O que é este blog?

Este blog trata basicamente de ideias, se possível inteligentes, para pessoas inteligentes. Ele também se ocupa de ideias aplicadas à política, em especial à política econômica. Ele constitui uma tentativa de manter um pensamento crítico e independente sobre livros, sobre questões culturais em geral, focando numa discussão bem informada sobre temas de relações internacionais e de política externa do Brasil. Para meus livros e ensaios ver o website: www.pralmeida.org. Para a maior parte de meus textos, ver minha página na plataforma Academia.edu, link: https://itamaraty.academia.edu/PauloRobertodeAlmeida;

Meu Twitter: https://twitter.com/PauloAlmeida53

Facebook: https://www.facebook.com/paulobooks

Mostrando postagens com marcador pandemia. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador pandemia. Mostrar todas as postagens

quarta-feira, 14 de abril de 2021

Vida e morte - Ana Carla Abrão (OESP)

Vida e morte

Ana Carla Abrão
O Estado de S. Paulo, 13 de abril de 2021


O Brasil é Severino. Severino de Maria, do finado Zacarias. A obra-prima de João Cabral de Melo Neto nunca foi tão nossa, tão real, tão ampla como em 2021. Como o retirante de Morte e Vida Severina, que vai da Serra da Costela ao Recife no extraordinário poema regionalista publicado em 1955, hoje vivemos a vida que não se vive, mas que se defende.

A realidade se estampa nos números da nossa tragédia social, a começar pela triste marca de mais de 350 mil mortos por covid-19. Na mesma esteira, seguem-se outros tristes números. O PIB per capita (que funciona como um indicador de riqueza da população) encolheu em média 0,6% ao ano na última década, segundo o Ibre/FGV.

Quando comparado ao PIB per capita dos Estados Unidos, voltamos ao início dos anos 2000, com nosso PIB per capita equivalendo de volta ao mesmo Å do norteamericano de então. Ou seja, em termos absolutos e relativos, ficamos mais pobres.

Também corremos o risco de sermos menos pessoas ativas economicamente no futuro. Não só porque se morre muito hoje, mas também porque o desalento leva a menos nascimentos. Isso significa um risco de termos menor capacidade de produzir riqueza e de financiar aqueles que não são produtivos â crianças e aposentados â lá na frente. Não só o País já perdeu a oportunidade de se beneficiar do bônus demográfico, que reduziu a razão de dependência entre os segmentos economicamente dependentes e o segmento classificado como produtivo a 44% (44 brasileiros com menos de 15 e mais de 64 anos dependentes de 100 pessoas em idade de trabalhar), como podemos vir a ter uma aceleração adicional dessa razão. Pela primeira vez na nossa história, conforme noticiado pelo Estadão no último domingo, algumas regiões do Brasil registraram mais mortes do que nascimentos. Os dados se referem aos primeiros dias de abril e, embora preliminares e explicados pelo elevado número de mortes, expõem a inversão de uma relação que mostrava nascimentos superando em mais que o dobro os óbitos. A depender dessa tendência, da sua intensidade e duração, o desafio da produtividade â já tão grande â será ainda maior no futuro.

Nessa esteira de números de tristeza e de piora nas perspectivas futuras, a educação surge como mais uma grande tragédia. O impacto da pandemia sobre a aprendizagem e sobre o aumento na evasão escolar pode significar o comprometimento de uma geração de crianças e jovens. Esse, sim, é o mais grave dos tristes legados, pois significa enraizar ainda mais a pobreza e a desigualdade que já tanto castigam. Os dados do IBGE mostravam um retrato ruim em 2019. Ali, mais da metade dos adultos brasileiros não havia concluído o ensino médio, segundo a Pnad Contínua, divulgada em meados do ano passado.

Dentre os nossos 50 milhões de jovens entre 14 e 29 anos, 10 milhões abandonaram ou nunca frequentaram a escola. Desses, 71,7% são pretos ou pardos.

