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Este blog trata basicamente de ideias, se possível inteligentes, para pessoas inteligentes. Ele também se ocupa de ideias aplicadas à política, em especial à política econômica. Ele constitui uma tentativa de manter um pensamento crítico e independente sobre livros, sobre questões culturais em geral, focando numa discussão bem informada sobre temas de relações internacionais e de política externa do Brasil. Para meus livros e ensaios ver o website: www.pralmeida.org. Para a maior parte de meus textos, ver minha página na plataforma Academia.edu, link: https://itamaraty.academia.edu/PauloRobertodeAlmeida.

sábado, 12 de setembro de 2020

A bolsodiplomacia autoriza os EUA a adotarem medidas unilaterais CONTRA o Brasil - Patricia Campos Mello (7/11/2019)

Um dos primeiros exemplos da completa subordinação da diplomacia brasileira aos interesses americanos. Esta notícia é de novembro de 2019, mas ela se seguiu e antecedeu a várias outras demonstrações de sabujice da bolsodiplomacia ao governo Trump.

Não se trata aqui de apoiar a ditadura cubana, mas sim de enviar uma mensagem clara que o Brasil não tolera leis extra-territoriais, e não tolera medidas unilaterais.

O governo Bolsonaro começou por aí dizendo que os EUA podem sancionar unilateralmente o Brasil, e que vamos acatar essas medidas como legítimas.

Uma vergonha para a nossa diplomacia.

Paulo Roberto de Almeida

Brasil cede aos EUA, rompe tradição de 27 anos e não condena embargo a Cuba

Itamaraty ignorou argumentos de embaixador brasileiro na ONU, que defendia abstenção

Patrícia Campos Mello

Folha de S. Paulo, 7 de novembro de 2019

https://www1.folha.uol.com.br/mundo/2019/11/brasil-cede-aos-eua-rompe-tradicao-de-27-anos-e-nao-condena-embargo-a-cuba.shtml

Pela primeira vez em 27 anos, o Brasil cedeu às pressões dos EUA e votou contra a resolução anual da ONU que condena o embargo econômico americano a Cuba. Apenas Israel e Estados Unidos votaram da mesma maneira que o Brasil.

Nas últimas semanas, o governo americano, por meio da divisão de Hemisfério Ocidental do Departamento de Estado, pediu duas vezes que o Itamaraty mudasse seu posicionamento histórico de rechaço a medidas econômicas unilaterais e se alinhasse aos EUA na votação.

Os americanos argumentaram que, ao condenar o embargo contra Cuba, o Brasil passaria a mensagem de que o país caribenho pode continuar interferindo impunemente na Venezuela e que o governo brasileiro tolera as violações de direitos humanos da ditadura cubana.

O presidente brasileiro, Jair Bolsonaro, durante discurso na Assembleia Geral da ONU, em Nova York
O presidente brasileiro, Jair Bolsonaro, durante discurso na Assembleia Geral da ONU, em Nova York - Johannes Eisele - 24.set.19/AFP

Segundo os americanos, venezuelanos e cubanos já obtiveram uma vitória com a eleição da Venezuela para o Conselho de Direitos Humanos da ONU, em outubro, e o voto do Brasil seria outro trunfo internacional para o regime hoje liderado por Miguel Díaz-Canel.

O chanceler brasileiro, Ernesto Araújo, cedeu às pressões americanas, apesar de grande resistência do atual embaixador do Brasil na ONU, Mauro Vieira.

Mesmo países que têm relação muito próxima aos EUA e dependem pesadamente de ajuda econômica americana resistiram às pressões de Washington. A Colômbia e a Ucrânia, por exemplo, abstiveram-se na votação.

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A Guatemala, único país a acompanhar os EUA e transferir sua embaixada em Israel de Tel Aviv para Jerusalém, votou a favor.

No total, foram três votos contra a resolução, duas abstenções e 187 votos a favor do texto que condena o embargo americano imposto há 50 anos, no início da revolução promovida por Fidel Castro. A Moldova não votou.

O voto brasileiro contraria o posicionamento histórico do Itamaraty de condenar medidas unilaterais econômicas contra países, vetadas pela legislação internacional e pela ONU.
 
