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Este blog trata basicamente de ideias, se possível inteligentes, para pessoas inteligentes. Ele também se ocupa de ideias aplicadas à política, em especial à política econômica. Ele constitui uma tentativa de manter um pensamento crítico e independente sobre livros, sobre questões culturais em geral, focando numa discussão bem informada sobre temas de relações internacionais e de política externa do Brasil. Para meus livros e ensaios ver o website: www.pralmeida.org. Para a maior parte de meus textos, ver minha página na plataforma Academia.edu, link: https://itamaraty.academia.edu/PauloRobertodeAlmeida.

sábado, 29 de abril de 2017

RBPI: artigo e entrevista no YouTube - Paulo Roberto de Almeida

Transcrevo novamente o artigo que escrevi a propósito do itinerário da RBPI, desta vez acompanhado do link para a entrevista que concedi a seu editor, Antonio Carlos Lessa, sobre essa trajetória intelectual, indicado in fine.
Paulo Roberto de Almeida 



RBPI: itinerário de uma revista essencial

Paulo Roberto de Almeida
 [Artigo sobre a RBPI; semana RBPI no Scielo] 

Poucas revistas acadêmicas de prestígio reconhecido conseguem, no Brasil, superar o efêmero, ou o conjuntural de uma geração, para projetar-se de forma constante no cenário intelectual do país. A Revista Brasileira de Política Internacional, que já adentrou, na cronologia humana, na temporalidade de três gerações, firmou-se e vem consolidando uma história de longevidade raras vezes registradas no mercado editorial dedicado a esse setor especializado das humanidades, o das relações internacionais. Neste campo, ela é, não apenas a mais longeva, mas a melhor, a mais completa e a mais prestigiosa das revistas que cobrem essa área ainda relativamente rarefeita no Brasil.
Seu itinerário não foi, contudo, uniforme, ou tranquilo, até que ela conseguisse alcançar, na última década, um padrão de qualidade que a coloca entre os melhores e mais qualificados periódicos científicos nesse universo especializado de publicações. Ela nasceu dentro da pequena comunidade que, no Rio de Janeiro de meados dos anos 1950, se dedicava aos temas das relações internacionais e da política externa do Brasil, o que compreendia tribunos de Estado, intelectuais de renome, servidores públicos, entre eles vários diplomatas, políticos cosmopolitas e magistrados interessados nas grandes questões da política, do direito e da economia mundiais.
Em 1958, quando ela foi criada por iniciativa de alguns “empreendedores de relações internacionais”, o universo editorial dedicado ao ambiente externo e à política externa do Brasil não contemplava praticamente nenhuma revista especializada, salvo publicações gerais exibindo eventualmente artigos dentro dessa área: era o caso, por exemplo, da revista da mais antiga instituição acadêmica do Brasil, o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (fundado em 1838), das revistas militares e de algumas poucas outras – como a Brasiliense, ou os Cadernos do Nosso Tempo, que desapareceriam mais adiante – que traziam bem mais artigos de opinião do que pesquisas dotadas de sério embasamento empírico ou conceitual. Os próprios relatórios do Ministério das Relações Exteriores há muito tinham deixado de exibir a mesma qualidade dos relatórios da antiga Secretaria de Estado dos Negócios Estrangeiros, do Império, ou os da velha República, e praticamente desapareceram no seu formato tradicional no decorrer da década seguinte.
A RBPI constituiu, assim, o mais importante empreendimento intelectual do seu campo, não ainda, naquela época, dotado dos padrões existentes em revistas similares da Europa ou dos Estados Unidos, mas já engajada na confecção de artigos originais, no estímulo à produção intelectual dos próprios diplomatas, na coleta e publicação de importantes textos oficiais da diplomacia brasileira, bem como de simples resenhas de livros da área ou de notas de conjuntura sobre atividades relevantes da diplomacia oficial. Sem se identificar, ou se confundir, com o Itamaraty, a RBPI representava, nesse sentido, um importante elo de ligação entre o corpo profissional do MRE e a comunidade brasileira e estrangeira voltada para o estudo e debate de temas relativos à política externa. Esse vínculo não afetava em nada sua total autonomia editorial, inclusive quanto à escolha dos temas que seriam abordados a cada número (trimestral).
