O que segue abaixo, sob o conceito de "Potências", foi escrito em 28 de janeiro de 2004, para servir de roteiro-guia e de base a respostas minhas em entrevista filmada para o programa Conexão Mundo, do Instituto Legislativo Brasileiro, e deve ter sido veiculado na TV do Senado Federal. Segundo meus registros, a gravação estaria disponível no seguinte link (mas não tenho certeza): http://www.senado.gov.br/sf/senado/ilb/medias/Videos_Educacionais/Conexao_Mundo/conexao02c.wmv.
Em todo caso, segue como apoio didático, sem que eu tenha tido tempo de revisá-lo, sobretudo para levar em conta a fulgurante ascensão da China no período decorrido desde sua redação. Aproveitem, mas se forem usar como base de algum trabalho, favor referir ao autor verdadeiro.
Paulo Roberto de Almeida
Potências: Conceitos Fundamentais
Brasília, 28 de janeiro de 2004
1) O que são essas potências?
Desde a constituição dos primeiros
Estados organizados, ainda na Antiguidade, existem potências, isto é, Estados
poderosos, capazes de dominar os demais pelo seu poderio militar, econômico, ou
pela sua simples massa física, ou seja, populacional, desproporcional em
relação a outros estados ou comunidadades não organizadas de modo sofisticado,
ou de menores dimensões.
Um Estado se torna potência
precisamente por passar a dominar ou a influenciar outros de modo decisivo, sem
que os outros Estados ou comunidades tenham a possibilidade de responder de
maneira proporcional, ou escapar a essa influência.
No passado, um empreendimento de
conquista militar de um Estado sobre outros se dava pela busca de recursos
econômicos, mais frequentemente escravos, metais preciosos ou para assegurar-se
de terras mais férteis para sua própria população, geralmente em expansão. Em
algumas ocasiões, os motivos foram religiosos, em outras a busca de segurança,
de modo mais raro.
O que de toda forma caracteriza
essas potências é a disposição de meios militares, ou tecnológicos, mais
avançados do que aqueles detidos pelos povos que então passavam a ser
dominados. Essa supremacia militar é ela mesma o resultado de um poder
econômico mais avançado, geralmente o resultado de inovação e produtividade,
isto é, a capacidade de produzir mais e melhor a partir dos recursos
disponíveis.
Em outros termos, por detrás de
canhões e barcos de guerra estão indústrias, e atrás destas, empresários
inovadores, inventores, administradores eficientes, sobretudo no âmbito do
poder estatal, que pode desviar recursos dos agentes econômicos privados para
fins improdutivos – luxo e ócio da classe dominante – ou empregá-los para
aumentar o poderio do país e do próprio Estado.
Nenhum Estado, mesmo um império
poderoso, é capaz de se impor apenas pela força militar, embora esta seja a
base de todos os tipos de dominação primária. Um domínio regular, ou constante,
requer outros princípios organizadores, geralmente no plano econômico e até
mesmo no campo dos valores, entre os quais se situa a própria legitimidade
dessa dominação, que pode adquirir características simbólicas, como no caso da
influência cultural.
Não é difícil reconhecer uma
potência, na história passada ou atualmente, mas é mais difícil identificar
quando uma determinada potência entra em decadência, pois os sinais precursores
nem sempre são visíveis.
2) Como elas se formam?
No passado, as potência se formavam
a partir da conquista militar e seu crescimento contínuo resultava na constituição
de um império. O exemplo clássico é obviamente o de Roma antiga, cujo poderio,
de vários séculos, foi iniciado a partir de uma pequena cidade dotada de regime
republicanao e que foi aperfeiçoando os meios de se defender, e depois de
atacar seus concorrentes – neste caso, os fenícios, a grande potência comercial
da época – mediante técnicas militares inovadoras: legiões de soldados
extremamente disciplinados e bem treinados, organizados de maneira não muito
diferente ao de uma moderna fábrica industrial: chefes, diretores de linha,
capatazes.