Em telegramas nos últimos meses, o embaixador Mauro Vieira tentou argumentar que um voto a favor da resolução não representaria um sinal de apoio à política de direitos humanos da ditadura cubana, mas sim uma posição tradicional do governo brasileiro em relação à ingerência em outros países.

Também defendeu que um voto contrário não seria visto apenas como um gesto contra o país, mas um posicionamento contra o princípio de não interferência, o que desagradaria todos os países sujeitos a essas medidas.

Vieira ainda defendeu que um voto como esse poderia prejudicar os interesses brasileiros —por exemplo, no caso da possibilidade de sanções econômicas contra o Brasil devido à política ambiental na Amazônia.

Assim, o governo Bolsonaro teria dificuldade em angariar apoio de países contra esse tipo de interferência.

Ao responder as argumentações de Vieira, as mensagens do gabinete do chanceler Ernesto Araújo eram sempre secas, afirmando apenas que o governo brasileiro manterá a instrução previamente passada.

Vieira teria argumentado que, caso o Brasil quisesse mandar um sinal ao regime cubano, poderia pedir a palavra durante o voto na sessão e fazer uma declaração, deixando claro que o gesto não é um apoio a violações de direitos humanos em Cuba.

Por fim, o embaixador sugeriu que o Brasil se abstivesse em vez de votar contra a resolução, porque não seria um movimento tão grave nem isolaria o país. De novo, foi ignorado.

"Sanções indiscriminadas como embargos afetam negativamente a população em geral e, por isso, são consideradas já há anos uma medida inadequada”, diz Camila Asano, coordenadora de programas da Conectas Direitos Humanos.

“A mudança de voto também preocupa por ser mais um exemplo do alinhamento automático do Brasil com a política externa americana sem que tais mudanças dramáticas sejam devidamente debatidas no Brasil, como junto ao Congresso Nacional."

O governo brasileiro vem se alinhando sistematicamente a interesses americanos. O país abriu mão do tratamento especial e diferenciado na OMC (Organização Mundial do Comércio) a pedido dos Estados Unidos, que querem modificar o mecanismo para não beneficiar a China em negociações comerciais.

Bolsonaro chegou a anunciar a transferência da embaixada brasileira em Israel para Jerusalém, mas acabou recuando e abrindo apenas um escritório comercial, diante de ameaças de países árabes, grandes importadores de carnes brasileiras.

O Brasil ampliou e renovou neste ano cotas sem tarifa para importação de etanol e trigo, reivindicações americanas. Por outro lado, frustrando expectativas, os EUA não removeram as barreiras sanitárias que impedem a importação de carne bovina in natura nem anunciaram modificações na proteção do açúcar americano, outro pedido brasileiro.

O apoio dos EUA à entrada do Brasil na OCDE, o clube dos países ricos, prometido pelo presidente Donald Trump em março, tampouco se materializou. O governo de Bolsonaro vê a entrada no órgão como um selo de qualidade de políticas macroeconômicas.

Recentemente, em carta à organização, Washington reiterou o apoio às candidaturas de Argentina e Romênia na OCDE, mas se opuseram a uma ampliação maior no número de membros do órgão, o que, na prática, solapa as ambições brasileiras.

O governo Trump vinha se opondo à ampliação da OCDE, dando a entender que a entrada muito rápida de novos membros desvirtuaria a organização, que ficaria inchada e sem propósito —além da ojeriza natural da atual gestão da Casa Branca a instituições multilaterais.

ENTENDA O EMBARGO

Quando começou?
Os EUA impuseram sanções econômicas a Cuba em 1960, cerca de um ano depois de a Revolução Cubana de Fidel Castro ser bem sucedida e ele assumir o poder.

A medida foi resposta à estatização de empresas e propriedades americanas. As relações diplomáticas foram rompidas.

Qual o efeito das sanções na economia cubana?
Em 2018, a Comissão Econômica para a América Latina e Caribe da ONU confirmou a estimativa do regime cubano de que o embargo já tinha custado US$ 130 milhões nos últimos 60 anos.

