Paulo Roberto de Almeida
Destaco duas frases, apenas, do discurso
da presidente, na reunião de alto nível da ONU sobre Segurança Nuclear, em
22/09/2011:
"O desarmamento nuclear é
fundamental para a segurança, pilar do Tratado de Não Proliferação cuja observância as potências devem
ao mundo".
Confirmando minha vocação a ser um
contrarianista -- posição que assumo voluntariamente, de conformidade com meu
espírito desconfiado, feito de ceticismo sadio em relação a quaisquer
argumentos que se me apresentem como verdades incontestáveis -- formulo aqui
algumas dúvidas em relação a estas frases.
Por que o desarmamento nuclear seria
fundamental para a segurança internacional?
Ele é, de fato, o "pilar do Tratado
de Não Proliferação"?
Respondo de imediato a esta segunda
questão por um sonoro NÃO.
Não, o desarmamento nuclear não é o, ou sequer um
pilar, do TNP, ainda que possa nele aparecer de forma preeminente. Nem
de longe, contudo, ele é o que diz que pretende ser, e basta conhecer um pouco
da história, das realidades geopolíticas, para chegar à conclusão simplória de
que a frase fatídica, sobre o desarmamento dos nuclearmente armados, figura ali
apenas como figuração, justamente, para contentar os ingênuos, ou incautos, e
impedir que eles protestassem em demasia contra um "tratado iníquo e
discriminatório", como proclamava a diplomacia brasileira nos "bons
velhos tempos" (isto é, quando posávamos de "machos", de
contrarianistas, se ouso dizer, contra a hipocrisia dos poderosos, quando a
gente acreditava que eles queriam "congelar o poder mundial", no que
aliás continuamos acreditando ainda hoje, nessa interminável repetição de
slogans).
O pilar do TNP é a não-proliferação, ou
seja, barreiras contra o armamentismo nuclear dos ainda não nucleares, ponto.
Isso é tudo.
Os três grandes -- na ausência de dois
outros nucleares à época, China e França -- arranjaram entre si um instrumento
para bloquear o acesso às armas nucleares aos eventualmente desejosos de
fazê-lo, prometeram cooperação nuclear para fins pacíficos -- o que é feito a
conta-gotas, e sob estritas condições -- e ofereceram como cenoura o tal de desarmamento
nuclear deles próprios.
Alguém acredita nisso?
Pode ser que sim, talvez o Itamaraty, que
vive cobrando essa parte do Tratado desde que a ele aderiu em meados dos anos
1990.
Alguém acredita que seria possível colocar
o gênio dentro da garrafa outra vez? Que as potências nucleares vão de fato
desarmar?
Isso é possível? Respondo novamente por um
sonoro não.
Ninguém consegue “desinventar” uma
tecnologia. Ninguém se priva de uma segurança que foi conquistada a duras
penas, e que se busca justamente manter exclusiva, única, assimétrica.
O TNP é apenas um tratado do desarmamento
nuclear dos outros, ponto.
Venho agora à pergunta mais
importante:
Seria verdade que o desarmamento
nuclear é fundamental para a segurança internacional?
Não creio que a presidente tenha formulado
ela mesma esse argumento. Ela simplesmente o comprou do Itamaraty, que colocou
tal frase no discurso porque isso faz parte da ideologia diplomática, ou das
ilusões diplomáticas -- não apenas brasileiras, diga-se de passagem -- nos últimos
50 anos, ou mesmo mais.
Alguém já parou para pensar -- e nesse
processo desmantelou algumas ilusões diplomáticas -- de que pode ser exatamente
o contrário: que as armas nucleares aumentaram a segurança mundial, e evitaram
muitas mortes que de outra forma seriam inevitáveis?
Pensem um pouco -- enfim, apenas os que
desejarem realmente pensar -- e perguntem comigo:
Se não existissem armas nucleares, o que
existiria?
Provavelmente as mesmas armas que tínhamos
ao final da Segunda Guerra Mundial, um pouco (ou bastante) mais aperfeiçoadas:
tanques, canhões, bombardeiros, granadas, minas, mísseis, lança-chamas, fuzis,
baionetas, estilingues, etc., etc., etc.
Ou seja, nada que pudesse deter um
dirigente maluco de deslanchar uma guerra contra um outro país, na medida em
que se tratavam de "armas normais", de tecnologias dominadas e, com
exceção de um ou outro componente mais aperfeiçoado (fortalezas voadoras, por
exemplo, ou mísseis de longo alcance), tudo poderia ser mobilizado por qualquer
país que tivesse uma base industrial medianamente desenvolvida.
Afinal de contas, Hitler deslanchou sua
guerra em duas frentes com base nesses mesmos meios, ainda que desejasse,
rapidamente, dispor de mísseis mais poderosos e que seus cientistas apostassem,
furiosamente, no domínio da tecnologia nuclear, já teoricamente disponível em
sua época.
Sorte nossa que ele não conseguiu, pois
imaginem vocês se Hitler tivesse submetido a Grã-Bretanha, neutralizado os EUA,
destruído a Rússia de Stálin, e se estabelecido como o grande ditador de todos
os tempos, um Gengis Khan moderno, com a colaboração acintosa de tiranetes como
Mussolini e os fascistas-militaristas japoneses, no trabalho de escravizar
povos inteiros e colocá-los a serviço da Alemanha nazista?
Que tal a perspectiva?
Alguém iria conseguir um tratado de
desarmamento contra Hitler, depois?