Foram essas técnicas militares
extremamente eficientes que elevaram Roma à condição de império praticamente
universal, naquele mundo antigo que foi o berço das sociedades ocidentais.
Depois, por diversas razões, os romanos se deixaram entorpecer pelos louros das
suas conquistas e sua classe dominante deixou de cultivar as virtudes
guerreiras dos pais fundadores, refestalando-se, assim conta uma certa
história, no ócio e nos prazeres da vida. Foram vencidos por outros povos
guerreiros, embora os historiadores discordem sobre as razões exatas da
decadência e desaparecimento do império romano, já na era cristã.
No Extremo Oriente, em
contrapartida, o império chinês, também formado ao longo de uma história de
invasões, conquistas e fusões de povos diversos, chegou a ser, provavelmente, o
mais longo poder contínuo da história da humanidade, com alguns milhares de
anos de registros de dinastias sucessivas. Ainda no século 18, a China era a
maior economia do planeta, pelo menos em termos brutos, pela sua população e
produção agrícola. Ela também tinha estado na vanguarda da humanidade em termos
de descobertas científicas, inovações práticas – como a bússola e o papel,
fundamental na difusão do conhecimento – e também desenvolveram a pólvora.
Infelizmente, não souberam utilizar todas as possibilidades desse poderoso
fator de supremacia militar e acabaram, já no século 19, sob a dominação de
potências estrangeiras, européias, e depois também do Japão, que até meados daquele
século ainda era um país feudal.
A formação dos Estados Unidos como
grande potência se deu na sequência de sua ascensão como grande economia
industrial, depois financeira, e na lacuna deixada pelos imperialismos
europeus, que se destruiram em duas grandes guerras mundiais. Sua confirmação
como superpotência foi provocada pelo surgimento de uma outra potência inimiga,
a União Soviética, com quem dividiu a hegemonia sobre os negócios mundiais
durante toda a era da Guerra Fria, os quarenta anos que se seguem à Segunda
Guerra Mundial.
Finalmente, sua condição atual de
hiperpotência se dá no vácuo deixado pelo desaparecimento da União Soviética e
como resultado dos contínuos investimentos realizados pelos Estados Unidos em
tecnologias militares, eles mesmos resultantes de um sistema econômico bastante
inovador e altamente produtivo.
No passado, potências se formavam e
podiam desaparecer, em espaços temporais variados. Nos últimos dois séculos, ou
grosso modo desde o Congresso de Viena (1815), há uma certa estabilidade
hegemônica, ainda que certas potências tenham desaparecido (o Império
Austro-Húngaro, por exemplo), outras surgido e implodido (como a União
Soviética) e outras emergido gradual mas triunfalmente, como os Estados Unidos.
Todas elas constituíam grandes territórios e grandes populações, dotadas de um
certo espírito guerreiro, com a possível exceção da Grã-Bretanha, cujas bases
imperiais foram acentuadamente econômicas, com o necessário suporte militar,
mais baseado em técnicas superiores de supremacia do que necessariamente no
peso físico de grandes exércitos. Mesmo em seu auge, o Império Britânico não
mobilizou grandes tropas de ocupação territorial, sendo mais fundado sobre o
poder de suas canhoneiras e na astúcia de seus homens de negócios (servidos por
uma moeda ainda mais poderosa).
3) O que representam para
as relações internacionais?
As grandes potências e, em menor
escala, as potências médias, eventualmente coligadas, são as únicas capazes de
moldar as relações internacionais, isto é, determinar o destino das relações
econômicas globais, as normas que podem ou não ser aplicadas para o
relacionamento entre Estados e também o modo de trabalho e as orientações que
devem ser seguidas pelas organizações internacionais, a exemplo da Organização
Mundial do Comércio, do Fundo Monetário Internacional e num certo sentido até
da ONU, enquanto órgão encarregado da segurança internacional. Só os Estados
Unidos, no entanto, têm condições de desafiar esse mesmo sistema internacional,
dado o seu enorme poderio militar, econômico e financeiro, grosso modo
equivalente a quase um quarto da riqueza mundial (para uma população que não
chega a cinco por cento do total da humanidade).
