Minhas faltas “injustificadas” segundo o Itamaraty
Paulo Roberto de Almeida
Diplomata de carreira, professor no Uniceub
Em 28 de novembro de 2019 fui surpreendido com uma publicação nominal, no Boletim de Serviço do Itamaraty, lido por todos os funcionários do Serviço Exterior, em qualquer lugar do mundo, tal como reproduzo abaixo:
“Boletim de Serviço n. 228 do Itamaraty, de 28/11/2019, seção 3: Atos do chefe da Divisão do Pessoal): REGISTRO DE FALTAS INJUSTIFICADAS
Nos termos do artigo 44, inciso I, da Lei n. 8.112, de 11 de dezembro de dezembro de 1990. PAULO ROBERTO DE ALMEIDA, diplomata, SIAPE n. 0403909, faltou injustificadamente ao serviço no dia 21/05/2019, de 24/05/2019 a 31/05/2019, nos dias 07/06/2019, 11/06/2019, 13/06/2019, 24/06/2019, 25/06/2019, 28/06/2019, de 07/08/2019 a 09/08/2019, em 14/08/2019 e no dia 23/08/2019 (20 dias).
Como eu estava lotado, a partir do mês maio de 2019, na Divisão do Arquivo, mas “apenas formalmente”, e sem atribuição de funções, como me foi dito no momento da lotação, depois de ter sido exonerado do cargo de Diretor do Instituto de Pesquisa de Relações Internacionais, em plena segunda-feira de Carnaval, não imaginei que minha frequência estivesse sendo escrupulosamente registrada pelas implacáveis catracas eletrônicas da Administração. O que fiz imediatamente foi apresentar minhas justificativas para cada um dos dias anotados, entre as quais as seguintes:
1) dia 21/05: Seleção das melhores teses de mestrado e doutorado relativamente ao ano de 2018; reunião de banca de avaliação dos professores do Uniceub; seguido de reunião do Grupo de Pesquisa Brasil Global, e aula no Mestrado em Direito;
2) dias 24 a 31/05 (menos dias 25 e 26 que correspondem ao final da semana): viagem a Curitiba para cumprir programa de palestras e cursos em nível de graduação e pós-graduação em Direito e em Comércio Exterior, na Universidade Técnica do Paraná;
5) dia 13/06: participação, a convite do Ministério da Defesa, no 5o. Simpósio sobre Segurança Regional Europa-América do Sul, organizado pelo Instituto Pandiá Calógeras, IPRI e Funag, Delegação da União Europeia, do qual participou, aliás, o próprio Ministro de Estado, realizado no Comando Militar do Planalto;
8) dia 28/06: participação por vídeo-conferência na “Peace Making After the First World War, 1919-1923 Conference”, realizada nos dias 27 e 28/06 (National Archives e Lancaster House, Londres, sob direção do Intelligence and Security Records do National Archives), com apresentação do trabalho “Brazil and 1919 peace negotiations: a newcomer among the greats”, disponível na plataforma Academia.edu (link: https://www.academia.edu/s/d498fd2bfa/brazil-and-the-1919-peace-negotiations-a-newcomer-among- the-greats-2019);
9) dia 7 a 9/08: viagem a São Paulo, para participação no 6o. Workshop de História Econômica, como debatedor dos papers apresentados, a convite do presidente do INSPER, economista Marcos Lisboa, realizado no INSPER;
10) dia 14/08: posse como novo membro no Instituto Histórico e Geográfico do DF, na cadeira Tobias Barreto, com apresentação de ensaio sobre o patrono: “Tobias Barreto: um intelectual em sua própria escola de inteligência”; Academia.edu (link: https://www.academia.edu/40050575/Tobias_Barreto_um_intelectual_em_sua_propria_escola_de_inteligencia).
Todos os demais dias correspondem a bancas de mestrado ou doutorado no Uniceub, todas elas incluídas em meu CV Lattes, onde fui buscar as informações para responder às alegações do Itamaraty: http://lattes.cnpq.br/9470963765065128. Não é preciso dizer que todas essas justificativas foram sumariamente indeferidas, a dois dias de meu formulário de justificação, inclusive esta do item 5), um evento oficial no Comando Militar do Planalto, onde compareci a convite do Ministério da Defesa, por ter sido um dos organizadores desses eventos nos dois anos anteriores; o mais curioso é que nele se encontrava o próprio chanceler, que deve ter ficado muito irritado ao me ver na sala VIP, conversando com generais, almirantes e brigadeiros, como professor convidado na ESG.
Essas foram as faltas publicadas sob o meu nome. O que eu não sabia era que, nos escaninhos da burocracia, estavam escondidas algumas dezenas de horas a título de “atrasos e saídas antecipadas”, publicadas unicamente sob o número do SIAPE, que é a identidade do funcionário público. Faltas e atrasos foram computados no contracheque de dezembro; no dia 1/01/2020 fui contemplado com a fabulosa quantia de R$ 210,16, ou seja, menos de um quinto de um salário mínimo. A sanha persecutória continuou, sob uma ou outra forma: assim, no dia 13/03/2020, o Boletim de Serviço atacou de novo:
“Boletim de Serviço n. 50 do Itamaraty, de 23/03/2020, seção 2: Atos do chefe da Divisão do Pessoal): REGISTRO DE FALTAS INJUSTIFICADAS
Nos termos do artigo 44, inciso I, da Lei nº 8.112, de 11 de dezembro de 1990, PAULO ROBERTO DE ALMEIDA, ministro de primeira classe, matrícula SIAPE 0460584, faltou injustificadamente ao serviço em 04/09/2019, de 09/09/2019 a 12/09/2019, de 18/09/2019 a 20/09/2019, em 09/10/2019 e em 19/11/2019 (10 dias).