Os anos da “Política Externa Independente” representaram uma precoce fase de sucesso enquanto empreendimento editorial de política internacional e de diplomacia do Brasil, um prestígio e um vínculo preferencial entre os dois “estabelecimentos” que a crise política do início dos anos 1960 e o golpe militar de 1964 viriam abalar e em parte comprometer durante vários anos. Ocorreu certa retração dos diplomatas participando na e da revista, pois estes passaram a considerar com maior cuidado político a elaboração de artigos de opinião para a RBPI, identificada com aquela fase pioneira de busca da plena autonomia na formulação e implementação da política externa, num período em que os critérios de segurança primavam conjunturalmente sobre os de desenvolvimento e participação no ambiente efervescente dos anos 1960. A RBPI teve a companhia temporária (por apenas três números, entre 1965 e 1966) de um outro empreendimento, a revista Política Externa Independente, que, por acaso, também foi dirigida por um dos nomes mais prestigiosos da intelectualidade brasileira, o historiador José Honório Rodrigues, que durante vários anos nessa década, também foi o diretor do Instituto Brasileiro de Relações Internacionais (IBRI), ao mesmo tempo em que se exercia como editor, aliás excelente, da RBPI.
O outro grande nome dessa fase pioneira, mas que se devotou inteiramente à revista durante suas primeiras três décadas no Rio de Janeiro, foi obviamente Cleantho de Paiva Leite, membro da assessoria especial do governo constitucional de Getúlio Vargas (1951-54), fundador e executivo do IBRI, um dos primeiros representantes do Brasil no BID e animador intelectual e generoso financiador da RBPI durante a sua fase de relativo declínio dos anos 1970 aos 80. Seu falecimento, em 1992, quase constituiu, também, uma ameaça de morte para a revista, finalmente salva ao ser transferida para Brasília, no ano seguinte, por um pequeno grupo de acadêmicos e diplomatas, que se empenhou em resgatar toda a sua memória pregressa – atualmente disponível em formato digital – e em implementar um programa de elevação dos seus padrões editoriais, até que ela alcançasse, já na segunda década do novo milênio, um status e uma qualidade comparáveis aos das melhores revistas internacionais conhecidas. Dois nomes estão associados a essa fase brasiliense da RBPI: o professor titular de história das relações internacionais da UnB, hoje aposentado, Amado Luiz Cervo, primeiro editor, por dez anos, nessa segunda fase, e, em especial, o professor Antonio Carlos Lessa, responsável pelo processo de verdadeira internacionalização da revista, que agora pode estar vivendo sua terceira e melhor fase.
Exibindo atualmente indicadores de excelência editorial no plano internacional, a RBPI promete consolidar-se cada vez mais como a revista por excelência nessa área no Brasil, com uma interface externa, na região e fora dela, cada vez mais intensa e frutífera. Seu corpo editorial testemunha a amplitude dessa internacionalização e a escolha criteriosa dos artigos científicos que serão publicados, agora em fluxo contínuo, reforçam essas características dos últimos anos e do futuro previsível. Como antigo colaborador em sua primeira fase, como um dos responsáveis pela seu renascimento em Brasília, e como parte intelectualmente interessada no seu fortalecimento internacional, nesta nova fase, sinto orgulho de ter ajudado a RBPI a consolidar-se como uma revista essencial ao estudo das relações internacionais nas últimas seis décadas, e mais além, haja visto, também, seu forte conteúdo histórico e, anteriormente, documental. Quem quer que empreenda pesquisas sobre as relações internacionais e sobre a política externa brasileira desde a segunda metade do século XX até os nossos dias tem, na RBPI, um instrumento incontornável de referência e uma fonte indispensável para a leitura de ensaios de qualidade sobre esse universo cada vez mais relevante nas humanidades do Brasil. Ela é a mais antiga, a mais completa, a melhor revista do gênero no país.
Longa vida à RBPI ao início do seu sexagésimo ano de publicação continuada.

1254. “RBPI: itinerário de uma revista essencial”, Brasília, 22 abril 2017, 3 p. Texto de comemoração dos 60 anos da RBPI, para divulgação nos canais existentes. Mundorama (25/04/2017; link: <http://www.mundorama.net/?p=23514>). Relação de Originais n. 3104.

