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quinta-feira, 9 de janeiro de 2020

João Cabral de Melo Neto, 100 anos - poemas comentados

4 poemas de João Cabral comentados por escritores e críticos

Por ocasião do centenário do autor pernambucano, acadêmicos e poetas selecionam a pedido do ‘Nexo’ trechos que dialogam com o presente ou sintetizam traços de seu trabalho 
Foto: Thiago Quadros /Nexo
Mais conhecido pelo clássico Morte e vida severina, João Cabral é autor de uma obra vasta e terá textos inéditos publicados em 2020
Racional, laborioso e reflexivo. Mas também sensível (embora avesso ao sentimentalismo), próximo à linguagem popular e aos temas sociais. Dos muitos grandes poetas de língua portuguesa que habitaram o século 20, essa combinação aparentemente paradoxal de adjetivos só poderia definir João Cabral de Melo Neto, cujo nascimento completa cem anos nesta quinta-feira (9).
Nele, essas duas facetas não constituem contradição. O rigor formal e a precisão de seu fazer poético, comparado por ele próprio ao trabalho matemático de um engenheiro, convivem com a artesania de um ferreiro ou catador de feijão. Em suas imagens recorrentes, coexistem também a dureza da pedra, a qualidade severa de uma faca feita só de lâmina e a fluidez do rio Capibaribe.
Mais conhecido pelo clássico “Morte e vida severina” (1955), João Cabral é autor de uma obra vasta, que inclui livros como “O cão sem plumas” (1950), “Uma faca só lâmina” (1955), “A educação pela pedra” (1966) e “O auto do frade” (1984). Textos inéditos em prosa e poesia, além de pelo menos duas biografias, serão publicados em 2020 como comemoração de seu centenário. João Cabral morreu em 1999, aos 79 anos, encerrando um período importante da poesia brasileira.
A pedido do Nexo cinco poetas e pesquisadores selecionam e comentam abaixo trechos de quatro poemas de João Cabral de Melo Neto, enfatizando de que maneira as passagens sintetizam aspectos da obra do poeta ou sinalizam como sua poesia pode dialogar com o tempo presente.
Os comentários são acompanhados de ilustrações criadas especialmente para o texto. Elas foram inspiradas no livro “Aniki Bobó”, feito por João Cabral em parceria com o designer Aloísio Magalhães.

Tecendo a manhã

“Um galo sozinho não tece uma manhã:
ele precisará sempre de outros galos.
De um que apanhe esse grito que ele
e o lance a outro; de um outro galo
que apanhe o grito que um galo antes
e o lance a outro; e de outros galos
que com muitos outros galos se cruzem
os fios de sol de seus gritos de galo,
para que a manhã, desde uma teia tênue,
se vá tecendo, entre todos os galos.
2.
E se encorpando em tela, entre todos,
se erguendo tenda, onde entrem todos,
se entretendendo para todos, no toldo
(a manhã) que plana livre de armação.
A manhã, toldo de um tecido tão aéreo
que, tecido, se eleva por si: luz balão”

Trecho do poema ‘Tecendo a manhã’
Do livro ‘A educação pela pedra’, de 1966
“O efeito desse poema – um verdadeiro clássico – é impressionante, magnético, hipnótico”, comenta a poeta Alice Sant’anna. “O ritmo, a partir do terceiro verso, é a própria ‘teia tênue’, como se um verso fosse acordando o outro, assim como um galo vai convocando o outro, até chegar ao fim do poema, quando todos os galos já estão de acordo. E o dia depende disso para começar”.
A escritora Jarid Arraes destaca o diálogo desse poema com o presente. “Sempre é tempo de amar a linguagem. E sempre é tempo de amar a coletividade. Esse poema dialoga com nosso tempo como um lembrete e com um desejo”, disse ao Nexo.
O lembrete, segundo ela, diz respeito ao fato de que nada se faz só. “Não se escreve só. Um poema como esse, com esse peso de técnica, de experimentação, poesia e beleza, foi feito com a junteza da linguagem, e fala perfeitamente sobre isso. Um só, hoje, não tece uma manhã. Precisa que outro leve as palavras e os movimentos pra cá e pra lá e que assim façam muitos outros, nunca sozinhos, costurando realidades a partir de desejos. É assim que esse poema dialoga com nosso tempo: é tempo de não ser só, de não permitir a morte do desejo, não deixar que a nova manhã não amanheça. Temos tantas linguagens para que essa tecelagem seja real”.

