O que é este blog?

Este blog trata basicamente de ideias, se possível inteligentes, para pessoas inteligentes. Ele também se ocupa de ideias aplicadas à política, em especial à política econômica. Ele constitui uma tentativa de manter um pensamento crítico e independente sobre livros, sobre questões culturais em geral, focando numa discussão bem informada sobre temas de relações internacionais e de política externa do Brasil. Para meus livros e ensaios ver o website: www.pralmeida.org. Para a maior parte de meus textos, ver minha página na plataforma Academia.edu, link: https://itamaraty.academia.edu/PauloRobertodeAlmeida;

Meu Twitter: https://twitter.com/PauloAlmeida53

Facebook: https://www.facebook.com/paulobooks

Mostrando postagens com marcador resenhas de livros. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador resenhas de livros. Mostrar todas as postagens

sábado, 1 de setembro de 2018

Vivendo com Livros: minha pouco secreta obsessão - Paulo Roberto de Almeida

O texto abaixo, aproveitando uma introdução a uma coletânea de minhas resenhas de livros feita em Paris, em 1994, deveria servir de Introdução a uma seção de resenhas de livros que eu me propunha fazer para um site eletrônico de cultura, que no entanto desapareceu no meio do caminho. Todas as resenhas, já feitas, e as preparadas especialmente para esse site, ficaram órfãs, portanto, ou na verdade no limbo, pois que não ficaram em nenhum veículo estável, a não ser, ocasionalmente e oportunamente aqui mesmo. Mas eu precisaria recuperar agora a lista das resenhas "publicadas" nesse site descontinuado.
Sem tempo para fazê-lo agora, opto por simplesmente republicar essa Introdução, pois ela faz parte, digamos assim, de minha segunda, talvez primeira, personalidade, a de leitor voraz e a de compulsivo resenhista, ainda que eu não tenha tempo de fazer as grandes resenhas que admiro na New York review of Books. Por isso, também faço mini-resenhas, que publico na revista da ADB regularmente, desde mais de 12 anos. Mas estas são exclusivamente de livros de diplomatas, por isso, "discriminatórias", quando eu gosto de fazer resenhas de todos os livros interessantes que leio.
Até já criei um blog exclusivamente dedicado aos livros e resenhas de livros, mas também descontinuado, pois não tenho tempo de manter todos os blogs que aparecem na lista da direita, ao lado, pois tudo isso é feito exclusivamente por mim.
Em todo caso, aqui vai meu desejo secreto: viver de leituras e resenhas, e de me especializar em resenhas de livros com mais de 150 anos de publicados. Um dia chegará...
Paulo Roberto de Almeida
Brasília, 1/09/2018

Vivendo com Livros
uma introdução quase desnecessária


Paulo Roberto de Almeida
Washington, 19 de julho de 2003

Es, pues, de saber, que este sobredicho hidalgo, los ratos que estaba ocioso... se daba a ler...; y llegó a tanto su curiosidad y desatino en esto, que vendió muchas hanegas de tierra... para comprar libros... y así llevó a su casa cuantos pudo haver dellos. (...) En resolución, él se enfrascó tanto en su lectura, que se le pasaban las noches leyendo de claro en claro, y los dias de turbio en turbio; y así, del poco dormir y del mucho leer se le secó el celebro, de manera que vino a perder el juicio.
Don Quijote, Miguel de Cervantes Saavedra

Ainda não me ocorreu, apesar do excesso de leituras, a fatalidade que se abateu sobre o cavaleiro da Mancha. Em todo caso, meu cérebro não parece ter secado pelo fato de também passar muitas noites na companhia dos livros ou escrevendo sobre eles. Esta nova coleção de resenha-artigos sobre livros, que fala exclusivamente de como os livros me fizeram seu prisioneiro – a ponto de me terem convertido em uma espécie de biblio-addict–, pode ser considerada como o resultado dessas muitas noites (e dias) de leitura.
Quando escrevi, no subtítulo, que se trata de uma introdução quase desnecessária foi porque tenho plena consciência de que seções, ou colunas, de resenhas de livros em publicações regulares não precisam, a rigor, de nenhuma explicação inicial ou de qualquer tipo de justificativa para os leitores interessados. Essas resenhas devem se sustentar por si mesmas, sem qualquer muleta interpretativa. Qualquer leitor sabe o que é uma resenha, ora bolas!
Mas como sempre mantive o desejo pouco secreto de “possuir” a minha própria coluna de livros, sinto que seria uma violência para comigo mesmo se eu decidisse, asi no más, começar a “minha” seção colocando simplesmente uma resenha qualquer e dando o empreendimento por inaugurado. Não! Um événementsimbólico desse tipo requer um tipo qualquer de cerimônia, de fato não um qualquer, mas uma inauguração à altura da glória da missão, dessas com champgneno casco, bandeiras despregadas, banda de música, discursos de cartola e casaca, enfim, un peu de formalité, que diable!
Por isso resolvi “enfeitar” um pouco a inaguração de minha coluna e fazê-la ser precedida de um bom discurso antes de “lançá-la ao mar” com pompas e circunstãncia, ao encontro de seus eventuais leitores e dos poucos náufragos que encontrar pelo caminho. Fico imaginando se alguns desses seres resgatados no imenso deserto livresco em que parece ter se convertido o Brasil não se assemelharão, ao menos parcialmente, ao autor dessas linhas, um bibliovoro voraz e irrecuperável, capaz de fazer de tudo para ficar na companhia dos livros, talvez até trair a família e quem sabe sacrificar a própria saúde. 
De fato, essa “loucura gentil” a que já foi identificado o hábito arraigado da leitura ou a paixão obsessiva pelos livros, é capaz de muitos estragos involuntários, nem todos eles prejudiciais, por certo, à saúde mental ou financeira do “contaminado”, mas todos eles conducentes a um certo isolamento voluntário, a certos hábitos estranhos como o de sair de um livro para mais dois ou três citados no primeiro ou ficar fazendo notas ilegíveis em qualquer pedaço de papel. Encerro por aqui a introdução desta introdução ao confessar que sou, sim, um viciado em livros e, pior, que não pretendo me desfazer facilmente desse hábito compulsivo a menos de um regime forçado (de leituras) e regiamente recompensado (em livros, de preferência!).

Vejamos, agora, o objeto próprio desta coluna ou seção (decididamente, tenho de encontrar um nome próprio, distintivo, para esta série especial). Como se sabe, as resenhas-artigos de livros – que é o que pretendo fazer – têm geralmente o estranho hábito de revelar não exatamente o conteúdo do livro examinado ou o que diz o autor em causa, mas mais frequentemente o que pensa deles e sobre eles o próprio resenhista. Os produtos que serão oferecidos nsta seção não pretendem constitui uma exceção a essa regra não-escrita da prática do book-review, mesmo se ele a implementa de uma maneira particular. 
Com efeito, os resenhistas profissionais costumam ostentar um certo air blaséou de détachementvis-à-visda obra resenhada, típicos de quem se julga no direito de falar bem (ou mal) do autor, sem outros objetivos que os de parecer erudito ou de impressionar o leitor. A grande vantagem desta seção em relação às antologias ou coletâneas “normais” de resenhistas é talvez o fato de que ela não estará sendo feita por um resenhista profissional (sequer decentemente remunerado), mas sim por um simples amante dos livros. Amante, no caso, é uma palavra amena, mas não pretendo retornar agora sobre esse pouco secreto vício de minha existência de resto transparente, esse pecado original de uma vida muito pouco dissoluta, de fato toda ela orientada para uma acumulação muito pouco primitiva de leituras contínuas e de resenhas descontínuas mas regulares.
Os trabalhos aqui coletados foram escritos não por encomenda de algum editor ou diretor de folha literária, mas como resultado de minha livre escolha, ou seja, fui motivado única e exclusivamente pelo desejo de realizar eu mesmo uma espécie de “homenagem voluntária” aos livros ou aos autores selecionados. Essa postura é tanto mais defensável e legítima que muitas das resenhas aqui incluídas não foram escritas para serem publicadas e nem mesmo se referem a obras do momento ou a autores vivos. Motivou-me o simples gosto da palavra escrita, que responde, neste caso, a meu incontrolável, constante e já não tão secreto vício da leitura. Passemos agora, portanto, a alguns poucos elementos de “biografia bibliográfica”, que como se sabe constitui uma categoria especial dentro do gênero biográfico.