Novamente dediquei-me a justificar cada uma delas, como segue:
1) 04/09/2019: Posse do embaixador Carlos Henrique Cardim no Instituto Histórico e Geográfico do Distrito Federal, quando fui apresentador do novo membro;
2) 09 a 12/09/2019: Participação no seminário “Oliveira Lima e a (Longa) História da Independência”, organizado pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, realizado na Biblioteca Mindlin da IEB-USP, nos dias 10 e 11/09/2029, com apresentação do trabalho “Um “imenso Portugal”? A hipótese de um império luso-brasileiro no contexto internacional do início do século XIX”, a ser publicado em volume coletivo pela Editora da USP (disponível nos links: https://diplomatizzando.blogspot.com/2019/09/um-imenso-portugal-hipotese-de-um.html e https://www.academia.edu/s/085e1aeea0/um-imenso-portugal-a-hipotese-de-um-imperio-luso-brasileiro-no-contexto-internacional-do-inicio-do-seculo-xix).
3) 18-20/09/2019: Curso oferecido no quadro do Mestrado Profissional Internacional Conjunto em Direito das Migrações Transnacionais, promovido pela UNIVALI (SC) e Università degli Studi di Perugia, nos dias 19 e 20/09/2019, sob os títulos: “Migrações transnacionais: história, economia, geopolítica” e “Problemas contemporâneos das migrações transnacionais”; plataforma Academia.edu (links: https://www.academia.edu/40411463/Migracoes_Humanas_em_Perspectiva_Historica_-_Aula_1_Univali e https://www.academia.edu/40411470/Migracoes_internacionais_no_seculo_XXI_-_Aula_2_na_Univali).
4) 09/10/2019: Participação no seminário “O Programa Jean Monnet da União Europeia: Oportunidades para a Academia Brasileira”, a convite da Delegação da União Europeia no Brasil e da coordenação dos programas de mestrado e doutorado em Direito do Uniceub, do qual sou professor, realizado no dia 9/10/2019, com avaliação dos trabalhos apresentados pelos alunos selecionados pela coordenação do Programa Jean Monnet, a cargo da Delegação da União Europeia, como etapa para viagem à Comissão Europeia, em Bruxelas;
5) 19/11/2019: Aniversário do servidor; ausência autorizada pelo chefe da DCA.
Como eu já era um “diplomata escaldado”, em vista do indeferimento imediato das faltas anteriores, tratei pelo menos de oferecer compensação, ainda em dezembro; assim, indiquei no mesmo formulário: “Dez dias compensados pelo comparecimento ao trabalho na SERE nos dez dias de férias legalmente registradas entre os dias 4 e 13 de dezembro de 2019, como pode ser aferido pelo sistema de catraca eletrônica.” O zelo persecutório continuou se manifestando sob a forma clandestina de publicações não nominativas em outros boletins de serviço, com tantas e tantas horas de “atrasos e saídas antecipadas” unicamente computadas unicamente via número de SIAPE.
Apenas uma observação quanto à meticulosidade burocrática desse sistema de registro de faltas: ela é seletiva, ou propriamente míope. Nenhum dos vários outros embaixadores colocados em disponibilidade pelo esforço de “saneamento etário” empreendido pelo chanceler Ernest Araújo foi jamais contemplado com tal distinção honorífica de ter o seu nome publicado no Boletim de Serviço como sendo um reles funcionário “relapso”, passível, portanto, de sofrer todo o furor da Lei. Antigamente, nos tempos em que os animais falavam, como gosta de lembrar o ex-chanceler Celso Lafer, os intelectuais que se exerciam nas lides intelectuais eram até admirados e encorajados pelo Itamaraty, como registrado na belíssima obra que ele publicou em 2001, sob a direção do acadêmico diplomata Alberto da Costa e Silva: O Itamaraty na Cultura Brasileira, uma coleção de ensaios cobrindo a vida e a obra de algumas dezenas de representantes das letras e das humanidades que eram ou se tornaram diplomatas, desde o século XIX até o grande intelectual José Guilherme Merquior.
O embaixador Rubens Ricupero, por sua vez, a quem comuniquei a nova postura do Itamaraty, transformado em bedel severo de diplomatas pertencentes a certas “tribos”, escreveu-me o seguinte: “estou de fato convencido de que uma administração que se recusa a empregar o funcionário em trabalho útil implicitamente reconhece que abriu mão dos serviços que ele poderia prestar. Em tais condições, não parece admissível que essa administração exija presença física como se se tratasse do cumprimento de pena de reclusão em regime fechado. E veja, hoje em dia em direito penitenciário, se considera que a administração penal tem o dever de oferecer trabalho até aos condenados! Desejo a Você muita sorte nesta luta pelo Itamaraty e em defesa de sua própria dignidade.”
A julgar pela imagem da diplomacia brasileira no exterior, atualmente, as piores faltas não estão exatamente com o seu corpo profissional.
Paulo Roberto de Almeida
Brasília, 2 de abril de 2020