Como o embargo afeta da vida dos americanos?
Washington não emite vistos de turismo para a ilha. Qulquer pessoa partindo dos EUA em direção a Cuba deve pedir autorização ao Departamento do Tesouro.

Cartões de crédito e débito emitidos nos EUA raramente são aceitos.

E a dos cubanos?
O turismo é uma das principais atividades econômicas do país, mas o embargo e as restrições de viagem prejudicam o mercado.

As sanções também limitam o fluxo de dinheiro de cubanos vivendo no exterior, importante fonte de renda para a população.

Há escassez de alguns produtos básicos, incluindo alimentos, e o governo impõe racionamento.

Cubanos podem viajar aos EUA desde que obtenham um visto.

Como Obama se aproximou do regime cubano?
O então presidente restabeleceu relações diplomáticas, autorizou empréstimos de empresas americanas às cubanas da área de infraestrutura e permitiu que a ilha exportasse alguns produtos para os EUA.

O que mudou no governo Trump?
No início de junho deste ano, os EUA expandiram as restrições a viagens de americanos à ilha.

O governo pôs fim aos vistos de cinco anos para cubanos, que agora têm de pedi uma autorização para cada viagem.

Transações financeiras com entidades ligadas às Forças Armadas cubanas foram restringidas.


Meio século de reflexões sobre o Brasil - Paulo Roberto de Almeida

 Meio século de reflexões sobre o Brasil

Paulo Roberto de Almeida

Deve ser um pouco mais do que isso, uma vez que, ainda adolescente, rapidamente politizado pelo golpe militar de 1964, comecei a ler intensamente sobre o Brasil e seus problemas. Vários anos antes de ingressar na Universidade, eu já estava lendo algumas de nossas “vacas sagradas”, isto é, os clássicos da teoria social brasileira: Caio Prado Jr., Celso Furtado, Gilberto Freyre, Sergio Buarque de Holanda, Florestan Fernandes, Fernando Henrique Cardoso, Octavio Ianni, Nelson Werneck Sodré e, claro, muita literatura marxista e socialista. Em torno dos 16 anos eu já estava fazendo um resumo de uma edição resumida do Capital: creio que deu umas cinquenta páginas cuidadosamente datilografadas, a partir das 250 páginas da edição brasileira.

Mas deve ter sido um pouco mais tarde, já no circuito universitário, que comecei realmente a escrever sobre os problemas brasileiros e suas possíveis soluções, previsivelmente socialistas, como era o espirito da época, o meu pelo menos. O verdadeiro Zeitgeist eu o conheci logo depois, ao sair, com pouco mais de vinte anos, do nosso capitalismo subdesenvolvido para o socialismo real (talvez mais surreal) da Europa oriental, em plena era do brejnevismo senil. Saí em menos de três meses da mediocridade material e da miséria moral do socialismo realmente existente para uma vida de trabalho e retomada dos estudos universitários no capitalismo mais ou menos ideal da Bélgica, onde passei quase sete longos anos de intensas leituras e reflexões, no período mais sombrio da ditadura militar no Brasil.

Preenchi inúmeros cadernos de leituras e notas de trabalhos, sempre confiando em que, na volta ao Brasil, participaria de intensas atividades de correção das nossas mazelas mais gritantes, já não mais num sentido socialista, mas simplesmente na modéstia reformista da socialdemocracia.

Pois foi assim: quase não tive tempo, na volta, e ainda na ditadura, de exercer-me nas atividades acadêmicas, para as quais eu sempre estive vocacionado, pois logo ingressei na carreira diplomática e desviei um pouco minhas leituras e reflexões da sociologia política para as relações internacionais e a política externa do Brasil, mas sempre com uma orientação para as relações econômicas internacionais do Brasil (terreno no qual me exerci mais frequentemente na diplomacia e para onde foram dirigidos a maior parte dos meus livros). 

Em nenhum momento dessas várias décadas de leituras, reflexões, escritos e participação em debates públicos, presencialmente ou por meio de meus trabalhos escritos, eu abandonei a ideia, ou renunciei ao envolvimento ativo, de estar totalmente engajado na transformação, para melhor, do Brasil, e da vida dos brasileiros, sobretudo a dos que, como eu, vieram de uma condição extremamente modesta, mas que se fizeram pela educação e pelo trabalho. 