Efetivamente, tenho vivido comlivros, pelos livros e para os livros uma boa parte de minha vida, provavelmente quatro quintos de uma existência passada na atenta fixação do papel impresso (agora eletrônico, também). Entretanto, até onde alcançam minhas lembranças da primeira infância, não se pode dizer que o gosto da leitura constituísse uma espécie de kismetpessoal ou que ele estivesse entranhado num certo ambiente familiar. 
Não me lembro, por exemplo, que minha casa contivesse muitos livros, pelo contrário, provavelmente muito poucos. Meus pais, típicos filhos de imigrantes pobres, de extração camponesa portuguesa e italiana, tinham sido criados entre a obrigação compulsória do trabalho e a freqüência irregular da escola, processo que conduziu a uma educação primária incompleta nos dois casos. Mas, como todos os imigrantes, ambos davam uma importância muito grande à educação formal dos filhos, o que, dadas as condições de penúria material em que vivíamos, não necessariamente se traduziu em aquisição voluntária de outros livros que não, chegada a hora, os didáticos.  
Foram circunstâncias fortuitas que me fizeram chegar aos livros e com eles passar boa parte de minha vida. Minha casa, na então Chácara Itaim, bairro paulistano do Jardim Paulista, ficava muito próxima de uma biblioteca infantil, que eu passei a frequentar antes mesmo de estar formalmente alfabetizado. Na “Biblioteca Anne Frank” passei todos os anos de minha infância e os primeiros da adolescência. Uma vez treinado nas primeiras letras, na “atrasada” idade dos sete anos, passei a ler furiosamente: lia com avidez, não só na própria biblioteca, como todos os dias retirava sistematicamente um ou dois livros para ler em casa, à noite. Se não li todos os livros da biblioteca, devo ter chegado muito perto disso. Ou digamos que eu tenha lido todos os livros que, por uma ou outra razão, me interessavam, deixando de lado os “livros de meninas” e os manifestamente “antiquados”.
Alguns anos depois, trabalhando durante o dia e estudando à noite, passei a frequentar as bibliotecas do centro de São Paulo: a pública “Mário de Andrade”, a liberal e circunspecta da Faculdade de Direito do Largo de São Francisco, a especializada em economia do Centro das Indústrias, a da USIS, junto ao Consulado dos Estados Unidos, a da União Cultural Brasil-Estados Unidos e várias outras mais. Também comecei a percorrer incessantemente as livrarias do centro da cidade, em especial a velha Brasiliense, na Barão de Itapetininga, e a Zahar, na Praça da República. 
Estranhamente, nunca fui de freqüentar sebos, embora não desprezasse os que encontrasse pela frente, talvez devido ao fato de que eu não sou propriamente um bibliófilo, mas mais exatamente um bibliômano. Ou seja, eu não sou um “colecionador” de livros, não tenho por eles qualquer respeito ou cuidado, mas sou, tão simplesmente e obsessivamente, um “coletor” de livros para fins de leitura crítica e anotação. O dinheiro não permitindo coletas muito extensas ou intensas, tornei-me também um leitor de livros em livrarias, bem menos no Brasil (onde não se dispõe de livrarias decentes, com cadeiras, sofás e cafés) e bem mais no exterior, onde se faz de tudo para permitir ao frequentador, qualquer que seja ele, ler de graça os livros de seu interesse. Nesse caso, é sempre bom levar um caderninho no bolso, para anotações rápidas ou improvisadas (quando se está de pé) ou mesmo para notas mais elaborados, quando se dispõe do conforto de uma poltrona ou mesmo a mesa de um café. Tenho vários cadernos assim, que depois passam a coletar de tudo, desde telefones e compromissos, até algumas idéias malucas que comporão o próximo trabalho.
Enfim, foram anos e anos de contato com os livros, lendo em toda e qualquer circunstância, em casa ou no trabalho, na escola e nos transportes públicos, inclusive andando na rua ou dirigindo carro, sob chuva ou sol quase se poderia dizer. Raramente, ou quase nunca, saía de casa sem um livro na mão ou na pasta: qualquer oportunidade era boa para avançar algumas páginas na leitura, mesmo na fila do recrutamento militar (quando estava acompanhado de Gustavo Corção, uma leitura insuspeita nos anos do regime militar). Aliás, adquiri o hábito, durante a ditadura, de cobrir a capa dos livros “suspeitos” com papel de embrulho, acrescentando às vezes, à mão, o título de alguma glória da literatura nacional
Ao deixar o Brasil pela Europa, no começo dos anos 70, arrastei comigo uma biblioteca que certamente deve ter intrigado mais de um agente alfandegário. No velho continente, como não podia deixar de ser, passei boa parte de uma longa estada de sete anos ao abrigo do sol e voluntariamente encerrado em bibliotecas universitárias, sobretudo a do Instituto de Sociologia da Universidade de Bruxelas. Continuei depois esse hábito nas demais cidades a que fui levado por força de uma vida profissional sempre nômade. 
Desde muito cedo, habituei-me também a fazer fichas de livros, sob a forma de notas sintéticas, algumas compilações mais ou menos longas ou mesmo resenhas críticas, em cadernos ou folhas esparsas. Infelizmente, algumas dessas resenhas pioneiras foram perdidas com os papéis da juventude, entre a partida e a volta da Europa. Minha primeira resenha publicada (não a primeira escrita) parece ter sido a de uma obra do Erich Fromm, A Sobrevivência da Humanidade(tradução brasileira, pela Zahar, de Can Man Survive?), que saiu no jornal do centro acadêmico do Colégio Costa Manso, onde eu cursava o Clássico (em torno dos 16 anos, portanto). Muitos outros trabalhos dessa época, que precedeu minha saída do Brasil, se perderam, todavia: lembro-me de extensos resumos de obras políticas e econômicas (a começar pelo próprio Capital), de leituras anotadas de Sartre, Celso Furtado, Caio Prado, Florestan Fernandes e muitos outros autores brasileiros ou estrangeiros.
Mais tarde, durante minha estada universitária na Europa, preenchi diversos cadernos quadriculados, organizando-os por temas, ali compilando apreciações críticas e resumos de dezenas de livros, sem considerar as simples notas bibliográficas, que tinham seus cadernos especiais. Mas, essas anotações não cobrem senão uma parte de minhas leituras, aquelas ligadas diretamente ao estudo acadêmico ou às preocupações políticas. Dezenas de outros livros, cujos títulos se perderam em agendas extraviadas, permaneceram sem registro, sem falar dos muitos romances, policiais ou literários, que nunca foram objeto de qualquer tentativa de “crítica literária”. Se fosse possível fazer uma lista mais ou menos abrangente de minhas leituras da fase de formação universitária (compreendendo a graduação, o mestrado e o início do doutoramento), ela certamente ocuparia dezenas de páginas e nunca estaria completa.
O início do doutoramento, aliás interrompido quando de minha volta ao Brasil (em 1977), correspondeu à primeira ruptura intelectual e política com o ambiente em que havia vivido até então (grosso modo, os anos 1960 e 70), que poderia ser classificado, à falta de melhor designação, como de esquerda universitária e socialista. Não apenas a leitura atenta, nas bibliotecas universitárias, mas sobretudo o conhecimento prático das realidades existentes (o que inclui obviamente os socialismos reais, e alguns surreais, mesmo), operaram uma revisão conceitual, que se refletiu também na orientação de leituras. Essa “revisão metodológica” (e política) iria manifestar-se plenamente na tese de doutoramento (sobre as revoluções burguesas e o processo de modernização capitalista no Brasil), iniciada com tonalidades francamente “florestânicas” e concluída (já como diplomata, mas isto não tem nada a ver) numa versão marxo-weberiana claramente realista e consistente com os dados da realidade (e não com o universo vago e puramente conceitual do ambiente universitário).