Com a pandemia e a assimetria dos seus impactos por renda, gênero e raça, não haverá o que se comemorar nesse campo nos próximos anos. Ao contrário, contrata-se assim a manutenção da pobreza, além de subemprego, criminalidade e aumento da desigualdade social.

Outros números se juntam para compor esse triste mosaico. Desemprego elevado â em particular, mais grave entre mulheres, pretos e pardos ; aumento na concentração de renda (acentuada pela discrepância na trajetória de salários nos setores público e privado) e nos níveis de pobreza; agravamento da situação fiscal dos Estados e municípios e o consequente enfraquecimento da sua capacidade de provisão de serviços públicos de qualidade. Dentre outros que se misturam com a agenda populista e fisiológica que há muito nos tomou de assalto.

Mas não quero aqui deprimir ainda mais meu leitor. Afinal, a esperança, última a morrer e única ainda viva quando até o otimismo já se foi, vem em outra esteira. Paralela à esteira da morte, ela surge em reação à atual distopia e celebra a vida. É o Mestre Carpina de João Cabral, que responde a esse Brasil retirante ser o espetáculo da vida a melhor resposta para a morte.

Ao mesmo tempo que o Brasil sucumbe, abre-se na urgência o espaço para uma agenda que, ainda franzina, deverá fazer convergir ao centro uma alternativa que trará de volta o País dos brasileiros. Essa agenda deverá colocar a justiça social e a redução das desigualdades no topo das suas prioridades, e buscá-las por meio de políticas públicas que carregarão não a marca da ideologia, mas, sim, a da ciência e a do rigor. Isso, sim, é convergência. Isso, sim, será recolocar o Brasil nos trilhos. Afinal, somos todos, como em Morte e Vida Severina, irmãos das almas num País que hoje chora suas mortes. Mas que tem tanta vida que faz valer a pena buscar uma saída.

-

ECONOMISTA E SÓCIA DA CONSULTORIA OLIVER WYMAN. O ARTIGO REFLETE EXCLUSIVAMENTE A OPINIÃO DA COLUNISTA

quinta-feira, 8 de abril de 2021

Bolsonaro cometeu CRIMES contra a Humanidade - Deisy Ventura, Fernando Aith, Rossana Reis (The BMJ opinion)

 The catastrophic Brazilian response to covid-19 may amount to a crime against humanity

Cases of covid-19 are rising in Brazil, as the more transmissible P1 variant spreads across the country.

In Brazil, the federal government’s approach to the covid-19 pandemic has been to try to achieve herd immunity through contagion. This has so far led to the avoidable deaths of hundreds of thousands of citizens. On 5 March, we published an article explaining the strategy to allow covid-19 to spread, led by Jair Bolsonaro, the Brazilian president himself. [1] Since then, as expected, Brazil has plunged into an unprecedented health catastrophe.

Last week, nearly one third of all daily covid-19 fatalities in the world were in Brazil, although Brazil makes up only 2.7% of the world population. On 2 April, there were 12.8 million cases and over 325 thousand deaths. In the week 21-27 March, there was a daily 0.8% rise in cases and 1.9% rise in deaths; lethality has risen from 2% to 3.3% since late 2020. [2] The new variants circulating in Brazil have become a serious cause of concern to neighbouring countries. [3]

The catastrophe could be much worse had there not been a national public health system (SUS) in place, based on universal coverage. Yet the system has reached the point of collapse.

On 29 March 2021, 17 out of the 27 federal states reached adult-ICU-bed occupation rates of 90% or more; among the 27 capital cities, 21 displayed the same rates, and seven of them had reached their full capacity or were working above it. [4] At most points of care, the number of available beds, although insufficient, results from successive expansions due to the high demand. Despite these efforts, by 25 March, 6,371 people were waiting for an ICU-bed. [5] In March, 496 people lost their lives while on the waiting list for ICU in the state of Sao Paulo alone. [6]

The stocks of medication used for patient intubation are nearly depleted. [7] The shortage of oxygen, beginning in January in the state of Amazonas, has affected several other cities and threatens the rest of the country.  

