentalmente enfocadas aqui; seu romance – de ficção burocrática, se ouso
dizer –, O Processo, é o melhor
resumo da (des)razão burocrática jamais construído nos anais da literatura
mundial. A trama, perfeitamente burocrática, se passa numa capital
indeterminada da Europa central e deixa um cidadão comum, Josef K., em estado
de estupefação surrealista ante a convocação autoritária de autoridades movidas
por propósitos completamente desconhecidos – um crime jamais identificado – e guiadas
por códigos de procedimento nunca explicitados para o “acusado”. Ao tratar de maquinações
sem sentido que a máquina do Estado pode criar, de maneira perfeitamente
anódina, para o homem comum, o romance póstumo de Kafka passou justamente a simbolizar
absurdos burocráticos que elevaram o nome do autor a sinônimo do caso em
espécie.
O
mais curioso é que li o romance, pela primeira vez, na própria cidade de Kafka,
Praga, em meio a procedimentos e administrativos do então socialismo real, que
me deixaram em estado de torpor burocrático ante a máquina surrealista do
Estado autoritário. Mais curioso ainda: se tratava de uma tradução para o
espanhol, publicada pela Casa de las Américas, uma editora depois fechada pelo
socialismo burocrático cubano, provavelmente o segundo regime mais kafkiano da
história mundial do socialismo, depois do campeão absoluto, o regime
totalitário norte-coreano. Este merece, não um minitratado, mas um tratado
inteiro de interpretação, como a expressão máxima do stalinismo surrealista em
toda a história humana conhecida.
Existiria
algo equivalente a Kafka na literatura que trata das realidades
latino-americanas, aparentemente tão pouco burocráticas e excessivamente
desorganizadas? Só consigo pensar agora num romance de ficção burocrática, que
se passa nas selvas da Amazônia peruana, mas cuja trama é bem mais interessante
do que a selva urbana de Kafka: Pantaleão
e as Visitadoras, de Mario Vargas Llosa. De fato, a busca da perfeição
administrativa na organização de serviços de “conforto sexual” para soldados
servindo em postos recuados da floresta, inclusive cronometrando o tempo
dedicado à prestação, em si, é absolutamente kafkiana, embora num sentido bem
mais satisfatório do que a acusação indefinida que atinge o pobre Josef K. do
romance original. Pode-se inclusive arguir que Vargas Llosa é perfeitamente
realista – não socialista, obviamente – em relação a um drama recorrente em
certas situações que confrontam as bravas forças armadas ante premências das
paixões humanas.: Kafka na selva amazônica pode ser tão surrealista quanto seu equivalente
da selva urbana da Europa central e oriental, mas os procedimentos seguidos não
exibem o mesmo rigor burocrático do estranho mundo do escritor de Praga.
Um
elemento é comum aos dois universos acima identificados: a perfeita inutilidade
de toda máquina burocrática para resolver problemas reais das pessoas e das
sociedades. As burocracias, nas selvas ou nas cidades, enredam os cidadãos numa
teia de obrigações e atividades as mais diversas sem trazer necessariamente avanços
para as sociedades em causa, apenas movendo pessoas, coisas, papéis de um lado
a outro, criando uma aparência de ativismo, quando tudo se move em círculos,
sem sair do lugar, como na armadilha do moto perpétuo. A burocracia é feita
para repetir-se, para perpetuar-se, para criar sua própria razão e através dela
legitimar-se, por procedimentos que ela mesma cria e das quais se alimenta sem
quebra de rotina (ou ela é sua própria rotina).
Não
que as burocracias vivam inteiramente de suas próprias inutilidades, mas é que,
à diferença do mundo real da produção, do comércio, da produção agrícola, ou
dos serviços vinculados a qualquer uma dessas atividades, as burocracias
suscitam o surgimento, permitem a expansão e levam ao auge de sua expressão
irracional as inutilidades que elas criam, alimentam e multiplicam em todos os
escalões do aparelho de Estado. Burocracias, e suas inutilidades, também
existem no mundo corporativo, talvez até mais desenvolvidas e muito melhor
nutridas, com roupas mais vistosas e salários mais polpudos. O próprio das
inutilidades corporativas, porém, é que elas têm prazo de validade e data de
vencimento de curtíssimo prazo, praticamente no espaço do ciclo de vida de
produto ou serviço, que precisa produzir resultados efetivos sob risco de
colocar no vermelho os retornos financeiros da corporação em causa.
Em
contraste, as inutilidades da burocracia de Estado tendem a crescer e se
estabilizar no seu próprio movimento circular, criando uma aparência de
movimento, mas na verdade girando em círculos em torno de alguma razão
desconhecida, se não é a da própria burocracia estatal. Nada a demove de seus
movimentos habituais, sincronizados a códigos de procedimento tão obscuros
quanto velhos manuais de alquimia renascentistas. Os movimentos se repetem,
incansáveis, os papéis se acumulam, os editais se multiplicam e os dispêndios
acontecem, mas nada acontece de verdade, a não ser a própria transpiração
burocrática, muito pouco inspirada, de fato, mas produzindo cada vez mais
transpiração, como convém a uma legítima inutilidade burocrática, das grandes.
Que
outra prova da perfeita inutilidade da burocracia estatal que sua notória e
imensa faculdade de continuamente rabiscar papéis, de compor longos memorandos,
de redigir minutas, de numerar notas e ultimar relatórios, chegando inclusive a
propor inteiros tratados, e até alguns minitratados, sem se importar com o
resultado final ou com o valor de mercado e a significação social de toda essa
agitação?
Incansáveis
e inconscientes esses redatores de minitratados, que poderiam estar produzindo
algum ensaio de qualidade para elevar os padrões intelectuais da humanidade,
mas que passam o tempo, e ocupam um pouco do tempo alheio, redigindo
minitratados que não possuem qualquer outro objetivo senão o puro divertimento
pessoal, na mais clara definição do que representa uma inutilidade burocrática.
Vale!
Brasília, 9 de outubro de 2011