(Um parênteses, neste já longo “manifesto fundador”, que tem mais de biográfico do que de bibliográfico. Se ouso sintetizar, telegraficamente, as grandes etapas de minha produção “bibliográfica”, isto é, de leituras, de notas e resenhas sobre livros e também de trabalhos próprios, ela poderia se apresentar mais ou menos da seguinte forma: dos anos 1960 a 1975, minhas leituras e atividades se situam no típico universo revolucionário-universitário; na próxima etapa, até 1982 aproximadamente, trata-se de socialismo doutrinário (mas não apenas ex-cathedra) e reformista, quando passo do anti-capitalismo ao anti-leninismo. Já na fase seguinte, de 1982 a 1989, que corresponde à elaboração e “exploração” da tese universitária, se trata de uma era revisionista, na qual o capitalismo e a democracia já surgem sem quaisquer adjetivos ou epítetos. Daí em diante pode-se dizer que adentro na era capitalista-democrática, quando não numa fase anarco-liberal, com plena aceitação dos postulados concretos sobre os quais a ação política deve se fazer. Meus trabalhos e escritos devem refletir-se nessas diferentes fases e etapas de minha vida relativamente tranquila, mas atravessada, desde sempre, por intensas paixões políticas e bibliográficas. Faltaria escrever, portanto, uma espécie de biografia intelectual, mas isso será objeto de outro trabalho, na lista dos pendentes.)

Depois do doutoramento e já iniciada uma carreira acadêmica nas horas livres e interstícios de uma atividade diplomática absorvente e dominadora, continuei meu ritmo de leituras e anotações, desta vez mudando um pouco o enfoque analítico das questões clássicas da sociologia política para os problemas mais práticos (e conectados ao meu trabalho) das relações internacionais e da integração. A partir de então, eu cessei de ser um mero (mas um grande) leitor de livros, para começar a ser, também e principalmente um produtorde livros, sendo o primeiro uma síntese teórico-prática sobre o comércio internacional e a integração no Mercosul, publicado em 1993. 
Todos os meus livros, e muitos outros trabalhos, se encontram disponíveis, para visualização e por vezes downloadde partes ou capítulos, em meu websitepessoal (www.pralmeida.org), elaborado essencialmente para atender a necessidades de alunos e outros estudiosos (à falta de condições de atender a todos individualmente). Ali também pode ser vista, na rubrica “Outros livros”, a primeira versão desta coletânea de resenhas, colocada sob o signo de Vivendo com livros, uma compilação das resenhas mais importantes editada artesanalmente enquanto me encontrava servindo na Embaixada em Paris (em dezembro de 1994, mais precisamente). Esse livro constitui a base, portanto, desta seção ou coluna sobre livros, que eu pretendo seja mais uma obra em construção (um working progress, como se diria nos países anglo-saxões) do que uma idéia acabada ou definida de modo restrito. 
A presente seção, ou coluna, constitui, portanto, um espaço, ou foro, público, para falar delivros, sobre livros e com os livros, e através deles, tocar nos problemas sociais, políticos, econômicos e culturais contemporâneos (ou mesmo passados, já que não pretendo restringir as resenhas a obras do momento). Uma resenha-artigo é uma espécie de oportunidade de diálogo em primeiro lugar com o livro, em segundo lugar com o seu autor (não como pessoa, mas simplesmente como “escrevinhador”) e, em terceiro lugar (mas não menos importante) com o leitor da própria resenha, ou seja com o público “externo” em geral. Uma resenha também representa, como se pode adivinhar, uma oportunidade de diálogo do autor para consigo mesmo, pois é através da discussão das idéias dos outros que se pode revisar e aperfeiçoar as suas próprias ideias. Como diria um cowboyamericano cheio de sensatez, Will Rogers, sempre se aprende alguma coisa com os livros e com pessoas mais espertas.
Se eu tivesse de adotar o equivalente de um ex-libris, o que nunca fiz pois que, como disse, não sou um bibliófilo mas um consumidorde livros, ele teria talvez de conter alguma alusão ao poder superior dos livros, como fonte de saber, e necessariamente uma referência à questão da honestidade intelectual, que reputo a primeira das qualidades naqueles que resolvem se entregar, como eu, às lides das resenhas críticas. Tal referência me leva a tecer algumas breves considerações sobre a relação do autor para com as obras de terceiros. 
Creio, como Machado de Assis, que na avaliação crítica de alguma obra deve-se levar em conta apenas a obra e o escritor, ao passo que o homem atrás daquelas linhas deveria normalmente desaparecer. Algo como o conselho de Flaubert: “Revelez l’art, cachez l’artiste”. De fato, devemos ter uma atitude crítica circunscrita ao mérito mesmo da obra que se expõe e que se discute, com todo o rigor metodológico, deixando de lado qualquer consideração de natureza política ou ideológica que possam influenciar nosso julgamento sobre o autor atrás das linhas, seu papel social ou suas outras ações públicas. Deve-se também procurar a menor adjetivação possível da obra, sobretudo aqueles de fácil recurso: indispensável, magnífica, contribuição essencial, e outras bobagens do gênero. Como ainda diria o “grande” Machado de Assis: “os adjetivos passam, os substantivos ficam”. Minha diretriz, portanto, é portanto a de procurar o máximo de honestidade intelectual possível (tentando evitar os malditos adjetivos) na apreciação destas poucas obras que seleciono num universo imensamente mais amplo de leituras e de anotações. 

A seleção de livros que doravante se apresentará não cobre, portanto, senão uma ínfima parte de minhas leituras e anotações, compreendendo as obras efetivamente objeto de apreciação, segundo os padrões formais da resenha crítica. Alguns dos trabalhos aqui reunidos foram parcial ou integralmente publicados em revistas acadêmicas ou periódicos brasileiros, muito embora diversas outras resenhas feitas ao longo de algumas décadas de leituras permaneçam rigorosamente inéditas. Poderei eventualmente fazer algumas exceções ao critério de autoria de terceiros: será talvez o caso da inclusão de resumos de minhas teses de mestrado em economia, de doutoramento em ciências sociais ou de altos estudos, mas que no caso podem servir para explicar melhor minhas posições em relação a determinadas questões da economia brasileira, à obra de Florestan Fernandes ou no tocante à formação da diplomacia econômica no Brasil. Várias outras resenhas não foram escritas pensando precipuamente em sua divulgação em algum veículo público, mas sim sob a forma de uma simples avaliação pessoal no curso de algum estudo específico. Elas serão transcritas em sua forma original, salvo, num ou noutro caso, com pequenas adaptações de forma ou supressões de trechos, por inadequação à atualidade ou limitações de espaço. 
Mais do que simples resenhas, todos estes trabalhos correspondem ao que um habitual leitor do The New York Review of Books, como eu, chamaria de review-article, que na verdade significa aproveitar a oportunidade da publicação de algum novo livro (neste caso, alguns antigos também) para falar sobre os mais diversos problemas de atualidade ou de história. O livro-objeto é, assim, uma simples excusa para uma digressão sobre temas diversos, em outros casos quase que um exercício de estilo ou um divertissement.