The collapse of the healthcare system is resulting in higher mortality rates, both from covid-19 and other diseases, including due to a lack of available care. In 2020, hospital mortality rates were already high: 59% among ICU patients and 80% among those who needed mechanical ventilation support. In 2020, 9,311 Brazilians died unassisted at home from covid-19. [8,9]

Against that backdrop, almost all federal states have adopted restrictive measures to curb the circulation of covid-19. They have faced fierce opposition from the federal government.

Bolsonaro has even filed a lawsuit with the Supreme Federal Court against three governors, who had temporarily suspended commercial activities. [10] The case was dismissed for basic legal inconsistencies. He still maintains a false opposition between the economy and health and he claims that lockdown measures would cause starvation, unemployment, and social chaos.

Starvation, however, is the result of neglect from the federal government itself. The financial support offered to low-income families, allowing them to stay home during the pandemic, ceased in December 2020, forcing millions to resume work. A new aid programme has been announced, but reduced from 600 to 150 reais (19,25 pounds) and, at the peak of the pandemic, is still to be implemented. The financial aid to small and medium-sized companies is meagre, which has led some of their owners to oppose the temporary closing of business. Employees have been incited to join street demonstrations against governors and mayors who adopt quarantines, often without masks.

Bolsonaro keeps holding public gatherings, promoting scientific denialism, and defending the early use of ineffective drugs against covid-19. The so-called “Covid kit,” promoted by the federal government, includes hydroxychloroquine, azithromycin, ivermectin, and anticoagulants, and may cause haemorrhage, renal failure, and arrhythmias. In Sao Paulo, at least five patients who were prescribed the “early treatment” have entered the liver transplant line and three have died from hepatitis. [11] 

On 23 March 2021, a new health minister took office. General Eduardo Pazzuelo, who left the post, has been accused of several crimes in accordance with the Brazilian penal code, among which are the breach of preventive health measures and misuse of public funds. [12] The new health minister, Marcelo Queiroga, a doctor, has promised to arrange for vaccination against covid-19. The vaccination rollout remains sluggish, whereas the presidents of the Lower Chamber and the Senate stand for the procurement of vaccines by the private sector to inoculate company owners, their families and employees. [13] That could undermine the efficiency of the national immunization plan by subverting the priority order and increase health inequalities and divisions. Bolsonaro, who has opposed vaccination for months, has started supporting it, due to the general compliance of the public to the campaign set up by local governments and the escalation of the covid-19 crisis.  

The response to the pandemic among the military more rigorously followed WHO recommendations, such as the use of masks and physical distancing, as described by the current Army Commander, General Paulo Sérgio, in a recent interview. [14]

By late March, an alleged “self-coup” attempt by Bolsonaro failed against the resistance of Armed Forces, which have opposed the President’s intention to militarily intervene in the states adopting quarantine measures. [15] Nevertheless, the President still engages in an all-out war against governors and mayors, whom he labels as “dictators” who violate citizens’ rights and harm the economy. [16]

In our opinion, the federal government’s stance may constitute a crime against humanity. According to the international criminal jurisprudence, the massive and systematic use of pressure to induce the public to behave a certain way, according to a preconceived plan, which deploys considerable public and private means, may outline an attack on the civilian population. 

The fact remains that, if the decision to try to achieve herd immunity from covid-19 by allowing contagion to spread unchecked remains unpunished, it is likely to become an extraordinary means for future rulers to harm vulnerable populations by means of neglecting public health measures. 

Deisy Ventura, Professor, Director of the PhD Program in Global Health and Sustainability at Public Health School, University of Sao Paulo, Brazil

Fernando Aith, Professor, Director of the University of São Paulo Health Law Research Center

Rossana Reis, Associate Professor at the Institute of International Relations, University of São Paulo

Competing interests: none declared.