1256. “A RBPI e o pensamento brasileiro de Relações Internacionais: entrevista com Paulo Roberto de Almeida, por Antonio Carlos Lessa, Mundorama – Revista de Divulgação Científica em Relações Internacionais, originalmente publicado no Blog Scielo em Perspectiva – Humanas, em 25/04/2017 [Acessado em 29/04/2017]. Disponível em <http://www.mundorama.net/?p=23555> e <http://wp.me/p71o3r-67V>. Disponível no canal YouTube (links: https://youtu.be/LurXasySFFU e https://www.youtube.com/watch?v=LurXasySFFU&feature=youtu.be). Relação de Originais n. 3104.

Coreia do Norte: os Kim, do regime mais surrealista possivel - Jose Carlos Fernandes

Meu amigo Mauricio David me envia um interessante artigo do jornalista português José Carlos Fernandes sobre a enigmática dinastia Kim que impera na Coréia do Norte... 
Paulo Roberto de Almeida
 
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A Dinastia Kim: fatos, propaganda e rumores

Os Kim governam a Coreia do Norte desde o fim da última guerra mundial e parecem crer que sobreviverão à próxima. Folhear o álbum de família ajuda a compreender o enigmático regime de Pyongyang. 
Nem sempre é fácil separar fatos de propaganda, mas quando esta atinge proporções maciças, os líderes são elevados a um estatuto semi-divino e o país vive sob um regime totalitário, fechado e paranóico há mais de 70 anos, torna-se numa tarefa quase impossível. Isto é inevitável no que respeita ao princípio da vida de Kim Il-sung, pois as pessoas que o teriam conhecido pessoalmente durante a juventude já desapareceram, mas também é válido para muitos aspectos da vida dos seus netos.
Seja como for, é possível ir cruzando a informação, nem sempre fidedigna, que é transmitida por dissidentes que fogem da Coreia do Norte ou estrangeiros com informação privilegiada sobre os bastidores do regime – como Kenji Fujimoto, que alega ter sido sushiman pessoal de Kim Jong-Il – e tentar perceber que parte da propaganda oficial é real e qual é fantasia.
Quando a tensão entre o regime de Kim Jong-un e os EUA, a Coreia do Sul e a comunidade internacional atinge um dos pontos mais altos de sempre ( “A ameaça é real? Até onde irá o conflito na Coreia?“), vale a pena recuar até ao início do século XX.

Kim Hyong-jik (1894-1926)

Pai de Kim Il-Sung e bisavô do atual líder, Kim Jong-un. Natural da aldeia de Mungyungbong, casou-se com Kang Pan-sok (1892-1932) em 1899, quando tinha apenas 15 anos: Kim Il-sung, o primeiro filho, nasceria em 1912; o segundo filho, Kim Yong-jun nasceria oito anos depois. Kim Hyong-jik e Kang Pan-sok eram cristãos protestantes (presbiterianos), culto que florescera na Coreia após um tratado firmado com os EUA em 1882, e Kim Hyong-jik, embora tenha nascido numa família de camponeses, foi educado numa escola de missionários americanos e chegou a trabalhar ele próprio durante algum tempo como missionário. Uma vez que o regime coreano é de natureza ateísta, Kim Il-sung tentou, posteriormente, minimizar a devoção religiosa dos pais, alegando que esta era meramente utilitária e superficial.
A Kim Hyong-jik e Kang Pan-sok a propaganda oficial atribui o papel de líderes independentistas, com atos de bravura contra o ocupante japonês – o reino da Coreia fora transformado num protetorado do Japão em 1905 e fora anexado em 1910.
A família mudou-se para a Manchúria quando Kim Il-sung tinha sete anos, o que a propaganda explica pela necessidade de fugir à repressão japonesa, mas que teve provavelmente por objetivo encontrar melhores condições de vida.
Após estudo de alguns livros sobre medicina tradicional, Kim Hyong-jik dedicou-se à ervanária e fez disso a sua principal fonte de rendimento, mas, a dar crédito a Kim Il-sung, a família nunca teve vida desafogada: a dieta estava limitada aos produtos mais elementares e baratos e o espectro da fome nunca andou longe.