Essa atitude fundamental, esse otimismo básico quanto ao sentido da minha ação, quanto à importância da participação na análise, discussão e proposição de políticas públicas condizentes com esse objetivo incontornável do desenvolvimento nacional, num ambiente político democrático e aberto a tidas as competências reformistas, eu os mantive até há pouco e, de certa forma, ainda mantenho, a despeito de algum pessimismo temporário, neste mesmo momento.

É passageiro, eu sei, mas não posso me impedir de pensar, como o grande Roberto Campos — a quem dediquei dois livros, nos seus cem anos, depois de ter sido um “inimigo cordial” na minha juventude— que “o Brasil é um país que não perde oportunidade de perder oportunidades”.

Ao contemplar o espetáculo gigantesco da corrupção nas mais altas esferas da vida pública, na verdade em todas as esferas e em tidos is níveis da federação, ao acompanhar a sucessão de esforços frustrados de reformas racionais e modernizante, ao constatar a continuidade deletéria de nossas elites predatórias e medíocres, não posso evitar essa sensação de desalento em face da enormidade da tarefa que ainda nos espera se pretendemos fazer do Brasil primeiro um país normal, depois uma nação melhor do que a indignidade  corrupta e anacrônica que temos hoje.

Vamos melhorar, eu sei, mas isso vai durar mais um pouco, talvez bem mais do que os poucos anos que eu estimava necessários para “consertar” o Brasil, como eu imaginava na minha juventude otimista quanto à capacidade do socialismo democrático de cumprir essa grandiosa tarefa. 

Nunca desistir, nunca desesperar, jamais renunciar à missão fixada ainda na adolescência de entregar aos filhos e netos um Brasil melhor do que o que recebemos de nossos pais e avós. Essa é a tarefa, vamos continuar na luta.

Paulo Roberto de Almeida

Brasília, 12 de setembro de 2020

ROUBO DA FAMILIA BOLSONARO: 29,5 MILHÕES

 

Revista: Supostos funcionários fantasmas dos Bolsonaros ganharam R$ 29,5 mi

Jair Bolsonaro acompanhado dos filhos Flávio, Eduardo e Carlos - Roberto Jayme/Ascom/TSE
Jair Bolsonaro acompanhado dos filhos Flávio, Eduardo e CarlosImagem: Roberto Jayme/Ascom/TSE

Do UOL, em São Paulo

11/09/2020 15h44 

Um levantamento da revista Época apontou que supostos funcionários fantasmas da família Bolsonaro receberam R$ 29,5 milhões em salários do total de R$ 105,5 milhões pagos entre 1991 e 2019 — os valores foram corrigidos pela inflação do período.

De acordo com a publicação, 28% do total pago a 286 funcionários dos gabinetes do presidente Jair Bolsonaro (sem partido) e de seus filhos Flávio, Carlos e Eduardo foram depositados na conta de servidores com indícios de que não trabalharam.

Segundo o levantamento da revista, ao menos 39 pessoas possuem indícios de que não trabalharam de fato nos cargos nos gabinetes e tinham outros empregos, como Nathalia Queiroz, filha do ex-assessor Fabrício Queiroz, investigado sobre suposto esquema de "rachadinha" no gabinete de Flávio Bolsonaro, então deputado estadual do Rio. A Época publicou que Nathalia, que é personal trainer, recebeu R$ 1,3 milhão, mesmo valor recebido por sua mãe, que se declarava cabeleireira.

Ainda de acordo com a revista, os 39 receberam um total de 16,7 milhões em salários brutos, o equivalente a R$ 29,5 milhões em valores corrigidos pela inflação, durante os trabalhos com a família Bolsonaro.

São 17 pessoas do gabinete de Flávio; 10 no de Carlos, que também é investigado pelo Ministério Público; três no gabinete do então deputado federal Jair Bolsonaro; outras nove pessoas passaram por diferentes gabinetes da família.