References:

1] https://blogs.bmj.com/bmj/2021/03/05/covid-19-in-brazil-the-government-has-failed-to-prevent-the-spread-of-covid-19/
2] https://portal.fiocruz.br/sites/portal.fiocruz.br/files/documentos/boletim_extraordinario_2021-marco-30-red.pdf
3] https://internacional.estadao.com.br/noticias/geral,descontrole-da-pandemia-no-brasil-assusta-america-do-sul,70003654733
4] https://portal.fiocruz.br/sites/portal.fiocruz.br/files/documentos/boletim_extraordinario_2021-marco-30-red.pdf
5] https://www.cnnbrasil.com.br/saude/2021/03/26/brasil-tem-mais-de-6300-pessoas-na-fila-por-leitos-de-uti
6] https://g1.globo.com/sp/sao-paulo/noticia/2021/04/01/quase-500-pessoas-com-covid-19-morreram-a-espera-de-um-leito-de-uti-em-marco-no-estado-de-sp.ghtml
7] https://saude.ig.com.br/2021-03-25/estoque-de-medicamentos-para-intubacao-da-rede-privada-deve-acabar-em-4-dias.html
8] https://www.thelancet.com/journals/lanres/article/PIIS2213-2600(20)30560-9/fulltext
9] http://www.arpenbrasil.org.br/sala_imprensa_materia.php?id=9
10] https://www.cnnbrasil.com.br/politica/2021/03/19/bolsonaro-entra-com-acao-no-stf-contra-restricoes-de-governadores-do-df-ba-e-rs
11] https://saude.estadao.com.br/noticias/geral,apos-uso-de-kit-covid-pacientes-vao-para-fila-de-transplante-ao-menos-3-morrem,70003656961
12] https://www.cartacapital.com.br/justica/oab-pede-a-pgr-que-pazuello-responda-por-crimes-contra-a-saude-e-prevaricacao/
13] https://www.nexojornal.com.br/expresso/2021/04/01/As-investidas-para-permitir-a-vacina%C3%A7%C3%A3o-privada-no-Brasil
14] https://www.correiobraziliense.com.br/politica/2021/03/4914583-general-paulo-sergio-diz-que-exercito-ja-espera-3onda-da-covid.html
15] https://www.theguardian.com/world/2021/mar/30/brazil-military-chiefs-resign-bolsonaro-fires-defense-minister
16] https://noticias.uol.com.br/saude/ultimas-noticias/redacao/2021/03/18/bolsonaro-diz-que-entrou-com-acao-no-stf-contra-decretos-de-governadores.htm

terça-feira, 6 de abril de 2021

Brasil deve considerar fazer lockdown, diz Anthony Fauci - Entrevista exclusiva a Mariana Sanches (BBC-Brasil, de Washington)

 EXCLUSIVO 1) Líder do combate à covid-19 nos EUA, o médico Anthony Fauci me disse hoje q situação de pandemia do Brasil é 'mto grave' e se espalha pela América do Sul. País precisa acelerar vacinação e adotar medidas como 'lockdown'.

bbc.com

Exclusivo: Brasil deve considerar seriamente fazer lockdown, diz Anthony Fauci

  • Mariana Sanches - @mariana_sanches
  • Da BBC News Brasil em Washington

Enquanto grande parte do mundo vê uma diminuição no número de casos e mortes por covid-19, o Brasil vive seu maior pico na pandemia e responde hoje por um em cada três mortos pelo novo coronavírus no mundo. 

"Todos reconhecem que há uma situação muito grave no Brasil", afirmou o médico americano Anthony Fauci em entrevista exclusiva à BBC News Brasil.

Fauci é um dos olhares preocupados que a situação sanitária do país atraiu. Líder da força-tarefa contra a pandemia nos Estados Unidos, o médico ganhou proeminência global ao contrariar publicamente as declarações do então presidente americano Donald Trump, que minimizou a gravidade da pandemia e atuou contra medidas de distanciamento social e a favor de tratamentos sem eficácia comprovada contra a covid, como a hidroxicloroquina. 