Kim Il-sung (1912-1994)

Kim Il-sung é um “nome de guerra” – o nome de batismo foi Kim Song-ju. Após quatro anos na Manchúria com os pais, o jovem Kim foi enviado, aos 11 anos, de volta para a Coreia, para viver com os avós maternos e frequentar uma escola coreana (mas onde o ocupante impunha o ensino em língua japonesa). Regressou à Manchúria passados dois anos e, revelando extraordinária precocidade, aos 14 anos terá, alegadamente, fundado a União Abaixo o Imperialismo, com o propósito de combater o ocupante japonês e promover o marxismo-leninismo. Do que não há dúvida é do seu envolvimento com ativistas independentistas de pendor marxista, o que o levou a ser preso pela polícia chinesa em 1929. Ele os seus camaradas foram libertados em 1930 após uma greve de fome, mas Kim Il-sung já não regressaria à escola: a carreira que pretendia abraçar era a de revolucionário. Aderiu ao Partido Comunista Chinês e, pouco depois, o imperialismo japonês estendeu-se à Manchúria, que foi convertida num estado-fantoche designado Manchukuo, contra o qual Kim começou a desenvolver acções de guerrilha, integrado no Exército Unido Anti-Japonês do Noroeste.
Kim – que entretanto adoptara em 1935 o nome pelo qual é conhecido – foi lutando contra o ocupante japonês e subindo na hierarquia do exército guerrilheiro, em parte por mérito próprio e em parte como resultado da morte dos outros líderes.
Quando, em 1940, era perseguido pelas forças japonesas, atravessou o Rio Amur para o lado soviético. Foi levado para a cidade de Vyatskoye, onde os soviéticos treinavam a guerrilha coreana e incorporado no Exército Vermelho, onde lhe foi atribuído o comando de um batalhão formado por exilados coreanos e chineses e a patente de major.
Entretanto, conhecera, em 1937, a sua primeira esposa, Kim Jong-suk, que, conta-se na biografia oficial, terá salvado a vida do futuro Querido Líder numa emboscada japonesa. Casaram-se em 1941 e, pela mesma altura, nasceu Kim Jong-Il, embora a biografia oficial pretenda que este viu a luz do dia numa base secreta no Monte Paektu, na Coreia, em 1942. Compreende-se a necessidade de apimentar a vida dos Kim nesta fase em que viveram em passividade e segurança do lado de lá da fronteira durante cinco anos (ao contrário do que seria previsível, a URSS e o Japão limitaram-se a vigiar-se mutuamente), enquanto a II Guerra Mundial devastava boa parte do mundo e outros independentistas arriscavam as suas vidas na Coreia, lutando contra o ocupante.
Só a 8 de Agosto de 1945, três meses após o colapso do III Reich e dois dias depois do ataque nuclear contra Hiroshima é que a URSS se decidiu a declarar guerra a um Japão que estava praticamente de rastos, com o fito de obter ganhos territoriais e dilatar a sua esfera de influência. As tropas soviéticas derrotaram as forças japoneses na Manchúria e Coreia com grande facilidade, entraram em Pyongyang a 24 de Agosto e detiveram-se no paralelo 38, ficando a ocupação da parte sul do país a cargo dos americanos.
Kim Il-sung desembarcou a 19 de Setembro de 1945, na Coreia sem ter intervindo na sua libertação e, pior do que isso, nem sequer falando correctamente a língua do país em que não punha os pés há mais de 20 anos. Tal não impediu que os soviéticos lhe atribuíssem o cargo de secretário-geral do ramo norte do Partido Comunista Coreano. Kim deixou de se apresentar como nacionalista fervoroso a passou a ser um “patriota socialista”, refletindo a sua subalternidade em relação aos soviéticos. Foi necessário algum esforço de propaganda para impor Kim Il-sung, que, além de ser jovem, aparentava ser mais novo do que era e ficara a meio do ensino secundário (duas desvantagens de monta numa sociedade que associava idade a sabedoria e que, na tradição confucionista, prezava a educação formal) e parecia ser uma marioneta dos soviéticos. Pode ver-se nesta campanha o embrião daquilo que viria a ser o desmesurado culto da personalidade em torno de Kim Il-sung.
O outro candidato que os soviéticos consideraram para liderar os destinos da Coreia era o independentista Cho Man-sik, mas este revelou possuir pensamento autônomo e não parecia disposto a aceitar que ao jugo japonês se seguisse o jugo soviético. Foi assim que, no início de 1946, Kim foi colocado à frente do governo provisório e, com a proclamação, a 9 de Setembro de 1948, da República Popular Democrática da Coreia do Norte, assumiu definitivamente os destinos do país – só a morte o faria deixar o cargo, 46 anos depois.
A partir de 1949 Kim começou a assediar Stalin para que este o autorizasse a invadir a Coreia do Sul. O líder soviético começou por considerar a conjuntura desfavorável (ainda havia forças americanas na Coreia do Sul e Mao Tse Tung ainda não consolidara o seu poder na China) e recusou, mas o contexto evoluiu favoravelmente e Kim foi manobrando até que conseguiu que a URSS e a República Popular da China lhe dessem aval ao seu plano para a unificação da península. A invasão começou a 25 de Junho de 1950, mas, após um rápido avanço inicial, os norte-coreanos foram repelidos pela força conjunta da Coreia do Sul, EUA e Nações Unidas, que entraram em Pyongyang a 19 de Outubro. A vida política de Kim poderia ter chegado ao fim, não fosse a China ter respondido aos seus pedidos de socorro. A guerra acabou por durar três anos, causar 2.5 milhões de vítimas civis (1.5 no Norte, um milhão no Sul) e deixar a península devastada – e tudo isto para que, no fim, a fronteira entre as duas Coreias regressasse, com pequenas alterações, ao ponto de partida.
A morte de Stalin, em 1953, e a subida de Khrushchev ao poder arrefeceram as relações entre a Coreia do Norte e a URSS e a governação errática de Mao Tse Tung também causou algum afastamento entre os dois países (embora nunca tenha havido um corte de relações nem com a URSS nem com a república Popular da China). Em compensação, a Coreia do Norte estreitou laços com regimes comunistas da Europa de Leste, sobretudo com a República Democrática Alemã e a Romenia, cujo presidente, Nicolae Ceaușescu, ficou fascinado com o culto da personalidade em torno de Kim Il-sung e tentou emulá-lo no seu país.

