Arnaldo Godoy, meu amigo e colega acadêmico, retira das catacumbas de sua imensa biblioteca uma deliciosa crônica de Drummond sobre esses quase desaparecidos objetos de prazer intelectual, numa conjuntura em que até mesmo os sebos já se converteram em virtuais.
Livrarias são negócios em extinção. Foi-se o tempo no qual passávamos horas folheando passagens, namorando capas, fazendo contas do que poderíamos levar, levando. Livros que muitas vezes nunca lemos, e talvez nunca leremos, mas que precisamos que estejam perto, bem pertinho. Inevitável a pergunta de quem nunca leu, ou não gosta de ler, ao fitar uma biblioteca gorda: você já leu todos esses livros?
As livrarias, assim como os cinemas, transformaram-se em meganegócios de shoppings. São livrarias do tipo cheesecake, nas quais toma-se um café caríssimo, contemplam-se gôndolas cheias de best-sellers, de autoajuda (se fossem bons, não haveria tantos) e de receitas para todos os tipos de concurso, de carcereiro até auditor de qualquer auditoria. Vendem-se também moleskines. São lindos cadernos de capa dura, decorados, estão em moda, e foram popularizados porque um escritor inglês de livros de viagem, Bruce Chatwin (1949-1989) os utilizava. Essas livrarias também caminham para o fim. O kindle, que aliás é muito eficiente, toma espaços, sem ocupar espaços.
Sobram os sebos. Também em extinção. A estante virtual, um inegável s.o.s. bibliográfico, no caso, não conta. Falo dos sebos de verdade, cujo nome deriva dos livros antigos e gordurosos, porque lidos pela noite, ao lado das velas. Ilustro a angústia com uma deliciosa crônica de Carlos Drummond de Andrade, O Sebo[1], na qual esse incomparável escritor mineiro captou todas as nuances que definem os sebos como espaços decididamente democráticos.
Segundo Drummond os sebos foram “cedendo lugar a lojas sofisticadas, onde o livro é exposto como artigo de moda, e há volumes mais chamativos do que as mais doidas gravatas, antes objeto de decoração de interior, do que de leitura”. No sebo, de acordo com Drummond, realizamos operações de resgate, encontrando livros que um dia presenteamos, que nunca encontramos, que perdemos, ou que esquecemos em algum lugar. Para Drummond, esse resgate é uma operação de ternura: vem para minha a estante!
Sebos, segue o autor, devem ser agradavelmente desarrumados, “como convém ao gênero de comércio, para deixar o freguês à vontade”. Os fregueses não se conhecem uns aos outros, mas “são todos conhecidos como frequentadores crônicos de sebo”. De acordo com o escritor mineiro, frequentadores de sebo usam roupas escuras, falam baixo e andam devagar. Sebo não é lugar de gritaria. Amantes de sebo formam uma confraria silenciosa. Para Drummond, procurar aquele livro, mesmo não achando, é ótimo. Segundo o escritor, em sua casa não havia lugar nem para as contas de luz, mas os livros continuavam a chegar. A mulher, zangada, exclama: trouxe mais uma porcaria para casa! O comprador compulsivo de livros lembra que não se trata de uma porcaria, o livro tem um verso ou uma passagem que um dia comoveu o casal. Foi antes do cotidiano cruel, que não souberam, ou não conseguiram domar. Faltou livro, para um dos dois.
Para Drummond os sebos são promíscuos. Convivem em prateleiras cheias de pó autores distintos, distantes e diversos, que nunca se entenderiam. Tem de tudo, Dante, Mandrake, Tolstoi, o próprio Drummond, Constituição de 1988 (edição de 1991), todo tipo de Machado de Assis e até aquele Júlio Verne que você leu em 1975, e agora pode dar para o filho adolescente.
Principalmente, para Drummond, “o sebo é a verdadeira democracia, para não dizer: uma igreja de todos os santos, inclusive os demônios, confraternizados e humildes”. Segundo esse sensível autor, saímos dos sebos com um “pacote de novidades velhas”, a sensação de que se visitou, “não um cemitério de papel, mas o território livre do espírito, contra o qual não prevalecerá nenhuma forma de opressão”.
Enquanto existirem sebos, e esses maravilhosos livros que constroem nossas almas, não triunfará o obscurantismo do twitter e dos zaps rápidos. No twitter, não se escreve. No twitter se gorjeia. Essa é a explicação da ferramenta: pia-se, como uma ave. Por isso, o símbolo é um pássaro. Repararam?
Por outro lado, o sebo, assim inspira Drummond, pode ser também um alinhamento de estacas que serve de barreira defensiva contra aqueles que querem refundar a astronomia, sem estudá-la, remodelando os astros, na forma e na essência, tornando-os planos e não gravitacionais. O sebo é um garimpo, no qual a pedra preciosa é a própria alma do frequentador. Nos livros usados, encontramos marcas, bilhetes, fotos, contas de água, anotações, sonhos em formas de páginas amareladas.
Essa crônica de Drummond, O Sebo,é receita impecável para uma leitura com voz carinhosa, para a pessoa amada, como forma de explicação, ou de justificação. Também não se pode esquecer que aquele verso ou aquela passagem que um dia empolgaram podem voltar a qualquer momento. É justamente essa lembrança que pode separar o que é sólido do que é efêmero. Porque aquele livro esquecido e reencontrado pode ser o pacto fundante do amor incondicional.
[1] Carlos Drummond de Andrade,
O poder ultrajovem, Rio de Janeiro: Record, 2011, pp. 177 e ss.