A história conheceu diversos poderes
hegemônicos ao longo do tempo, alguns confinados a suas regiões respectivas,
como o império chinês, outros de alcance praticamente universal, em suas
respectivas épocas, como o império romano, na antiguidade, o espanhol, até o
século 18, depois o britânico, na época da primeira revolução industrial, e
hoje, obviamente, a hiperpotência americana, cuja eventual decadência não
figura ainda no horizonte histórico.
É muito provável, assim, que os
Estados Unidos continuarão a moldar as relações internacionais contemporâneas
pelo futuro previsível, a partir de suas empresas, de sua língua, de seus bens
e serviços culturais, que exercem poderosa influência no resto do mundo. Seu
poderio militar ainda é importante, mas as bases atuais de sua dominação são
propriamente econômicas e culturais, não exclusivamente militares.
4) Como são tomadas as
decisões entre elas?
No passado, em geral, de modo pouco
cooperativo, já que a competição por recursos escassos sempre colocou as
potências existentes em situações de confronto, quando não de guerra direta.
Roma humilhou Cartago, ao ponto da destruição física, mas invadiu e dominou
muitas outras nações, inclusive mais avançadas culturalmente, como a Grécia e o
Egito, mas fracas militarmente. A China também colocou sob sua vassalagem
muitos outros reinos vizinhos, entre eles o da Coréia. A tomada de decisões,
nesse caso, só pode ser de dominador a dominado, mas as relações também podem
evoluir para a cooperação, ainda que de forma assimétrica.
No período moderno, Espanha e
Inglaterra se disputaram o predomínio nos mares, com a derrota da primeira, o
que permitiu a este último reino avançar por sua vez na constituição do que
foi, provavelmente, o maior império de toda a história da humanidade. No começo
do século 20, o império britânico se estendia praticamente a todos os
continentes, sem contestação no plano militar, ou pelo menos naval. As decisões
eram então tomadas segundo um princípio simples: Britannia rules the waves, ou
seja, a Grã-Bretanha domina os mares.
Em outras épocas, houve o chamado
equilíbrio de poderes, com um certo status
quo militar entre as grandes potências. Na era da Guerra Fria, prevalecia o
chamado equilíbrio do terror, entre as duas superpotências nucleares. As
decisões não eram cooperativas, mas tomadas por acomodação, para evitar um
confronto direto entre elas, mas ocorriam conflitos interpostos nos espaços
periféricos ao seu poder militar direto.
Atualmente, prevalece uma certa
cooperação entre as grandes potências, inclusive devido ao fim dos grandes
conflitos pela conquista de territórios – como tinha sido o caso ainda
menos de cem anos atrás, no início do século 20 – e a consciência de que uma
grande guerra seria catastrófica para todos os oponentes. Isso não impede a
existencia de desacordos entre essas grandes potências, como ocorreu ainda na
invasão do Iraque pelos Estados Unidos, com uma coligação pró-invasão
constituída praticamente apenas pelos Estados Unidos e Grã-Bretanha – esta
sendo a rigor dispensável, para todos os efeitos militares – e uma frente
contrária formada por dois velhos aliados, a França e a Alemanha, aos quais se
juntou a Rússia. A China preferiu manter-se fora de qualquer coligação e, ainda
que ela seja por vezes apontada como um poder futuramente contestador da
hegemonia americana, parece também claro seu desejo de usufruir de vantagens
econômicas e tecnológicas nas suas relações com os Estados Unidos, daí sua
atitude basicamente pragmática na fase atual.
O Brasil, uma potência média desprovida
de grandes recursos militares, tem interesse num processo decisório, a nível
mundial, que preserve as possibilidades de cooperação num ambiente desprovido
de pressões hegemônicas e de imposição unilateral da vontade de qualquer
potência sobre os interesses dos demais estados da comunidade internacional.
Seu princípio guia nas relações internacionais é, compreensivelmente, a força
do direito sobre o direito da força.
Paulo Roberto de Almeida
Brasília, 28 de janeiro de 2004