Para afirmar a sua independência da URSS e da República Popular da China, em 1965 Kim Il-sung expôs os princípios fundamentais da Juche, um misto de ideologia política, misticismo religioso e nacionalismo, a que já aludira num discurso de 1955. Embora tenha por ponto de partida algumas ideias do marxismo-leninismo, representa a “ideia-mestra da revolução Coreana”, assenta nos princípios da “independência política”, “auto-sustentação económica” e “autonomia na defesa” e promete “uma nova era de desenvolvimento na História da Humanidade” (embora os norte-coreanos esfomeados que se têm visto obrigados a desenterrar e comer raízes tenham provavelmente uma perspectiva pouco entusiástica sobre a “nova era de desenvolvimento”).
Descontando a retórica, a Juche acaba, na prática, por servir para justificar o isolacionismo e repressão do regime e a perpetuação dos Kim no poder: “As massas populares estão no centro de tudo e o líder é o centro das massas”. Todos os anseios e aspirações das massas, bem como a luta de classes, só poderão ser alcançados através de um Grande Líder, um ser semi-divino, de superiores capacidades intelectuais, infalível, incorruptível, benévolo e que age exclusivamente em prol das massas.
 
Não se fiando apenas no poder espiritual da Juche, Kim Il-sung afadigou-se a tentar obter argumentos mais prosaicos e sonantes em que fundamentar a afirmação da Coreia do Norte no concerto das nações e logo em 1963, solicitou ajuda à URSS para o desenvolvimento de armas nucleares; perante a resposta negativa, reendereçou-o à China, que também a recusou. A Coreia do Norte começou então a construir um reator de pesquisa em Yongbyon, mas só foi obtido progresso significativo com a ajuda do Paquistão. Em 1993, o Paquistão terá fornecido informação à Coreia do Norte sobre enriquecimento de urânio, em troca de know-how sobre mísseis balísticos e os desenvolvimentos do programa nuclear coreano levaram os EUA a exercer pressão, que parece ter convencido Kim Il-sung a renunciar ao programa nuclear e a manifestar intenção de aproximar-se do Ocidente.
A 8 de Julho de 1994, a Rádio Pyongyang anunciou, em tom lúgubre. “O Grande Coração parou de bater”. Kim Il-sung sucumbira a um ataque cardíaco, aos 82 anos.

Kim Man-il (1944-47/8)

Segundo filho de Kim Il-sung e Kim Jong-suk, nascido, como o primogénito, em Vyatskoye, na URSS. Terá morrido afogado em Pyongyang, possivelmente na piscina da casa da família, em circunstâncias não esclarecidas.

