3. Perspectivas da nova governança internacional: desafios para o Brasil
Paulo Roberto de Almeida
Governança é um termo equivocado, em primeiro lugar
porque não se trata propriamente de governança, em segundo lugar porque não é exatamente
nova, e em terceiro lugar porque não é, verdadeiramente, internacional. Em
todas as épocas, quase todos os homens, e as mulheres também, são atacados pela
miopia do conjunturalismo, e pelo mal do exclusivismo societal.
Todas as sociedades, e o mundo com elas, estão mudando
o tempo todo, e as interpretações sobre tudo isso também mudam. Os habitantes
da Europa pós-romana não tinham consciência de que estavam vivendo na Idade
Média, ou de que eles fossem “medievais”. Os habitantes da Itália do século XIV
não tinham ideia de que estavam entrando no “Renascimento”, e os “modernos”
nunca souberam quando entraram e, pior, quando saíram dessa tal de Era Moderna.
Alguns, em geral os marxistas, acreditam que foi só na revolução francesa, e
que a partir daí vivemos numa coisa chamada Era Contemporânea. Que seja: eu me
considero muito satisfeito por ser contemporâneo de mim mesmo, e sempre achei o
futurismo um pouco ingênuo (sem falar de algumas tendências notoriamente
fascistas, mais passons...).
A tribo dos historiadores, sempre eles, ainda não se
entendeu sobre quando começou, e quando acabou, o século XX, e talvez nem mesmo
o século XIX. Parece que este último começou em 1815, na derrota de Napoleão –
que tinha a sua própria noção de governança – e terminou com os canhões de
agosto de 1914, num dos episódios mais insensatos da governança da belíssima Belle Époque. E parece que o século XX
começou em 1918 – o marxista Hobsbawm prefere que seja em 1917 – e terminou em
1989, com a queda do muro de Berlim, ou em 1991, com o colapso da União
Soviética, vocês escolhem.
A implosão
daquele formidável império escravocrata representou, para um czar
contemporâneo, a “maior catástrofe geopolítica do século XX”. Concordo com ele,
mas com essa pequena diferença de que acho que se tratou da melhor e da mais
positiva “catástrofe” jamais ocorrida na história da humanidade: ela permitiu,
pela primeira vez em três gerações – ou seja, nos 75 anos de “construção do
socialismo”, defendido até o fim por Hobsbawm e, ainda hoje, por vários outros
aloprados – libertar dois terços da população mundial da opressão dos
engenheiros sociais para começar, finalmente, a construção de um novo tipo de
governança internacional, como pretendia George Bush (pai), em 1992, ao falar de
uma “nova ordem internacional.” Pois bem, sabemos do que veio depois, na China
(Praça da “Paz Celestial”) ou na própria Rússia, para demonstrar como são
efêmeras, e enganosas, essas proclamações de “novas ordens” ou de uma “nova
governança internacional”.
Pois bem, não existe tal coisa, mas existem arranjos
circunstanciais, no mais das vezes temporários, sobre determinadas regras que
devem presidir às relações entre os Estados, garantindo um mínimo de
convivência entre os mais poderosos entre eles, para evitar que eles se
entredevorem em guerras totais e conflitos monumentais. Assim foi com as
guerras de religião que resultaram nos tratados de Westfália; assim foi com as
guerras napoleônicas, que redundaram nos acordos de Viena; assim foi com a
Primeira Guerra Mundial – era para ser apenas a última das guerras europeias, e
foi chamada de Grande Guerra até 1939 – que terminou com a humilhação da
Alemanha no tratado de Versalhes; assim foi na Segunda Grande Guerra – esta
sim, mundial – e que terminou, não em San Francisco, mas em Ialta e Potsdam, no
máximo em Dumbarton Oaks, quando foram traçados os contornos da “nova
governança internacional” que resistiria aos anos da Guerra Fria, até 1989, ou
1991, justamente.