Se eu disser, por exemplo, que as duas
bombas atômicas americanas sobre o Japão, em agosto de 1945, salvaram vidas, em
lugar de aumentar o número de mortos, serei provavelmente
"massacrado", literal ou virtualmente, pelas consciências puras do
desarmamentismo nuclear. Não me importa: isto é um fato. As bombas nucleares,
por mais horríveis que possam ter sido, salvaram milhares de vidas A MAIS do
que as que pereceram no "holocausto" de Hiroshima e Nagasaki.
Salvaram centenas de milhares de soldados e civis japoneses, nas frentes de
combate e nos bombardeios aéreos devastadores sobre Tóquio e outras cidades
japoneses, e salvaram dezenas de milhares de soldados americanos, que teriam de
lutar na ponta da baioneta contra soldados fanatizados, que tinham jurado dar a
vida pelo Imperador. Elas salvaram vidas, ponto!
Mas, retornemos à questão principal. Em
que sentido o desarmamento nuclear tornaria o mundo mais inseguro, não mais
seguro?
Ora, isso é evidente pelo próprio fato de
que o mundo não deixou de ter guerras depois que as armas nucleares foram
inventadas: morreram milhões de pessoas desde 1945, vítimas de minas, de
artilharia, de bombardeios aéreos, de napalm, de fuzis, de machetes, de fome, ou
de quaisquer outros vetores associados às guerras (civis, étnicas, tribais,
religiosas, entre Estados, atentados terroristas, etc.).
O que o mundo deixou de ter, depois de
1945, foram guerras globais, ao estilo napoleônico, mobilizando exércitos
nacionais e populações inteiras contra outros exércitos nacionais e outras
populações. Ou se ocorreram, foram limitadas, como na Coreia, no Vietnã, no
Oriente Médio, sem a confrontação direta das grandes potências, como
tivemos na Europa e no mundo desde o
Renascimento até 1945, justamente.
Não
pretendo elaborar muito a respeito, mas minhas conclusões são tão evidentes,
que não creio ser necessário desenvolver meu raciocínio: as armas nucleares
trouxeram mais segurança ao mundo, e pouparam vidas, ponto.
Algum
matemático historiador, ou algum econometrista geopolítico poderia até fazer os
cálculos e, com base em estimativas feitas a partir dos grandes conflitos
globais desde a era napoleônica até 1945, avaliar quantos teriam sido os mortos
-- inocentes ou não, que pereceriam, potencialmente, em mais uma ou duas
guerras ao estilo da Segunda Guerra Mundial, sem o recursos às armas nucleares,
portanto. Não creio, sinceramente, que teríamos ficado a menos de 50 ou 60
milhões de mortos (por baixo, claro).
Enfim,
nem todo mundo precisa de armas nucleares para exterminar pessoas. Mao
Tsé-tung, por exemplo, não utilizou arma nenhuma, apenas uma “economia política
esquizofrênica”, para eliminar 25 ou 30 milhões de chineses no “grande salto
para a frente”, entre 1959 e 1962. Enfim, ele também foi o responsável por mais
algumas dezenas, talvez centenas de milhares, durante a “grande revolução
cultural proletária”, entre 1965 e 1975, mas pode-se sempre argumentar que
muitos mais morreram nos “gulags” normais de Stalin e do próprio Mao, ao longo
de seus experimentos totalitários.
Mas
imaginemos dirigentes menos responsáveis na posse de armas nucleares em face de
confrontos entre grandes Estados? O próprio Mao Tsé-tung, por acaso, dizia não
temer as armas nucleares americanas hipoteticamente utilizáveis na guerra da
Coreia, demonstrando todo o seu espírito belicoso mais de dez anos antes que a
China conquistasse o seu próprio domínio sobre armas nucleares (após o que ela
se mostrou mais responsável, mesmo sem ter assinado o TNP, até o início dos
anos 1990). Os dirigentes cubanos, igualmente irresponsáveis, estavam dispostos
a ir até o fim, no confronto nuclear entre EUA e URSS no caso dos mísseis
nucleares soviéticos instalados em Cuba em 1962: Fidel Castro e Ché Guevara estavam dispostos a “testar”
armas nucleares contra New York e Washington, mesmo se isso representasse a aniquilação
de metade, ou mais, da população cubana (Guevara acreditava que isso
representaria o “fim do capitalismo e do imperialismo americano”).
Qualquer que seja a perspectiva que se
assuma sobre as armas nucleares, portanto, pode-se dizer que elas refrearam,
sim, os instintos guerreiros de muitos dirigentes políticos. Pode até ser que
alguns militares malucos acreditem que “armas nucleares táticas” sejam armas de
terreno, e possam, assim, ser integradas a doutrinas e estratégias militares.
Não creio, porém, que estadistas responsáveis acreditem nesse tipo de “doutrina”
e estejam dispostos a “testá-la”.
Pode-se concluir, então, que as armas
nucleares aumentaram, não diminuíram, a segurança no mundo, e parece impossível
reverter esse cenário de equilíbrio instável (que aliás, confirma o prognóstico
aroniano de 1947: “paz impossível, guerra improvável”).
E quanto ao TNP? Não há muito a dizer:
continuará a ser aquilo que a diplomacia brasileira diz sobre ele desde 1968: “um
tratado iníquo e discriminatório”, ponto. Não há muito que se possa fazer a
respeito, no futuro previsível.
Resta, finalmente, esta outra afirmação,
com estes mesmos conceitos:
“É importante ter num horizonte previsível a eliminação completa e
irreversível das armas nucleares.”
Será? Importante? Talvez. Necessário? Duvidoso. Completa e
irreversível? Provavelmente não, nem completa, nem irreversível.
Frustrante? Talvez. Realista? Provavelmente.
Acho que as coisas ficam mais claras assim.
Paulo Roberto de Almeida
Brasília, 25/09/2011