Kim Jong-Il (1941-2011)

As informações sobre os primeiros anos da sua educação são contraditórias e vagas – a versão oficial afirma que estudou em Pyongyang, outras fontes apontam para a República Popular da China. Em 1960, matriculou-se na Universidade Kim Il-sung de Pyongyang e licenciou-se em política económica marxista.
Ainda antes de terminar os estudos já acompanhava o pai em digressões pelo país, mas só ganhou relevo na política norte-coreana em 1980, ao ser anunciado formalmente como sucessor de Kim Il-sung, e foi consolidando a sua posição através de através da atribuição de cargos e títulos honoríficos e através de cerimónias cada vez mais extravagantes a assinalar o seu aniversário.
Porém, antes, teve de livrar-se do vice-presidente Kim Dong-kyu, que era o segundo na hierarquia do Estado, tinha um passado heróico na luta independentista contra os japoneses (onde perdera um braço) e se opunha a que Kim Jong-Il sucedesse ao pai. Mas Kim Jong-Il terá conseguido convencer o pai, mediante documentos forjados, de que o vice-presidente tivera um comportamento traiçoeiro e, em 1977, este foi destituído e exilado e, posteriormente, internado num “campo de reeducação”, onde morreu de fome em 1984.
Com a morte do pai, em Julho de 1994, Kim Jong-Il herdou boa parte dos cargos em este que ainda estava investido, nomeadamente o de Secretário-Geral do Partido dos Trabalhadores Coreanos, e prosseguiu a política de centralização e micro-gestão a que já dera início quando o pai ainda estava no poder. Mas, talvez por ainda não sentir o seu poder completamente consolidado, foi fazendo concessões à comunidade internacional quanto ao programa nuclear, que em acordos de Outubro de 1994 e Junho de 1995, se comprometeu a suspender.

A verdade é que em meados da década de 1990, Kim Jong-Il estava também crescentemente dependente da ajuda alimentar externa, pois o país atravessava uma grave crise económica, em resultado de décadas de gestão inepta, de técnicas agrícolas inadequadas, de uma alocação desproporcionada de recursos às Forças Armadas e do crescimento demográfico, resultando em fome generalizada, cortes de energia e proliferação do mercado negro. Em finais da década, Kim Jong-Il implementou uma política de aproximação à Coreia do Sul, que resultou na criação, em 2003, do parque industrial de Kaesong, na zona desmilitarizada entre as duas Coreias.
No domínio do programa nuclear, a atitude cumpridora da década de 1990 deu lugar a uma política ambígua e errática, com anúncios de suspensão do programa a alternarem com bravatas e a ameaças, mas evoluindo, na prática, para a criação de um arsenal nuclear. Em 2003, o país retirou-se do Tratado de Proliferação Nuclear, em 2005 reconheceu a posse de armas nucleares e desde então já conduziu pelo menos cinco testes nucleares subterrâneos e tem vindo a ensaiar mísseis capazes de transportar ogivas nucleares, apesar das sanções impostas pelo Conselho de Segurança da ONU e das pressões da comunidade internacional.
Em 2008 começaram a multiplicar-se rumores sobre o estado de saúde de Kim Jong-Il, baseados na sua ausência em importantes cerimónias de Estado (nomeadamente a parada militar que assinalou os 60 anos da Coreia do Norte), e começou a especular-se que a atitude mais dura e intransigente da Coreia do Norte no domínio nuclear resultava de Kim Jong-Il já não deter o poder efetivo e de este ter passado para as mãos dos generais. A proliferação de boatos foi tal que a agência noticiosa oficial da Coreia do Norte se sentiu obrigada a divulgar fotografias que, supostamente atestariam que o Grande Líder estava de saúde e visitava quintas e fábricas, mas que foram suficientemente ambíguas para suscitar suspeitas de falsificação e o reacender dos rumores.
Em Abril de 2009, após oito meses sem ser visto em público, Kim Jong-Il surgiu na Assembleia Popular Suprema, ficando por esclarecer quanto haveria de verdadeiro nas notícias sobre os seus problemas de saúde. Fez viagens à China e à Rússia, em 2010 e 2011, e sucumbiu a um ataque cardíaco a 17 de Dezembro de 2011.
A vida amorosa de Kim Jong-Il foi complexa e obscura, até para os padrões do regime norte-coreano, pois sabendo que algumas das mulheres com que se relacionou não mereciam aprovação do pai, Kim Jong-Il fez os possíveis por ocultá-las. Terá tido (pelo menos) três filhos: Kim Jong-nam, nascido em 1971, filho da atriz de cinema Song Hye-rim; Kim Jong-chul, nascido em 1981, filho da bailarina Ko Yong-hui, que nascera no Japão, de pai coreano e mãe japonesa; três anos depois, Ko Yong-hui deu à luz o terceiro filho de Kim Jong-Il, Kim Jong-un.
Esperar-se-ia que fosse o primogénito a ser designado como sucessor de Kim Jong-Il e assim foi até 2001, até que Kim Jong-nam foi detido no aeroporto de Narita, em Tóquio acompanhado de uma mulher e uma por viajar sob nome (chinês) falso e com um passaporte forjado da República Dominicana. Acabou por confessar ser filho de Kim Jong-Il e alegou que apenas pretendia visitar a Disneylândia de Tóquio, com duas mulheres e uma criança de criança de quatro anos (apresentado como seu filho).
As autoridades japonesas deportaram-no para a China e a situação parece ter criado embaraço em Pyongyang e, pouco depois, a propaganda oficial começou a enaltecer Ko Yong-hui como “Mais Fiel e Dedicada Súbdita do Querido Líder Camarada Comandante Supremo”, o que levou a que se suspeitasse que a sucessão tinha sido transferida para o filho do meio, Kim Jong-chul. Porém, consta que Kim Jong-Il achava o filho do meio demasiado efeminado e destituído de iniciativa e que preferia o feroz e turbulento filho mais novo. E, com efeito, a 1 de Julho de 2009, Kim Jong-un foi eleito Secretário-Geral do Partido dos Trabalhadores Coreanos e, após a morte do pai, assumiu a chefia da Coreia do Norte.