Um dia, vou percorrer novamente as bibliotecas de minha infância e adolescência e tomar nota de todos os livros que me fizeram companhia por tantos e tantos anos. Por falta de tempo, isto certamente não ocorrerá antes da aposentadoria, período que já antevejo como de um retorno a intensas leituras. Aliás, acumulei muito mais livros e revistas, ao longo do tempo, do que consegui ler, efetivamente, com os atributos formais e substantivos que associo a essa atividade: o rabiscunhar nas margens, o sublinhar nas linhas, as anotações (agora eletrônicas) em outro suporte, as paradas para reflexão, para selecionar trechos com os quais concordo ou para criticar determinados argumentos do autor que eu poderia eventualmente desenvolver em algum trabalho ulterior. Ou seja, tenho ainda muitos livros para “liquidar”, talvez o equivalente de mais 150 anos de leituras, o que eu precisarei resolver de alguma forma para abreviar o tempo necessário.
Esperando chegar esse tempo, decidi selecionar, à intenção dos amigos e curiosos, algumas de minhas leituras anotadas, isto é, aquelas que resultaram em resenhas formais e que, como tal, podem ser objeto de publicação ou simples divulgação. 
Dedico este empreendimento, com todo amor, a alguém que realiza a proeza de ler ainda mais do que eu, Carmen Lícia, sem cuja compreensão eu não teria cultivado, com tanta intensidade, o vício compulsivo da leitura. Para ser mais preciso, eu teria de dedicar esta minha coluna (e as possíveis coletâneas que dela resultem) a duas mulheres “extremas”: primeiro à ‘vó’ Nicolina, que nunca leu qualquer livro. Imigrante italiana, chegou ao Brasil no começo do século, para trabalhar nas fazendas de café e nunca deixou de contar em “mil réis”. Permaneceu completamente analfabeta até o final de sua vida, mas tinha um orgulho imenso de meus estudos e de minhas leituras. 
Em segundo lugar, e acima de tudo e de todos, à Carmen Lícia, que já leu, e ainda lerá, muitos livros, milhares deles. Igualmente de origem italiana, mas nascida em terras gaúchas, tornou-se economista e professora de história, artista refinada e nômade infatigável, já lidou com dezenas de moedas diferentes, inclusive várias brasileiras. Companheira de leituras, deve ter lido duas ou três vezes mais do que eu. 
A ambas, com amor direto, e o amor partilhado pelos livros e nos livros…

Paulo Roberto de Almeida
Washington, 19 de julho de 2003

sexta-feira, 13 de julho de 2018

Historia diplomatica: livros de Ricupero e de Affonso Santos


O trabalho feito pelo Affonso Santos, sobre os cadernos de notas do Barão, foi excepcional, pois que confrontadas as notas com documentos da chancelaria francesa.
Aproveito para transcrever minha resenha do livro do embaixador Ricupero:

“O Brasil segundo a diplomacia”, [Resenha de A diplomacia na construção do Brasil, 1750-2016(Rio de Janeiro: Versal Editores, 2017)], O Estado de S. Paulo(domingo, 8 de outubro de 2017, p. E2, Caderno Aliás, Política, sob o título “História da diplomacia no Brasil tem novo livro definitivo”,em 7/10/2017, link: http://alias.estadao.com.br/noticias/geral,historia-da-diplomacia-no-brasil-tem-novo-livro-definitivo,70002030739). Divulgado no blog Diplomatizzando(link: http://diplomatizzando.blogspot.com.br/2017/09/cesse-tudo-o-que-musa-antiga-canta.html); novamente, depois de publicada, no blog Diplomatizzando(link: http://diplomatizzando.blogspot.com.br/2017/10/resenha-do-livro-do-ricupero-publicada.html).

Construindo a nação pelos seus diplomatas: o paradigma Ricupero

Paulo Roberto de Almeida

Em meados do século XX, os candidatos à carreira diplomática tinham uma única obra para estudar a política externa brasileira: a de Pandiá Calógeras, publicada em torno de 1930, equivocadamente intitulada A Política Exterior do Império, quando partia, na verdade, da Idade Média portuguesa e chegava apenas até a queda de Rosas, em 1852. Trinta anos depois, os candidatos passaram a se preparar pelo livro de Carlos Delgado de Carvalho, História Diplomática do Brasil, publicado uma única vez em 1959 e durante muitos anos desaparecido das livrarias e bibliotecas. No início dos anos 1990, passou a ocupar o seu lugar o livro História da Política Exterior do Brasil, da dupla Amado Cervo e Clodoaldo Bueno. Finalmente, a partir de agora uma nova obra já nasce clássica: A Diplomacia na Construção do Brasil, 1750-2016(Rio de Janeiro: Versal, 2017, 780 p.), do embaixador Rubens Ricupero, ministro da Fazenda quando da introdução do Real, secretário-geral da Conferência das Nações Unidas para o Comércio e Desenvolvimento nos anos 1990, atualmente aposentado.
O imenso trabalho não é uma simples história diplomática, mas sim uma história do Brasil e uma reflexão sobre seu processo de desenvolvimento tal como influenciado, e em vários episódios determinado, por diplomatas que se confundem com estadistas, aliás desde antes da independência, uma vez que a obra parte da Restauração (1680), ainda antes primeira configuração da futura nação por um diplomata brasileiro a serviço do rei português: Alexandre de Gusmão, principal negociador do Tratado de Madri (1750). Desde então, diplomatas nunca deixaram de figurar entre os pais fundadores do país independente, entre os construtores do Estado, entre os defensores dos interesses no entorno regional, como o Visconde do Rio Branco, e entre os definidores de suas fronteiras atuais, como o seu filho, o Barão, já objeto de obras anteriores de Ricupero. 
O Barão do Rio Branco, aliás, é um dos poucos brasileiros a ter figurado em cédulas de quase todos os regimes monetários do Brasil, e um dos raros diplomatas do mundo a se tornar herói nacional ainda em vida. Ricupero conhece como poucos outros diplomatas, historiadores ou pesquisadores acadêmicos a história diplomática do Brasil, as relações regionais e o contexto internacional do mundo ocidental desde o início da era moderna, professor que foi, durante anos, no Instituto Rio Branco e no curso de Relações Internacionais da Universidade de Brasília. Formou gerações de diplomatas e de candidatos à carreira, assim como assessorou ministros e presidentes desde o início dos anos 1960, quando foi o orador de sua turma, na presidência Jânio Quadros. 
Uma simples mirada pelo sumário da obra confirma a amplitude da análise: são dezenas de capítulos, vários com múltiplas seções, em onze grandes partes ordenadas cronologicamente, de 1680 a 2016, mais uma introdução e uma décima-segunda parte sobre a diplomacia brasileira em perspectiva histórica. Um posfácio, atualíssimo, vem datado de 26 de julho de 2017, no qual ele confessa que escrever o livro foi “quase um exame de consciência... que recolhe experiências e reflexões de uma existência” (p. 744). Ricupero concluiu o texto principal pouco depois do impeachment da presidente que produziu a maior recessão da história do Brasil, e o fecho definitivo quando uma nova crise “ameaça engolir” o seu sucessor. O núcleo central da obra é composto por uma análise, profundamente embasada no conhecimento da história, dos grandes episódios que marcaram a construção da nação pela ação do seu corpo de diplomatas e dos estadistas que serviram ao Estado nessa vertente da mais importante política pública cujo itinerário – à diferença das políticas econômicas ou das educacionais – pode ser considerado como plenamente exitoso. 
A diplomacia brasileira começou por ser portuguesa, mas se metamorfoseou em brasileira pouco depois, e a ruptura entre uma e outra deu-se na superação da aliança inglesa, que era a base da política defensiva de Portugal no grande concerto europeu. Já na Regência existe uma “busca da afirmação da autonomia” (p. 703), conceito que veio a ser retomado numa fase recente da política externa, mas que Ricupero demonstra existir embebido na boa política exterior do Império. A construção dos valores da diplomacia do Brasil se dá nessa época, seguido pela confiança no Direito como construtor da paz, o princípio maior seguido pelo Barão do Rio Branco em sua diplomacia de equilíbrio entre as grandes potências da sua época. Vem também do Barão a noção de que uma chancelaria de qualidade superior devia estar focada na “produção de conhecimento, a ser extraído dos arquivos, das bibliotecas, do estudo dos mapas” (p. 710). Esse contato persistente, constante, apaixonante pela história, constitui, aliás, um traço que Ricupero partilha com o Barão, o seu modelo de diplomata exemplar, objeto de uma fotobiografia que ele compôs com seu antigo chefe, o embaixador João Hermes Pereira de Araujo, com quem ele construiu o Pacto Amazônico, completando assim o arco da cooperação regional sul-americana iniciada por Rio Branco setenta anos antes. 
O livro não é, como já se disse, uma simples história diplomática, mas sim um grande panorama de mais de três séculos da história brasileira, uma vez que nele, como diz Ricupero, “tentou-se jamais separar a narrativa da evolução da política externa da História com maiúscula, envolvente e global, política, social, econômica. A diplomacia em geral fez sua parte e até não se saiu mal em comparação a alguns outros setores. Chegou-se, porém, ao ponto extremo em que não mais é possível que um setor possa continuar a construir, se outros elementos mais poderosos, como o sistema político, comprazem-se em demolir. A partir de agora, mais ainda que no passado, a construção do Brasil terá de ser integral, e a contribuição da diplomacia na edificação dependerá da regeneração do todo” (p. 738-9). O paradigma diplomático já foi oferecido nesta obra; falta construir o da nação.