Fauci prefere não tratar o Brasil como "ameaça", termo corrente na imprensa internacional diante da onda de contágio brasileira, mas reconhece que a grave situação do Brasil está se espalhando pela América do Sul e que, para contê-la, serão necessárias duas medidas: aumento na vacinação e adoção de medidas como lockdowns

"Não há dúvida de que medidas severas de saúde pública, incluindo lockdowns, têm se mostrado muito bem-sucedidas em diminuir a expansão dos casos. Então, essa é uma das coisas que o Brasil deveria pensar e considerar seriamente dado o período tão difícil que está passando", argumentou Fauci. 

Há três dias, no entanto, o ministro da Saúde do Brasil, Marcelo Queiroga, praticamente descartou essa medida ao dizer que "a ordem é evitar lockdown". 

Na outra frente, a das vacinas, a situação também não é confortável: apenas 20 milhões de brasileiros (pouco mais de 9% da população) já receberam ao menos uma dose de imunizante, e no ritmo atual não chegaria à metade da população neste semestre. 

Depois de recusar ofertas de vacinas da Pfizer, ameaçar boicotar a CoronVvac e não buscar outros fornecedores além da AstraZeneca-Oxford, cuja fabricação pela Fiocruz vem sofrendo sucessivos atrasos, o governo Bolsonaro se viu sem muitas opções para acelerar a chegada das vacinas aos braços brasileiros. 

Desde março deste ano, o governo federal tenta negociar a compra de alguns milhões de doses da vacina AstraZeneca-Oxford que estão sem uso nos Estados Unidos atualmente e não devem ser necessárias ao país, que conta com estoques de Pfizer, Moderna e Janssen suficientes para a população.

Fauci, no entanto, indica que os Estados Unidos não devem repassar essas doses ao Brasil em uma negociação bilateral. 

"Os Estados Unidos já desempenham um papel importante na tentativa de levar vacinas para outros países que precisam. Nós retornamos à Organização Mundial de Saúde (OMS), estamos nos juntando ao Covax", afirmou Fauci, em referêcia ao consórcio de países lderado pela OMS para distribuir vacinas aos países mais pobres.

O médico completou: "E já deixamos bem claro que assim que levarmos as vacinas para a esmagadora maioria das pessoas nos EUA, além de termos o suficiente para reforços, colocaremos o excesso de vacina à disposição dos países em todo o mundo que precisarem". 

Segundo ele, isso seria feito via Covax, que, no entanto, não deve trazer grande alívio à condição do Brasil, já que o governo federal optou por participar da iniciativa apenas com a cota mínima, de 42 milhões de doses (e até agora só recebeu 1 milhão delas).

Fauci, que chefia o Instituto Nacional de Alergia e Doenças Infecciosas (NIAID) desde 1984, não quis comentar sobre a responsabilidade de Bolsonaro no agravamento da pandemia. 

Ele disse, no entanto, que o exemplo dos Estados Unidos, onde mais de 550 mil morreram de covid-19, mostra ao Brasil que "negar a gravidade do surto nunca ajuda. Na verdade, muitas vezes piora a situação". 

"Para controlar uma epidemia, você precisa admitir que tem um problema sério. Depois de admitir que tem um problema sério, você pode começar a fazer as coisas para resolvê-lo", afirmou Fauci. 

Para ele, os países que tiveram mais eficiência em lidar com a covid-19, como Austrália e Nova Zelândia, devem seu sucesso ao acerto de um comando central que contou com a cooperação da população. "Quando você tem conflitos, sejam eles políticos ou não, isso sempre diminui a eficácia do controle do vírus."

Leia a seguir os principais trechos da entrevista de Anthony Fauci à BBC News Brasil.

BBC News Brasil - Um em cada três mortos por covid-19 no mundo hoje é do Brasil. No país, as pessoas estão morrendo sem acessos a UTIs, há falta de oxigênio e sedativos em hospitais e uma desproporção no número de mortes de jovens. Como avalia o que está acontecendo? 