Kim Jong-nam (1971-2017)

Kim Jong-nam não teve sorte com aeroportos: perdeu a corrida para a sucessão devido ao incidente do aeroporto de Tóquio e perdeu a vida no aeroporto de Kuala Lumpur, na Malásia, quando regressava de Macau, a 13 de Fevereiro de 2017. Aparentemente foi borrifado no rosto com um spray contendo gás de nervos VX, no que parece ter sido um homicídio planeado, de forma rocambolesca e trapalhona, pelos serviços secretos da Coreia do Norte, presumivelmente a mando do seu meio-irmão Kim Jong-un. As autoridades norte-coreanas têm insistido que Kim Hong-un sucumbiu a um ataque cardíaco e pressionaram as autoridades malaias para não realizar autópsia, suspender a investigação e libertar os suspeitos.
Se se recuar um pouco na vida de Kim Jong-nam, surgem indícios de que o incidente no aeroporto de Tóquio em 2001 não terá sido a única razão para o seu afastamento da sucessão. Kim Jong-nam tinha um comportamento indisciplinado e inconstante, viajava frequentemente para o estrangeiro (sob pseudónimo), frequentava estabelecimentos de vida noturna, onde terá tido comportamentos desordeiros (há testemunhas que referem que terá começado a disparar tiros para o ar no átrio de um hotel, em 1993, e que terá repetido a proeza num nightclub, no ano seguinte). A família materna de Kim Jong-nam também não ajudava, pois vários dos seus membros fugiram para a Coreia do Sul ou para países ocidentais e seria malvisto que um líder da Coreia do Norte tivesse ligações familiares a traidores.
Um desses fugitivos foi Li Il-nam, primo de Kim Jong-nam, que se escapuliu em 1982, durante uma viagem à Suíça e se estabeleceu em Seul, cidade onde acabaria por ser morto a tiro, por assassinos a soldo da Coreia do Norte, segundo as autoridades sul-coreanas. Há mesmo quem sugira que quem ordenou o assassinato do “renegado” Li Il-nam terá sido o seu primo Kim Jong-nam, que, na altura desempenhava altos cargos nos Ministérios das Forças Armadas e da Segurança de Estado. A ser verdade, a sua eliminação em Kuala Lumpur reveste-se de uma perversa ironia.