Bem, não houve aqui nenhuma grande catástrofe mundial,
apenas uma feliz primavera dos povos (da Europa oriental), mas ela foi
geopoliticamente importante, sem nenhuma dúvida. Mas, espíritos nostálgicos
estão sempre querendo restabelecer as glórias de tempos passados, da mãe
Rússia, da nova Roma, do novo Império do Meio. Essa tal de “nova governança
internacional”, como vemos, não existe; o que existem são arranjos temporários,
e circunstanciais, para acomodar os interesses dos Estados mais poderosos, os
únicos capazes de moldar, de influenciar, ou de compor a agenda internacional
que passa a ser debatida – jamais resolvida – em foros de cooperação do tipo da
ONU e suas agências especializadas, que minimizam os conflitos e até conseguem,
de vez em quando, administrar alguns (mas apenas quando isso convém às grandes
potências).
Sim, para este aprendiz de historiador, não haverá
mais guerras globais, não acontecerão novos, futuros, eventos catastróficos,
contrapondo diretamente essas grandes potências da atualidade, uma vez que elas
não podem se permitir o mútuo aniquilamento num conflito nuclear. O que haverá,
como já chamei em um trabalho anterior, será, já é, uma “Guerra Fria
econômica”, uma competição – não por novas fontes de matérias primas e produtos
estratégicos, uma vez que o sistema comercial multilateral é suficientemente
aberto para permitir acomodações – por vantagens econômicas temporárias e
circunstanciais, uma vez que as governanças econômicas nacionais – estas, sim,
bem reais – precisam acomodar as necessidades de emprego, de renda, de
prosperidade, para os seus próprios povos, embora também existam elites
predatórias que estão bem mais ocupadas em explorar o seu próprio povo (sim,
existe, e é mais comum e frequente do que se pensa).
Por todos os argumentos alinhados acima considero um
pouco bizantino qualquer debate sobre as perspectivas da “nova governança
internacional” e os seus “desafios para o Brasil”. Cada um, segundo sua
formação, informação e deformação ideológica terá a sua interpretação do que
seja essa tal de “nova governança internacional”, terá a sua noção das
perspectivas dessa coisa no futuro próximo, e terá as suas recomendações a
fazer no que considera serem os “desafios para o Brasil” nesse imbróglio de
palavras, ideias, conceitos e opiniões. Eu, como não sou muito afeito a debates
bizantinos, prefiro deixar em paz as tais de perspectivas da “nova governança
internacional” e me concentrar nos desafios brasileiros para o próprio Brasil.
Sim, sou um otimista incurável, e considero que o
mundo nunca foi tão bom quanto é hoje, para o Brasil e para quaisquer outros
países da chamada comunidade internacional. A globalização – ou melhor, sua
terceira onda, enfim liberta da praga do tal de socialismo internacional – oferece
as melhores oportunidades para o pleno desenvolvimento das vantagens
ricardianas de cada nação e permite aproveitar muitas chances de capacitação
técnica, tecnológica, científica e educacional para o integral desenvolvimento
dos seus povos, à condição que eles sejam livres e abertos a seus influxos
inovadores (e desafiadores, para ficar no tema). A China, por exemplo, o
Império do Meio, ofereceu pelo menos um terço da taxa de crescimento do PIB
para o Brasil na última década, ao empurrar os preços das matérias primas para
alturas nunca antes conhecidas na história econômica mundial; de certa forma,
o Brasil surfou na bonança da economia mundial durante esses anos todos, uma
vez que raramente enfrentou os desafios de fazer reformas adaptativas às novas
condições da economia mundial. Sim, acho que os nossos pecados começam por aí
mesmo.
Como diz um velho preceito, fica difícil ajudar alguém
que não quer ajudar-se a si mesmo, e o Brasil tem falhado miseravelmente nessa
missão. Todos os nossos problemas, à diferença do que andam proclamando por aí
– crise mundial, tsunami financeiro, concorrência desleal e outras bobagens –
são exclusivamente “made in Brazil”, nenhum deles é causado por qualquer ameaça
externa, exploração estrangeira ou cupidez de especuladores internacionais.