[Paulo Roberto de Almeida
Brasília, 27 de setembro de 2017]


quinta-feira, 7 de setembro de 2017

Novo livro de Anne Applebaum: Red Famine - Stalin's War on Ukraine (em outubro)

Da mesma autora de Gulag, que já resenhei (ver abaixo), e de Iron Curtain, que já li, mas não resenhei:

terça-feira, 16 de maio de 2017

O Homem que Pensou o Brasil: Roberto Campos ainda atual - Paulo Roberto de Almeida


O Homem que Pensou o Brasil: Roberto Campos ainda atual

Paulo Roberto de Almeida
 [Apresentação do livro sobre Roberto Campos; publicação digital]

Paulo Roberto de Almeida (org.):
O Homem que Pensou o Brasil: trajetória intelectual de Roberto Campos
(Curitiba: Editora Appris, 2017, 373 p.; ISBN: 978-85-473-0485-0)


Ives Gandra da Silva Martins; Paulo Rabello de Castro (orgs.):
Lanterna na proa: Roberto Campos Ano 100
 (São Luís: Resistência Cultural, 2017, 340 p.; ISBN: 978-85-66418-13-2)


Ambos livros pedem outros livros, mais exatamente os do próprio Roberto Campos. Ao tomar a iniciativa de organizar o primeiro livro, no final de 2016, já prevendo uma possível homenagem pelo centenário do grande estadista brasileiro da segunda metade do século XX. Eu já conhecia razoavelmente bem o pensamento, a ação, as derrotas de Roberto Campos, um dos poucos solitários liberais num país, que, desde o pós-guerra até os nossos dias, se situou consistentemente do lado do estatismo, do intervencionismo, do protecionismo, do nacionalismo, do distributivismo, numa palavra, em prol de medidas e políticas de cunho caracterizadamente socialdemocrata (ainda que conservadores tenham ocupado a presidência e os centros de decisão econômico ao longo do período).
Roberto Campos esteve, com brevíssimas exceções – quando foi ministro do planejamento do primeiro governo do regime militar, por exemplo, ou nos seus primeiros anos como tecnocrata –, do lado exatamente inverso: contra os excessos do intervencionismo estatal, pela abertura econômica e a liberalização comercial, pela inserção do Brasil nas correntes mais dinâmicas da economia mundial, segundo regras de mercado, contra o nacionalismo introvertido e oposto aos investimentos estrangeiros, em favor da educação para ganhos de produtividade, antes que assistencialismo estatal. Ele sempre viu antes, mais e melhor do que seus contemporâneos, mas foi derrotado cada vez que pretendeu reformar o Brasil com base em seu profundo conhecimento da economia – adquirida não apenas nos livros, mas também nos cenários negociadores internacionais e nos mais altos cargos de planejamento econômico nacional – e do mundo, como diplomata experimentado que era. Sua lógica implacável, adquirida nos seminários, o colocava a contracorrente dos hábitos nacionais, bem mais “flexíveis”.
Para saber de tudo isso, não é preciso ler o primeiro livro, ou o segundo, quase equivalente nos seus objetivos, ainda que diferente na concepção, com muitos mais colaboradores do que os que reuni (apenas dez) em meu livro: a obra coordenada por Ives Gandra Martins e Paulo Rabello de Castro congregou mais de seis dezenas de autores – mas para temas circunscritos a 3 ou 4 páginas cada, entre eles eu mesmo, com três “capítulos”, sobre Bretton Woods, BNDE e receitas para desenvolver um país – e oferece uma boa introdução ao que pensava Roberto Campos sobre uma enorme gama de assuntos. O ideal seria ler diretamente Roberto Campos, mas o problema é que seus primeiros livros estão há muito tempo fora do mercado, só disponíveis em poucos sebos e na posse de colecionadores dotados de afinidades intelectuais com o grande pensador. Com exceção de suas memórias, Lanterna na Popa, e de suas duas últimas antologias, em edições da Topbooks, uma outra dúzia de obras simplesmente desapareceu dos catálogos, tanto porque Campos circulou por diferentes editoras ao longo de mais de quarenta anos. Na impossibilidade, portanto, de ler Roberto Campos, esses dois livros cumprem bastante bem o objetivo buscado de apresentar seu pensamento, sua ação política e econômica, seu legado exitoso no plano de uma “projeção utópica” das reformas necessárias e seu registro frustrado de reformas propostas e não realizadas.
O livro de Gandra e Castro é necessariamente mais superficial, pela opção por textos curtos, quase sem referências bibliográficas ou transcrições de originais. O que eu coordenei deixou os colaboradores à vontade para discorrerem sobre seus temas de escolha, na extensão desejada e com ampla liberdade metodológica. Eu mesmo tomei a liberdade de me estender sobre toda a obra escrita deixada por Campos, partindo de suas memórias, examinando inicialmente sua dissertação de mestrado na George Washington University, em 1948 (que Schumpeter considerou uma verdadeira tese de doutorado), passando por seus trabalhos econômicos mais importantes dos anos 1950 (ainda marcados por uma confiança indisfarçável no planejamento estatal), e seguindo depois por mais de meio século de artigos semanais nos grandes jornais do Rio de Janeiro e São Paulo, ademais de sua atividade diplomática (embaixador em Washington e Londres) e política (ministro do planejamento e parlamentar durante 16 anos, primeiro senador, depois deputado).