Anthony Fauci - O Brasil está passando por uma situação muito infeliz. A variante P1, que parece estar dominando o país, tem a característica de ser muito eficiente na propagação de pessoa para pessoa. Não temos certeza se causa uma doença mais séria (do que o vírus da covid-19 original), mas muito provavelmente pode. 

E, dado de que o Brasil ainda não vacinou uma grande proporção de sua população, é bastante compreensível que o sistema de saúde no Brasil esteja sobrecarregado. Está tendo um grande aumento de casos que teve um impacto muito negativo sobre o sistema de saúde, que, em muitos aspectos, não tem sido capaz de lidar com o fluxo de pacientes que chega agora. Então, todos reconhecem que é uma situação muito grave no Brasil.

BBC News Brasil - A vacinação contra covid-19 no Brasil segue em ritmo lento por falta de doses, e o presidente brasileiro foi à Justiça lutar contra a adoção de lockdown, que ele diz que não funciona. Considerando isso, que medidas o Brasil poderia tomar para combater a pandemia? 

Fauci - Não há dúvida de que medidas severas de saúde pública, incluindo lockdowns, têm se mostrado muito bem-sucedidas em diminuir a expansão dos casos. Você não precisa fazer um lockdown sem prazo pra acabar, mas, se restringir a circulação e garantir que todos usem máscara, você não terá pessoas se reunindo em ambientes fechados como em restaurantes e bares, e isso diminui o número de casos.

Portanto, acho importante ressaltar que esses tipos de restrições de saúde pública são cruciais para se obter controle sobre epidemias. Vimos em muitos outros países onde houve uma grande quantidade de casos que, quando as medidas de saúde pública foram implementadas, o número de casos diminuiu drasticamente. Então, essa é uma das coisas que o Brasil deveria pensar e considerar seriamente dado o período tão difícil que está passando.

BBC News Brasil - O jornal americano The Washington Post mostrou que a variante P1, surgida no Brasil, se espalhou pela América do Sul. Ela já foi identificada em 25 países. O mesmo jornal afirmou que a pandemia no Brasil faz do país uma ameaça global. O senhor vê o Brasil como ameaça, não só pela P1 como pela possibilidade de surgimento de outras variantes?

Fauci - Não vou fazer uma declaração de que o Brasil é uma ameaça, porque isso poderia ser tirado do contexto e seria uma frase de efeito infeliz. O que estou dizendo é que o Brasil está em uma situação grave que está se espalhando para outros países da América do Sul, o que é lamentável. E esse é um dos motivos pelos quais é muito importante para a América do Sul e o Brasil, em particular, tentar vacinar o máximo de pessoas o mais rápido possível.

Funcionários de hospitais em Manaus estão trabalhando sem recursos para salvar vidas

Crédito, Reuters

Legenda da foto, 

Fauci aponta que o Brasil passa por uma situação muito 'infeliz'

BBC News Brasil - Existem doses extras da vacina AstraZeneca-Oxford nos Estados Unidos que não estão sendo usadas. Alguns cientistas do país argumentam que as doses devem ser enviadas ao Brasil o mais rápido possível. Qual sua opinião?

Fauci - Os Estados Unidos já desempenham um papel importante na tentativa de levar vacinas para outros países que precisam. Como você provavelmente sabe, nós retornamos à Organização Mundial de Saúde, estamos nos juntando ao Covax, que é um consórcio de organizações e países cuja finalidade é levar doses de vacina para aquelas partes do mundo que não têm acesso às vacinas. Demos ou já prometemos US$ 4 bilhões (R$ 22,4 bilhões) em recursos para fazer isso. E já deixamos bem claro que assim que levarmos as vacinas para a esmagadora maioria das pessoas nos Estados Unidos, além de termos o suficiente para reforços, colocaremos o excesso de vacina à disposição dos países em todo o mundo que precisam delas.

BBC News Brasil - E isso vai ser feito por meio do Covax?

Fauci - Sim, por meio do Covax.