O Rio

"(...)
O canavial é a boca
com que primeiro vão devorando
matas e capoeiras,
pastos e cercados;
com que devoram a terra
onde um homem plantou seu roçado;
depois os poucos metros
onde ele plantou sua casa;
depois o pouco espaço
de que precisa um homem sentado;
depois os sete palmos
onde ele vai ser enterrado…"

Trecho do poema ‘O Rio’
Do livro ‘O Rio ou Relação da Viagem que Faz o Capibaribe de Sua Nascente à Cidade do Recife’, de 1953
Ao Nexo Adelaide Ivánova, que se apresenta como garçonete, ativista e escritora, afirma que o poema “é um comentário muito sofisticado de João Cabral sobre luta de classes, sobre a ‘fratura metabólica’ entre homem e campo problematizada por Marx e Engels já em ‘O Capital’ e aprofundada no século 20 por John Bellamy Foster.”
“É sobre justiça ambiental, latifúndio, monocultura. Sendo que, além de tudo, é uma poesia profunda, complexa, fantástica (o rio fala em primeira pessoa!) e afetiva, tanto pelas imagens quanto pelo uso da a sonoridade tão familiar do repente e do pernambuquês (essa língua maravilhosa!)”, afirmou. “Esse poema me politiza um pouquinho mais a cada releitura.”

Poema

“Meus olhos têm telescópios
espiando a rua
espiando minha alma
longe de mim mil metros.”

Trecho de ‘Poema’
Do livro ‘A pedra do sono’, de 1942
Primeira estrofe do primeiro poema do primeiro livro de João Cabral, a escolha do poeta, ensaísta e membro da Academia Brasileira de Letras Antônio Carlos Secchin sintetiza aspectos da obra do poeta.
“Formalmente, é uma quadra, tipo de estrofação que será, de longe, a preferida pelo poeta. O primeiro verso fala do olhar – e a visão será o sentido mais destacado em sua poesia. Ele afirmou, inclusive, que, se tivesse que escolher um lema para sua ideia de arte, seria ‘dar a ver’, aproveitando o título de um livro do poeta francês Paul Éluard. João Cabral sempre foi avesso ao confessionalismo, queria uma arte voltada para o outro, não para si – daí que usa um telescópio para fora, para a rua, e não um microscópio para dentro, seu interior. E até aquilo que poderia haver de mais íntimo, a alma, aparece como elemento externo, afastado, longe dele mil metros. Não por acaso – por essa capacidade de “despersonalizar-se” poeticamente –, José Castello, num estudo biográfico do poeta, chamou-o de ‘O homem sem alma’”, disse ao Nexo.

O sim contra o sim

“Miró sentia a mão direita
demasiado sábia
e que de saber tanto
já não podia inventar nada.
Quis então que desaprendesse
o muito que aprendera
a fim de reencontrar
a linha ainda fresca da esquerda.
(...)
A esquerda (se não se é canhoto) 
é mão sem habilidade:
reaprende a cada linha
cada instante, a recomeçar-se.
Mondrian, também, da mão direita 
andava desgostado;
não por ser ela sábia:
porque, sendo sábia, era fácil”
Trecho do poema ‘O sim contra o sim’
Do livro ‘Serial’, de 1961
Dedicado a alguns dos poetas e pintores admirados por João Cabral, o poema escolhido por Ítalo Moriconi evoca Marianne Moore, Francis Ponge, Miró, Mondrian, Cesário Verde, e Augusto dos Anjos. Moriconi é professor da Unifesp, poeta e ensaísta.
“Ao falar desses poetas e pintores, Cabral apresenta de forma sucinta seus próprios valores e métodos estéticos. Retiro do poema trechos referentes a Miró e Mondrian, dois artistas visuais com cujas obras a poesia de Cabral mantém afinidades”, explicou Moriconi.
O professor propõe uma leitura política do poema. “Nos dias de hoje, eu, como leitor, aproprio-me deste poema vendo nele uma alegoria sobre as relações entre direita e esquerda, num sentido amplo, existencial e político”, disse ao Nexo.
“A direita representa o já sabido, o senso comum, aquilo em que se tornou fácil acreditar. A esquerda é a posição deliberadamente canhota, que discorda do senso comum embrutecido, que ousa inovar e renovar-se. Vivemos um tempo em que se tornou importante defender a mão esquerda contra o autoritarismo da direita. A esquerda é a vontade de um novo começo, de recuperar o gesto infantil da alfabetização. A poesia como realfabetização do mundo, ressignificação pela prática.”

sexta-feira, 30 de dezembro de 2016

Se, nouvelle maniere, na era da globalizacao - Paulo Roberto de Almeida (d'apres Rudyard Kipling)