Meu capítulo ocupa a metade do livro O Homem que Pensou o Brasil, mas é o último, o que me habilita a falar agora dos onze primeiros capítulos. O primeiro, na verdade, também é meu, e se dedica precisamente a apresentar em grandes traços o “rebelde com causa”, o “tecnocrata erudito”, e o “filósofo do pragmatismo”, na feliz definição de Gilberto Paim, autor de um livro exatamente com esse título. Seu irmão, Antonio Paim, comparece com um breve texto sobre a contribuição de Campos para a modernização do Brasil. Em seguida, Ives Gandra Martins, um dos dois coordenadores do segundo livro, também oferece um depoimento curto sobre suas afinidades eletivas com Campos, irmãos na “luta comum contra a irracionalidade”. Rogerio Farias, um jovem pesquisador  trata especificamente da carreira diplomática, “heterodoxa”, do grande economista, discorrendo sobre um período pouco conhecido de sua atividade no Itamaraty: sua participação na comissão de reforma da carreira e da estrutura da chancelaria, na primeira metade dos anos 1950. O filósofo Ricardo Vélez-Rodríguez, ex-seminarista como Roberto Campos, aborda a questão do patrimonialismo em sua obra, tema no qual o próprio Ricardo é um dos maiores especialistas brasileiros.
O cientista político Reginaldo Teixeira Perez, autor de uma tese publicada sobre o “pensamento político de Roberto Campos”, examina a racionalidade e a autonomia na obra de Campos, em ensaio com variadas referências a Max Weber, o autor que mais tratou das diferentes éticas na vida pública e das relações entre ciência e ideologia. O ex-diretor do Banco Central, criado por Roberto Campos, economista Roberto Castello Branco desmente as visões de ortodoxia, de austeridade ou de monetarismo associadas frequentemente a Campos, demonstrando que ele era um desenvolvimentista, mas muito consciente da importância de sólidos fundamentos macro e microeconômicos para que taxas de crescimento sustentado pudesse realmente desembocar num processo de desenvolvimento consistente, com distribuição social de seus benefícios. Rubem de Freitas Novaes, ex-diretor do BNDES e professor na FGV, oferece uma verdadeira aula de economia liberal, revisando todas as principais correntes de pensamento econômico do século XX, aquelas que justamente acompanharam a atividade de Roberto Campos.
Carlos Henrique Cardim, colega diplomata e ex-presidente da Editora da UnB, onde publicou as grandes obras clássicas e centenas de outras, todas elas de referência nas humanidades, revela o papel de Roberto Campos na abertura política, ao enfocar sua participação nos encontros internacionais que ele organizou na UnB, ao início dos 80s. Antonio José Barbosa, assessor parlamentar e professor de história brasileira na UnB, percorre os 16 anos das atividades parlamentares de Campos, entre 1983 e 1999, e não deixa de sublinhar tanto o acertado de seus diagnósticos e prescrições sobre os problemas brasileiros, quanto as frustrações que ele enfrentou durante todo o período. O cientista político, professor na UnB e também assessor parlamentar Paulo Kramer fecha a lista dos colaboradores convidados com uma brilhante comparação entre Campos e Raymond Aron, ambos liberais clássicos, ambos enfrentando a oposição da esquerda e dos estatizantes no Brasil e na França, embora absolutamente corretos, ambos, nas suas análises antecipatórias sobre o triunfo das democracias de mercado sobre as economias socialistas e seus regimes autoritários.
Numa avaliação global, os dois livros oferecem “visitas” oportunas e muito bem fundamentadas em seus escritos e ações, sobre a vida, a obra, o pensamento e as atividades do insigne economista-diplomata-tecnocrata-ministro-parlamentar que foi Roberto Campos, um homem sempre à frente do seu tempo e, infelizmente, pouco feliz em suas tentativas de convencimento (visando sobretudo as elites) de que as liberdades econômicas, a contenção do intervencionismo estatal e a abertura ao capital estrangeiro teriam levado o Brasil a uma condição bem diversa desta hoje ostentada, ou seja, uma economia aberta, inserida nos grandes intercâmbios mundiais, com maior capacidade de competição (e, portanto, de inovação) e grau razoável de crescimento da produtividade, com base numa educação de boa qualidade. Retomo, pois, o terceiro capítulo de minha autoria no livro de Gandra-Rabello, sobre a receita, fundamentada em Roberto Campos, para desenvolver um país: 1) estabilidade macroeconômica; 2) competição microeconômica; 3) boa governança; 4) alta qualidade do capital humano; 5) abertura a comércio internacional e a investimentos estrangeiros.
Os livros já estão disponíveis nas principais redes de distribuição online e com alguma presença física em livrarias, ou podem ser encomendados diretamente às editoras. O ideal seria, obviamente, que os interessados na obra do grande economista e diplomata lessem toda a sua obra, ou pelo menos suas memórias (1.500 páginas) e suas antologias mais recentes ainda disponíveis. Na dificuldade de encontrá-las, ou na preguiça de mergulhar em milhares de páginas, estes dois livros oferecem um atalho muito conveniente, fiável e ao mesmo tempo profundo ao seu pensamento sempre atual. Roberto Campos certamente se frustrou ao não conseguir convencer os membros das elites econômicas e políticas brasileiras a adotarem outro curso de ação do que aquelas que foram seguidas no meio século durante o qual ele foi um ativo participantes das propostas de políticas públicas, muito erráticas e incapazes de tirar o Brasil, como ele dizia, da pobreza evitável para colocá-lo num patamar de prosperidade possível.
Mas ele teria se frustrado muito mais se, vivo na década que se seguiu ao seu falecimento em 2001, tivesse assistido à Grande Destruição de riqueza produzida pela grande inépcia econômica e enorme corrupção política dos companheiros. Se resta um consolo em face dessas frustrações acumuladas, seria este: todas as suas propostas (e mesmo projetos de lei) teriam plena validade operacional e total adequação racional aos dias que correm, quando ainda discutimos reformas que ele propôs, e que poderiam ter sido feitas desde os anos 1960, cujo teor basta examinar em qualquer um dos dois livros aqui resenhados. Não há nenhuma dúvida: Roberto Campos permanece incrivelmente atual. Confiram...