BBC News Brasil - Os Estados Unidos parecem já ter deixado para trás o maior pico de infecções. Que lições o Brasil pode tirar da experiência dos americanos?

Fauci - Acho que a lição é sempre seguir a ciência da maneira que venho tentando dizer há mais de um ano, porque, se você seguir a ciência, provavelmente terá um melhor controle sobre o vírus e será capaz de seguir as evidências que surgirem. 

Às vezes, é necessário impor restrições mais duras que são diretrizes de saúde pública para controlar a epidemia. Negar a gravidade do surto nunca ajuda. Na verdade, muitas vezes piora a situação. Para controlar um surto, você precisa admitir que tem um problema sério.

Depois de admitir que tem um problema sério, você pode começar a fazer as coisas para resolvê-lo.

O novo ministro da saúde, Marcelo Queiroga

Crédito, Getty Images

Legenda da foto, 

Fauci se reuniu recentemente com Marcelo Queiroga, o quarto ministro da saúde do Brasil durante a pandemia

BBC News Brasil - É possível determinar o que faz de um país um exemplo de sucesso na pandemia? Poderia dar bons e maus exemplos disso e explicar o porquê? 

Fauci - Não vou dar maus exemplos. Vou te dar bons exemplos. Uma das coisas que é importante é que um país tem que se unir, e as pessoas têm que agir de forma uniforme, reconhecendo que o inimigo comum é o vírus e não ter conflitos sobre qual é a melhor abordagem. É preciso ter uma direção e garantir que a população seja cooperativa no cumprimento das ordens do poder central. 

Vemos em países como Austrália, Nova Zelândia, Taiwan e Cingapura, nos quais uma das decisões tomada foi a de fazer lockdown, e o país seguiu isso e entrou em lockdown. Quando foi a hora de abrir, houve a reabertura. Mas quando se tomou essa decisão de restringir certas coisas, todos cooperaram. 

É realmente uma situação em que é importante que haja cooperação, que as pessoas tenham o objetivo comum de combater o vírus. Quando você tem conflitos, sejam eles políticos ou não, isso sempre diminui a eficácia do controle do vírus.

Enfermeira vacina outra profissional da saúde contra a covid

Crédito, Reuters

Legenda da foto, 

A melhora da pandemia está diretamente relacionada com o avanço da vacinação, defende Fauci

BBC News Brasil - Deveríamos já ter uma vacina focada especificamente na variante P1?

Fauci - As vacinas funcionam muito bem contra a maioria das variantes. Acho que o importante é levar a vacina ao povo brasileiro o mais rápido possível. Não precisa ser específica contra a P1. A P1 diminui um pouco a eficácia (dos imunizantes), mas não a elimina. Portanto, é possível obter um grande benefício com a vacina padrão.

BBC News Brasil - O senhor vê dias difíceis pela frente para o Brasil?

Fauci - Acho que se você levar as vacinas ao povo brasileiro, as coisas vão melhorar com certeza. Isso é o que importa. Você tem que conseguir controlar (o contágio) com medidas de saúde pública, além de levar o máximo de vacina o mais rápido possível para o povo brasileiro.

BBC News Brasil - Existe uma disputa no Brasil agora porque as pessoas querem ir à igreja. Nós vimos isso nos Estados Unidos. O que diria sobre isso nesse momento difícil da pandemia?

Fauci - Diria que as pessoas precisam evitar ambientes fechados e cheios de gente. Sei que todo mundo quer ir à igreja, e isso é muito importante, mas é preciso ter cuidado ao lidar com lugares lotados. Geralmente, é um local de disseminação do vírus.

Minha mensagem ao povo brasileiro é tentar ao máximo evitar aquelas coisas que levam à propagação do vírus, usar máscaras, evitar ir a ambientes lotados, manter distância física, lavar as mãos. Sempre que você puder. Esses são os elementos básicos de saúde que, se os brasileiros seguirem, poderão controlar a pandemia.



domingo, 4 de abril de 2021

Mini-reflexão sobre o aprendizado da pandemia - Paulo Roberto de Almeida

Mini-reflexão sobre o aprendizado da pandemia

  

Paulo Roberto de Almeida

(www.pralmeida.orghttp://diplomatizzando.blogspot.com)

[Objetivoexposição de ideiasfinalidadedebate público]

 

 

Um dia, o confinamento vai passar, ainda que a pandemia seja resiliente e continue impactando vidas e trajetórias por tempo indefinido. 