Senão vejamos.
Insuficiência de infraestrutura? O mundo tem dinheiro
sobrando para investir, bastando marcos regulatórios adequados e estabilidade
de regras. Baixa capacidade de inovação? O mundo está aberto ao comércio de
tecnologia, mas mais importante do que o intercâmbio de produtos é o comércio
de ideias, razão pela qual nossas universidades deveriam não só serem mais
abertas à internacionalização, como sobretudo abertas à osmose com o mundo
empresarial. Corrupção? É coisa nossa, de vez em quando envolvendo algum
capitalista estrangeiro, mas apenas porque aqui existem pessoas dispostas a
meter a mão em algum dinheiro que só pode entrar regulado por algum governo
maroto. Má qualidade da educação? Só tenho uma resposta, e um único culpado: o
idiota do Paulo Freire, que aliás é “patrono da educação brasileira”.
Vejamos outras mazelas “made in Brazil”. Déficit
habitacional, caos nos transportes urbanos, desastres ambientais e humanos
provocados por ocupações irregulares, criminalidade ascendente, deterioração do
simples sentido da ordem e do respeito ao patrimônio público – evidentes nessas
manifestações espontâneas ou organizadas que terminam em depredações – e a
inflação renitente que insiste em podar, todo ano, uma parte do poder de compra
do brasileiro? Tudo isso não tem nada a ver com o ambiente externo ou ameaças
vindas de fora. São males genuinamente nossos, fabricados, entretidos, mantidos
e aumentados aqui mesmo, em parte pela chamada “pressão das massas” e os
desejos de “inclusão social”, mas muito mais pela imprevidência, despreparo e
incompetência das políticas públicas, macroeconômicas e setoriais, que deveriam
se ocupar justamente desses problemas prioritários do Brasil.
Ou seja, o Brasil não tem um problema, sequer
desafios, de governança internacional, mas ele tem muitos problemas
brasileiros, que só poderão ter respostas aqui dentro. Com isso não quero dizer
que o Brasil deva esquecer o ambiente externo, desprezar a tal de “nova
governança internacional” e passar os próximos dez anos tentando resolver os
seus problemas internos. Mas acredito que o Brasil já daria uma imensa
contribuição à ordem internacional se respondesse pelo seu exemplo com boas e
eficazes soluções para os problemas da boa governança econômica – estabilidade
macroeconômica, competição microeconômica, abertura ao comércio internacional e
aos investimentos diretos estrangeiros – e também para os problemas de
governança política e social: boa gestão pública, sem muita corrupção e barganhas
indecorosas, instituições independentes (sem o predomínio de uma sobre as
demais), boa qualidade da educação pública, da infraestrutura, gastos sociais
que não signifiquem simplesmente um subsídio ao consumo dos mais pobres (mas
que os capacitem para ganhar sua renda e seu sustento nos mercados, em lugar da
assistência pública), enfim, uma série de ações que são tão evidentes aos olhos
e mentes dos estadistas sensatos que nem seria preciso ficar aqui repetindo o
manual da boa governança. Acredito que um bom diagnóstico de situação já
represente um bom começo para a formulação e execução de políticas que caminhem
no sentido da boa governança interna.
Quanto à governança internacional, acredito que os
bons exemplos podem também começar aqui dentro: defesa da democracia, dos
direitos humanos, não ingerência nos assuntos internos de outros povos (mas
também solidariedade em relação a certas situações de opressão e de desrespeito
notório aos direitos humanos), enfim, todos esses valores que nunca juramos na
escola mas que seria bom que começássemos a defender, inclusive lá fora. Já
seria uma excelente contribuição para a boa governança internacional. Oxalá.
12/03/2014