Paulo Roberto de Almeida
Brasília, 3117, 15 de maio de 2017

domingo, 14 de maio de 2017

Crimes economicos do lulopetismo na frente externa (Book review) - Paulo Roberto de Almeida

Minha mais recente resenha e mais recente publicação:


Crimes econômicos do lulopetismo na frente externa

Paulo Roberto de Almeida
 [Resenha de livro; publicação digital]

Fábio Zanini:
Euforia e fracasso do Brasil grande: política externa e multinacionais brasileiras na era Lula (São Paulo: Contexto, 2017, 224 p.; ISBN: 978-85-7244-988-5).

A história do Brasil, nos três primeiros lustros do século XXI, precisa ser totalmente reescrita, reelaborada e reinterpretada, à luz dos rumorosos e escabrosos casos de corrupção que vieram à tona a partir de 2014, muito embora um preview já tivesse sido oferecido ao distinto público desde 2005. Com efeito, o escândalo do Mensalão – cujo julgamento estendeu-se por sete longos anos – já tinha sido, de certa forma, uma antecipação, em menor escala, do Petrolão. Este representou, todavia, se não uma apoteose do lulopetismo mafioso, pelo menos um desfile em grande pompa dos grandes campeões da corrupção nacional, com maior sofisticação e desenvoltura na evolução da tropa de malfeitores, com um largo grau de desfaçatez e hipocrisia no enredo e, obviamente, com volumes inacreditavelmente maiores de recursos públicos e privados engajados (ops: extorquidos e desviados) nas operações até aqui registradas pela Polícia Federal e pelo Ministério Público. Portanto, podemos conceder-lhe nota 9,5 em vários quesitos da evolução, ficando porém atrás de certa cleptocracia eslava em função da improvisação de muitos dos figurantes e do exibicionismo caipira de alguns donos do dinheiro. Mas voltemos à nova versão da história brasileira recente.
Essa reinterpretação se imporá aos futuros historiadores. Daqui para a frente será virtualmente impossível compreender a política brasileira (estrito senso), a política econômica (lato senso), as políticas sociais, a política externa e todas as demais políticas setoriais sem que se incorpore, sem que se admita, sem que se internalize uma simples constatação de base não opinativa, mas puramente factual: entre 2003 e 2016, uma organização criminosa comandou aos destinos do país e orquestrou o mais gigantesco assalto a uma nação soberana de que se tem registro nos anais hemisféricos; exemplos africanos abundam, mas estamos falando aqui das Américas como um todo, o que não é pouco, já que quanto maior o PIB, maiores as possibilidades nessa área, mas cabe ficar claro que, quanto maior o Estado, maiores as chances para os larápios de todos os tipos.
É sintomático, a esse título, que o nome da maior companhia corruptora do hemisfério, e certamente candidata a ser a maior do mundo, figure já na ficha catalográfica deste livro do jornalista Fábio Zanini, que tem o seguinte ordenamento: 1. Brasil – Relações exteriores; 2. Empresas multinacionais – Brasil; 3. Construtora Norberto Odebrecht; 4. Brasil – Política e governo. A inclusão da construtora promíscua  numa página editorial com tal destaque é inteiramente justificada: afinal de contas, a empresa colocou o Brasil na liderança da corrupção nas Américas, no Guinness Book of Records das práticas delitivas mais exemplarmente políticas desde os tempos de Maquiavel e dos Borgia. Não é todo dia que o Brasil atrai a atenção do mundo inteiro, ainda que seja pelos piores motivos possíveis. Finalmente, a gigante americana da energia, Enron, “só” desviou algumas dezenas de bilhões de dólares de seus acionistas, mas o escândalo dos companheiros avança na casa das centenas de bilhões de dólares. Muito possivelmente, as descobertas até aqui constituem a ponta de um gigantesco iceberg, uma vez que envolveram tão somente a Petrobras, embora outros candidatos estejam “ávidos” para aparecer (como um grande banco estatal, por exemplo).
O livro em questão, aliás, tem tudo para ser um sucesso quando a caixa preta do BNDES for finalmente aberta por seus novos dirigentes, ou escancarada pela Polícia Federal, uma vez que, entre 2003 e 2015, o banco financiou quase seiscentos projetos em onze países da África e da América Latina, por um volume total equivalente a mais de US$ 14 bilhões, ou seja, quase R$ 50 bilhões (a maior parte abocanhada pela pouco discreta Odebrecht). Não por acaso, os países visitados por Zanini na preparação desta obra-reportagem integram um arco que poderia ser chamado de cordão de ouro dos grandes negócios heterodoxos (existiria algum outro nome não ofensivo?): Namíbia, Angola, Peru, Moçambique, Guiné Equatorial, ademais de diversos outros igualmente envolvidos nas operações externas do banco. Nem todos os contratos de compra de equipamentos e de serviços brasileiros por esses países implicam necessariamente a corrupção em grande estilo a que se assistiu no Mensalão e agora no Petrolão; mas todos eles implicam em perdas quase certas para o país, dado o generoso financiamento feito pelo banco, com subsídios do Tesouro às linhas de crédito assim abertas, cujos custos precisam ser cobertos pela carga fiscal sempre crescente do Brasil.
Da mesma forma, nem todo o relacionamento diplomático do Brasil com tais países, e vários outros em diversas outras regiões do mundo, está tisnado por fortes doses de corrupção como quase certamente ocorre no caso de algumas ditaduras africanas e nos ditos países “bolivarianos”. Mas o que se assistiu nos últimos anos em matéria de patifarias e de frustrações derivadas da falta de gerenciamento executivo – substituído por aventureiros vinculados aos companheiros – impressiona pelo que o Brasil e o seu povo perderam em recursos “contabilizados” no vermelho (como as imensas perdas da Petrobras, por exemplo), e mais ainda em função do famoso custo-oportunidade, ou seja, o que o Brasil deixou de ganhar pelos maus investimentos, quando não pelos “investimentos” criminosos (do tipo Pasadena e outros). O livro de Zanini não trata de todos os casos, mas a coleção de “causos” relatados vai realmente, como diz o título, da euforia ao fracasso.
Na Namíbia, por exemplo, a Petrobras resolveu “acabar com a brincadeira” em 2013, “uma brincadeira cara que já havia custado ao menos US$ 100 milhões aos contribuintes brasileiros” (p. 71). Os negócios de petróleo na Namíbia foram incluídos “junto de licenças no Benim, Gabão, Nigéria e Tanzânia numa negociação com o banco BTG Pactual, que desembolsou US$ 1,5 bilhão por elas – valor considerado baixo por alguns analistas de mercado, mas defendido pela Petrobras como a melhor opção naquele momento” (p, 71). Como ocorreu provavelmente no caso da famosa refinaria Pasadena – mas numa operação com valores para cima, e não para baixo, como na África – o menos importante, para a Petrobras de seu então presidente e para a então “presidenta” do Conselho de Administração, não eram exatamente a refinaria ou os campos de petróleo quanto as operações financeiras em si, permitindo liberar milhões de dólares, num sentido ou noutro (ou seja, compra ou venda), sem qualquer controle dos órgãos nacionais pois que transacionados em circuitos financeiros do exterior. Isso não figura no livro de Fábio Zanini, mas posso apostar – sem sequer conhecer os meandros dessas negociações envolvendo centenas de milhões de dólares – que os objetivos visados eram bem mais financeiros do que propriamente operacionais.
Essa característica básica dos negócios multinacionais companheiros aparece em segundo plano em praticamente todas as histórias coletadas pelo jornalista, e aqui se trata bem menos de política externa – ainda que ele cite muitos telegramas confidenciais do Itamaraty – e bem mais de operações financeiras externas, nas quais o Ministério das Relações Exteriores tem um papel equivalente ao de Pilatos no Credo: é mencionado mas não tem absolutamente nada a ver com as patifarias a elas subjacentes. O cenário geral do livro é, obviamente, a tal de “projeção externa” do Brasil, que efetivamente cresceu de maneira até desmesurada na era Lula – dezenas de novas embaixadas em países inexpressivos – mas o fulcro real não é tanto a política externa ou as grandes multinacionais brasileiras do subtítulo, quanto os negócios em si, a ponto de podermos afirmar que essa “projeção” é um subproduto, uma espécie de “side effect” da meta real: a realização de negócios bilionários, para a maior gloria (financeira) dos capitalistas e da nova burguesia do capital alheia, os companheiros mafiosos capitaneados pelo chefão inescrupuloso. Este, com suas palestras virtuais, foi o menino-propaganda da gigantesca Odebrecht, ambos dedicados a fazer milhões às custas do Tesouro, e em última instância do povo brasileiro, mas com perdas adicionais também para os povos “atingidos” e despojados pelos miríficos projetos ativamente promovidos pelo maior ladrão da política brasileira, nunca antes visto em nossa história.
O caso da Namíbia, meticulosamente examinado por Fábio Zanini, talvez se aplique como lição geral a partir desse “fracasso do Brasil Grande” propagandeado por Lula, como já tinha ocorrido aliás na era militar, quando os generais alimentavam o sonho do Brasil “grande potência”, e nos levaram à derrocada financeira nos anos 1980:
O espalhafato e a megalomania de empreendedores excêntricos, a promessa de lucro fácil, a falta de planejamento e o tráfico de influência sobrepõem-se, antes da derrocada final, em que os grandes prejudicados são os países receptores, que mais uma vez se veem usados. (p. 72)

Na verdade, os brasileiros – nós, os contribuintes – fomos tão usados quanto os países visados nas caravanas da corrupção lideradas por Lula e pelos dirigentes da Odebrecht e das demais construtoras, companhias que são geneticamente corruptas em quaisquer países e em quaisquer circunstâncias, mas que no Brasil dos companheiros encontraram terreno fértil e a mais perfeita associação delitiva para ampliar os negócios numa extensão nunca antes vista neste ou em qualquer outro país. Nada escapava à sanha delinquencial das companhias e dos companheiros: tudo era motivo para um superfaturamento aqui, um aditivo orçamentário ali, uma comissão paga antes, durante e depois dos contratos, com caixa dois ou sem ele, nos momentos eleitorais ou em qualquer tempo e lugar, nenhuma oportunidade de desvio, de falcatrua, de roubalheira, de extorsão e de pagamentos em cash ou via doleiros e banqueiros cúmplices, tudo isso se praticou em larga escala durante os anos lulopetistas de governos criminosos.
O capítulo sobre Angola está todo resumido em seu início:
No país africano, a Odebrecht, impulsionada pelo dinheiro público brasileiro, ajuda a sustentar uma ditadura que está no poder há quase quatro décadas. (p. 75)