Cabe retirar lições dessa experiência única em nossas vidas: as crianças recuperarão o tempo perdido dos estudos, adultos talvez percam coisas ainda mais importantes que certo atraso na formação; algumas famílias, muitas, perderam entes queridos, devido à incúria dos governantes e também por irresponsabilidade individual dos vitimados. 

Mas, tudo é matéria de reflexões e ensinamentos. Em tempos igualmente sombrios, dois grandes escritores, um russo e um brasileiro, escreveram suas “recordações da casa dos mortos”, suas “memórias do cárcere”, o que todos também podemos fazer com nossas “memórias da pandemia”. Escrevam, anotem!

Aprendemos algo com esta praga causada pelo desafio humano à natureza da vida?

Muitos sim, estão adquirindo um novo ou um renovado respeito que todos devemos ter para com o meio ambiente. Outros talvez ainda não.

Aprendemos também o valor da solidariedade, da compaixão, da necessidade de fraternidade para com os mais frágeis e necessitados. Alguns não aprenderam nada e reincidem no egoísmo.

Este é um momento grave e crucial na história de nossas vidas e no itinerário da nação. No início, mais de um ano atrás, não sabíamos o que fazer, o que esperar, o que pedir, ou exigir, de quem supostamente nos governa. Hoje já sabemos.

Sabemos com quem podemos contar: prioritariamente o pessoal da saúde (embora entre eles existam médicos idiotas e “enfermeiras” espertas); depois os cientistas, especialistas na área, e os pesquisadores que fizeram o prodígio de oferecer diversas vacinas em tempo recorde.

Se não fosse por esses dedicados profissionais, e pelo avanço da ciência e da tecnologia em nossa época, poderíamos estar enfrentando uma recorrência da Peste Negra ou da Gripe “espanhola”, com centenas de milhões de mortes, e uma destruição econômica ainda mais brutal. 

Vamos nos recuperar com algumas cicatrizes, alguns com sequelas permanentes. 

Independentemente dos efeitos diversos sobre cada um de nós, o importante é retirar ensinamentos, sobre nossos muitos fracassos, sobre nossas grandes vitórias.

Eu estou sempre aprendendo, observando, anotando, refletindo, escrevendo. Tudo o que é humano me interessa, já dizia uma conhecida frase da sabedoria dos antigos. Tudo o que desumano também: e tivemos amplas demonstrações das duas coisas neste ano que passou.

Vai demorar talvez mais um ano até que recuperemos a normalidade, pelo menos aqui no Brasil, onde a lentidão e a inépcia das elites é uma certeza. 

Tenho outra certeza: a maior parte dentre nós terá uma nova consciência sobre a vida, sobre certos bens inatingíveis e, talvez, certo mal absoluto, que aprendemos a rejeitar. Pelo menos assim espero. 

Parem um pouco, anotem, reflitam, escrevam. Sejam bons e fiquem em paz, nesta Páscoa de 2021, o ano que não terminará tão cedo...

 

Paulo Roberto de Almeida

Brasília, 4/04/2021

==============

Um ano atrás (4/04/2020):

Muitos escrevem para perguntar como estamos, eu e Carmen Lícia. Minha resposta padrão: 

Estamos bem. Se eu não estivesse confinado em casa, onde tenho muitos livros, eu estaria confinado na biblioteca do Itamaraty, ou seja, mais ou menos a mesma coisa. Bem, aqui em casa tenho a máquina de expresso e a companhia de Carmen Lícia Palazzo, o que é muito melhor.

 

Paulo Roberto de Almeida

Brasília, 3884, 4 de abril de 2021