Se, "nouvelle manière"
ou as qualidades do homem na globalização


Paulo Roberto de Almeida  

Se você for capaz de manter o seu sangue frio quando os C-bonds
e todos os seus derivativos estiverem despencando nas bolsas de valores,
Se você for capaz de confiar num especulador de Wall Street,
mesmo sabendo que ele foi condenado por "insider trading",
Se você não temer se aventurar em joint ventures
com pessoas tão honestas quanto um capitalista russo,
Se for capaz de arriscar o seu, o meu, o nosso dinheiro
em novos negócios, tendo como sócios a turma do Casseta e Planeta,
Se você não se importar em manter um caixa dois e de mandar um grana pela conta CC5
quando os juízes, os policiais federais e a própria Receita estão correndo atrás de você…
Se você puder sonhar com algum monopólio de software
e conseguir escapar dos organismos antitrust da Europa e dos Estados Unidos,
Se você puder poluir à vontade algum país do Terceiro Mundo
e não precisar enfrentar regras nacionais e internacionais de controle ambiental,
Se puder pensar em alguma boa reserva de mercado garantindo exclusividade longeva
e puder implementá-la com a ajuda decisiva do Estado receptor do seu investimento,
Se você conseguir enfrentar as taxas de juros extorsivas dos banqueiros domésticos
com um empréstimo generoso, a taxa negativa, de algum banco estatal,
Se você lograr extrair uma isenção fiscal válida por 99 anos
e ainda assim obter participação estatal no capital da nova empresa…

Se você mantêm sua frota de superpetroleiros
com bandeira liberiana e mão-de-obra haitiana,
Se você conseguiu pegar o fundo de pensão das velhinhas aposentadas
e investiu todo o dinheiro delas no mercado de futuros da Coréia do Norte,
Se conversa sem restrições e ao mesmo tempo com gente do FED e da Via Campesina
assegurando a ambos que a solução está num capitalismo social de mercado (regulado),
Se você consegue vender um acordo de livre-comércio aos sindicatos de metalúrgicos
e ainda assim garantiu a eles que eles têm tudo a ganhar com a liberalização de mercados,
Se você conseguir apostar impassível na desvalorização do iene
com a mesma segurança com que se arrisca na valorização do peso argentino,
Se você aprecia, intelectualmente, as virtudes da Tobin Tax
mas sabe que, na prática, vai precisar mesmo de algumas infusões de hot money,
Se você pensa que a eliminação do risco-Brasil vai resultar em tributação mais baixa
e que a reforma da Justiça vai finalmente tirar do limbo aquele seu caso dos anos 1950…
Se você conseguir freqüentar com a mesma desenvoltura
os foros de Davos e de Porto Alegre, a OTAN e o movimento não-alinhado,
Se você quer moeda única, fundos de compensação e parlamento eleito pelo voto direto
e ainda assim pretender preservar a soberania e a autonomia nacionais,
Se você contentar a galera condenando publicamente as políticas de recessão do FMI
mas assegurar, por outro lado, a preservação, e até o aumento, do superávit primário,
Se você acha que está na hora de dar um basta ao ecologismo exagerado
e conseguir o apoio do Bush num programa de "emissões cientificamente controladas",
Se tem vacas milionárias, galinhas com conta em banco e porcos com piscina coberta
e garantir no Conselho Europeu que nada muda na Política Agrícola Comum,
Se você conseguir explorar crianças indianas e bengalis nas suas fábricas de juta
e assinar sem pestanejar manifestos pela cláusula social e petições de direitos humanos…
Se você fizer do superlucro uma virtude, da agiotagem uma prática respeitada
e da exploração de mão-de-obra feminina e infantil uma regra de vida,
Se você conseguir ganhar o título de empresário do ano e entrar no "Fortune 500"
mesmo praticando fraudes contábeis e comprando suas próprias ações incógnito,
Se puder falar ao mesmo tempo na Assembléia da UNE e numa reunião da TFP
relatando, sem ficar corado, que a vida inteira foi revolucionário (ou conservador),
Se concordar com os primeiros que um outro mundo é possível, uma outra América idem,
mas garantir sua felicidade terrena antes que turma do MST entre em campo,
Se puder aplicar sem pudor o neoliberalismo e as regras do Consenso de Washington
garantindo a todo mundo que está fazendo políticas sociais avançadas,
Então, meu caro amigo, meus parabéns de verdade, pois tudo na terra lhe pertence:
pois você conseguiu encarnar todas as promessas da globalização assimétrica!

Com o empréstimo involuntário (e sem pagamento de copyright) do modelo do poema "If", do imperialista britânico de um século atrás, Rudyard Kipling.