O “quartel general” da multinacional brasileira – que dizem ser a verdadeira embaixada do Brasil em Angola – fica num Business Park cercado, ao lado de um luxuoso shopping, também construído pela companhia. Uma especialista britânica resume também o sentido das “concorrências públicas” feitas pelas autoridades de Angola para alguns grandes projetos de infraestrutura no país: “Em Angola até existem licitações, mas nem sempre para a Odebrecht” (p. 78). Um desses projetos, a usina hidrelétrica de Laúca, sobre o rio Kwanza, saiu caro: US$ 4 bilhões. “E para que essa conta fosse paga, veio uma ajudinha do Brasil” (idem). Lula, já ex-presidente, visitou o país em maio de 2014, e cobrou o seu cachê habitual da Odebrecht: US$ 200 mil. Todos os personagens dessa história, inclusive o marqueteiro João Santana, à exclusão dos angolanos, já foram enquadrados por tráfico de influência.
Cabe, assim, ter consciência de que a Lava Jato é apenas uma pequena parte da gigantesca máquina de corrupção criada pessoalmente por Lula e pelos companheiros do partido neobolchevique (pelos métodos, não pelos objetivos, uma vez que eles não pretendem enterrar o capitalismo, apenas viver à sua sombra e proteção). Ao longo dos diversos casos e capítulos narrados de forma fluente por Zanini é possível fazer essa junção de interesses que tem menos a ver com a política externa brasileira ou com a sua diplomacia profissional – muitas vezes mantida à margem desses negócios obscuros – e mais com a ambição desmedida de capitalistas e burgueses do capital alheio, todos eles promíscuos, incrivelmente corruptos, numa extensão que está sendo recém desvendada pelas delações premiadas de muitos executivos e de alguns apparatchiks menos fieis.
Mas o livro representa também apenas um aspecto menor, o da interface externa, da Grande Destruição perpetrada pelos companheiros nos campos econômico, político e sobretudo moral, no próprio Brasil. A maior recessão da história econômica do país,  causada pela inépcia administrativa e pela imensa teia de corrupção que agora perpassa todas as instâncias do poder público e largos estratos do setor privado, dificilmente será superada antes de o Brasil comemorar melancolicamente seus primeiros dois séculos de vida independente, com uma renda per capita equivalente ao de uma década atrás. No campo da política externa, o lulopetismo diplomático representou uma tremenda perda de credibilidade para o próprio país, uma vez que os companheiros se aliaram a algumas das ditaduras mais execráveis do planeta – questão apenas parcialmente tratada no livro, pelo lado de algumas ditaduras africanas – e aproveitaram dessa “peculiaridade” para fazer lucrativos negócios, em todas as esferas possíveis, sem qualquer restrição mental quanto a direitos humanos e democracia, valores e princípios que figuram em nossa carta constitucional e que aparentemente deveriam guiar nossa diplomacia.
As relações do Brasil com os países ditos bolivarianos e com a ditadura dos irmãos Castro em Cuba não são tratadas, a despeito de elas também envolverem os generosos financiamentos dos bancos estatais brasileiros e operações com algumas grandes empresas estatais e privadas, entre estas inevitavelmente a Odebrecht. Mas o livro menciona, ao final, o triste caso da Guiné Equatorial, cujo ditador, o campeão da longevidade política no continente, se relacionou de maneira exemplar com o chefe da organização criminosa que infelicitou e empobreceu o Brasil, e que também retirou algo do brilho profissional de sua diplomacia. Ao considerar o “interesse estratégico” do Brasil no pequeno país africano, Zanini aponta a contradição nesse relacionamento estimulado pelos companheiros com determinados valores de nossa diplomacia:
O desempenho da Guiné Equatorial na área de direitos e o fato de ser uma ditadura virtualmente de partido único, com um dos presidentes há mais tempo no cargo em todo o planeta, em nenhum momento fizeram parte dessas considerações estratégicas [do governo Lula]. (p. 217)

O livro não tem conclusões ou argumentos finais, o que nos obriga a retornar à sua introdução para registrar a avaliação geral do autor sobre o sentido profundo do regime lulopetista para o Brasil, inclusive em suas conexões externas:
O financiamento público a obras de infraestrutura no exterior tinha elementos de tráfico de influência ou, pior, foram azeitados pelo pagamento de propina, como revelaram operações de combate à corrupção, sobretudo a Lava Jato. O caixa do PT foi engordado por doações de empresas beneficiadas por esse expansionismo desmedido.
A promiscuidade entre o novo governo brasileiro [de Lula] e novos parceiros estratégicos em países como Angola, Peru e Moçambique, tornou-se clara. Talvez nada simbolize melhor essa nociva simbiose do que o publicitário petista João Santana em países como Venezuela, Angola e República Dominicana, recebendo ilegalmente por campanhas presidenciais via depósitos clandestinos da Odebrecht, a empreiteira símbolo da era Lula. (p. 10-11)

O livro, em acordo com a profissão do autor, é uma grande matéria jornalística, mas alimentada por telegramas de chancelaria e documentos pouco usados nesse tipo de produção mais conjuntural do que analítica. Tal característica não diminui em nada o poder de suas revelações e evidências sobre a promiscuidade instalada no Brasil nos anos do lulopetismo entre, de um lado, os donos do dinheiro e, de outro, os senhores dos votos, e seus estarrecedores efeitos no plano da institucionalidade política e no que se refere à extremamente baixa qualidade de suas políticas econômicas, atingindo inclusive a política externa, normalmente deixada à margem desse tipo de contaminação nos governos e regimes anteriores. O lulopetismo pode ter sido uma simples “doença de pele”, ao ter atingido o tecido da política brasileira – nesse caso diferente do peronismo, que atingiu fundo os organismos internos do sistema político argentino – e pode, talvez, ser superado com alguma regeneração política auxiliada pelo bisturi de condenações judiciais e pela sanção dos votos em próximas eleições. Mas, como o peronismo, mesmo não possuindo nenhuma doutrina mais elaborada ao estilo do “justicialismo”, ele se baseia nos instintos corporativos latentes em ambas as sociedades, em sua extração ibérica patrimonialista, e já pode ter cristalizado bastiões muito poderosos de uma “república sindical” de caráter mais permanente, inclusive alimentada por subsídios oficiais e por uma legislação propensa a esse tipo de organização semifascista. Nesse caso, sua superação, ou extirpação do sistema político brasileiro será mais difícil e mais longeva. Esperemos, contudo, que o lulopetismo seja apenas um peronismo de botequim, suscetível de ser eliminado uma vez passada a embriaguez temporária e a cegueira momentânea.

O livro, em acordo com a profissão do autor, é uma grande matéria jornalística, mas alimentada por telegramas de chancelaria e documentos pouco usados nesse tipo de produção mais conjuntural do que analítica. Tal característica não diminui em nada o poder de suas revelações e evidências sobre a promiscuidade instalada no Brasil nos anos do lulopetismo entre, de um lado, os donos do dinheiro e, de outro, os senhores dos votos, e seus estarrecedores efeitos no plano da institucionalidade política e no que se refere à extremamente baixa qualidade de suas políticas econômicas, atingindo inclusive a política externa, normalmente deixada à margem desse tipo de contaminação nos governos e regimes anteriores. O lulopetismo pode ter sido uma simples “doença de pele”, ao ter atingido o tecido da política brasileira – nesse caso diferente do peronismo, que atingiu fundo os organismos internos do sistema político argentino – e pode, talvez, ser superado com alguma regeneração política auxiliada pelo bisturi de condenações judiciais e pela sanção dos votos em próximas eleições. Mas, como o peronismo, mesmo não possuindo nenhuma doutrina mais elaborada ao estilo do “justicialismo”, ele se baseia nos instintos corporativos latentes em ambas as sociedades, em sua extração ibérica patrimonialista, e já pode ter cristalizado bastiões muito poderosos de uma “república sindical” de caráter mais permanente, inclusive alimentada por subsídios oficiais e por uma legislação propensa a esse tipo de organização semifascista. Nesse caso, sua superação, ou extirpação do sistema político brasileiro será mais difícil e mais longeva. Esperemos, contudo, que o lulopetismo seja apenas um peronismo de botequim, suscetível de ser eliminado uma vez passada a embriaguez temporária e a cegueira momentânea.
Paulo Roberto de Almeida
Brasília, 13 de maio de 2017