Kim Jong-chul (n. 1981)

Filho do meio de Kim Jong-Il e o primeiro dos dois filhos que este teve da sua companheira Ko Yong-hui. Consta que terá estudado em colégios privados na Europa, em França ou na Suíça (fazendo-se passar por filho do embaixador norte-coreano), tal como o irmão mais novo, Kim Jong-un. O seu perfil tem-se mantido discreto e, nos últimos anos, as poucas vezes que foi avistado fora da Coreia do Norte foi em concertos de Eric Clapton, em Singapura e Londres, e terá sido ele a mexer os cordelinhos para que o guitarrista fosse convidado a atuar na Coreia do Norte (a visita não se concretizou), apesar de a posição oficial ser de rejeição do rock ocidental.

Kim Jong-un (n. 1984)

Embora sendo o terceiro na linha sucessória da dinastia Kim, que exclui as mulheres e privilegia os filhos mais velhos, foi reconhecido como sucessor de Kim Jong-Il em 2009 e foram-lhe atribuídos cargos e títulos correspondentes a essa condição. Subiu ao poder após a morte do pai, em Dezembro de 2011.
Alguns analistas previram que, dada a sua juventude e inexperiência política, o tio Jang Song-thaek (n. 1946) poderia desempenhar temporariamente funções de regente.
Jang Song-thaek casara-se no início dos anos 70 com a única filha do Querido Líder, Kim Kyong-hui e foi subindo lenta e custosamente na hierarquia – purgas e outros “contratempos” alternaram com reabilitações – até que, por volta de 2006, chegou a vice-secretário da Comissão Nacional de Defesa e do Partido dos Trabalhadores Coreanos, o que faria dele a figura n.º 2 do Estado, de forma que, quando em 2008 circularam rumores de que Kim Jong-Il estaria gravemente doente, foi aventado que o poder teria passado para as mãos do seu genro.
Mas, a partir de 2011, Kim Jong-un não perdeu tempo a assumir, pelo menos publicamente, as rédeas da governação e a máquina da propaganda oficial passou a referir-se a ele com os ditirambos e hipérboles que caracterizam o culto dos líderes na Coreia do Norte. E em Dezembro de 2013, sem que nada o fizesse prever, ordenou a prisão e execução, por traição, do tio Jang Song-taek, a que se seguiu a supressão de todas as menções à sua existência e o apagamento da sua presença nas fotos, ao bom estilo stalinista. A queda de Jang Song-thaek arrastou outros “traidores” e algumas fontes indicam que a sua família próxima terá sido igualmente eliminada.
Num país em que as companheiras do Líder Supremo têm, usualmente, vivido na sombra, foi inesperado ver, a partir de 2012, Kim Jong-un surgir em público acompanhado pela “esposa e camarada” Ri Soi-ju (n. 1989). Ri Soi-ju destaca-se também pelo uso de roupas de famosos costureiros ocidentais e malas Dior e fontes sul-coreanas sugerem que ela tenha sido uma das muitas cantoras – dantes conhecida como Hyon Song-woi – do Ensemble Electrónico Pochonbo, um grupo de formação flutuante que toca versões pop de canções tradicionais e revolucionárias e tem a aprovação oficial do Estado norte-coreano (sem a qual, aliás, não é possível gravar ou difundir música no país).
A primeira aparição oficial de Ri Soi-ju como Primeira Dama teve lugar num concerto das Moranbong, um grupo concebido para dar resposta ao apetite da juventude norte-coreana por pop moderna e cujos elementos terão sido escolhidos por Kim Jong-un. Segundo a agência noticiosa oficial do país, “Kim Jong-un formou a banda Moranbong de acordo com os imperativos do novo século e de acordo com um grandioso plano para operar uma reviravolta dramática na literatura e nas artes”.
Além da música, Kim Jong-un também nutre forte paixão pelo basquetebol e, em 2014, surgiu em público ao lado do ex-basquetebolista norte-americano Dennis Rodman (que foi incumbido de promover o basquetebol no país), num jogo/exibição entre jogadores americanos e norte-coreanos.
Nestes momentos de tensão, resta esperar que o apreço de Kim Jong-un por basquetebolistas norte-americanos, da sua esposa por vestidos Chanel e malas Dior e da nomenklatura norte-coreana em geral por luxos ocidentais, pese mais do que a vontade, tantas vezes reiterada, de reduzir o mundo capitalista e imperialista a poeira radioativa.