UOL tenta contato com as defesas de Jair Bolsonaro, Carlos BolsonaroEduardo Bolsonaro e Flávio Bolsonaro.


sexta-feira, 11 de setembro de 2020

Um novo Bolsa Familia, segunfo Simon Schwartzman

 Um dos problemas que eu vejo num programa de assistência social dessa magnitude — ou seja, incorporando TODOS os que aparentam possuir uma RENDA MONETÁRIA inferior a determinado patamar — é supor que todos eles, se deixados sem a esmola do governo se deixaria morrer de inanição, o que não é verdade, pois o primeiro instinto de todo ser vivo é justamente o da sobrevivência. 

Sou pela responsabilização individual, mas favorável a um GIGANTESCO esquema de escolarização de qualidade, dando toda ajuda a crianças na escola e APENAS na escola.

Paulo Roberto de Almeida

Nova postagem no blog de Simon Schwartzman
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A evolução do bolsa família

By Simon on Sep 11, 2020 06:12 am

(publicado em O Estado de São Paulo, 11 de setembro de 2020 – ampliado)

Os programas de transferência de renda começaram no governo de Fernando Henrique Cardoso, foram ampliados no governo Lula e está aberta a discussão de como vão continuar. Pouca gente duvida de sua importância e necessidade. Se antes se pensava que a miséria era inevitável, hoje não se pode mais admitir que pessoas fiquem sem pelo menos um mínimo para se alimentarem e sobreviverem.

Nestes mais de 20 anos, muita coisa se aprendeu sobre o que funciona ou não no Bolsa Família. Ao contrário da maioria dos programas sociais brasileiros, o Bolsa Família é relativamente bem focalizado, atendendo a quem mais necessita, a partir das informações de um grande cadastro único. As transferências se dão de forma simples, sem burocracia, e o principal resultado é a redução do número de pessoas em situação de pobreza extrema. Por outro lado, as chamadas “condicionalidades”, que associam os benefícios à frequência das crianças na escola e ao atendimento nos serviços de saúde, funcionam pouco. E pela imprecisão do cadastro único existem muitas pessoas recebendo sem precisar e outras que precisam e ficam de fora.

Uma decisão importante para renovar o Bolsa Família é quanto dinheiro vai ser gasto. R$ 35 bilhões, como proposto pelo governo para 2020? Ou R$ 100 bilhões, o que talvez fosse possível se a economia melhorasse? Seja quanto for, é imprescindível avaliar a experiência até aqui e fazer o dinheiro ser mais bem empregado, focado em quem mais necessita e buscando resultados realistas.

É exatamente isso que faz a proposta do Programa de Responsabilidade Social elaborado por um grupo de especialistas liderados por Vinicius Botelho, Fernando Veloso e Marcos Mendes e patrocinado pelo Centro de Debates de Políticas Públicas de São Paulo (veja abaixo os links para o artigo descrevendo o projeto, apresentação sumária e projetos de lei e de reforma da Constituição).

A primeira e talvez principal novidade é distinguir as situações de pobreza das situações de informalidade. Pessoas que trabalham informalmente nem sempre ganham muito pouco, mas vivem na incerteza. A ideia, por isso, é criar, ao lado da transferência de renda para os que ganham pouco ou nada, um seguro simples e barato que possa ser usado para as pessoas que trabalhem informalmente. Com isto se torna possível transferir mais recursos a quem ganha menos, e estimular as que trabalham informalmente a dar informações mais fidedignas sobre sua renda, para ter direito ao seguro. 

A segunda inovação é substituir os antigos benefícios voltados para crianças e jovens por políticas mais bem enfocadas. A ideia errada do Bolsa Família era que crianças pequenas não iam à escola porque precisavam trabalhar e o problema se resolveria pagando às famílias para os filhos estudarem. Mas já então se sabia que o problema do abandono escolar é menos de dinheiro do que da má qualidade das escolas, que os estudantes, a partir dos 11 ou 12 anos, começam a abandonar porque não conseguem acompanhar as aulas e perdem a motivação.

O novo programa propõe três políticas inovadoras. Primeiro, a abertura de uma conta de poupança para cada criança na escola, que só poderia ser resgatada quando concluísse o ensino médio. Segundo, recursos para apoiar os jovens em situação de pobreza que se sobressaem nas olimpíadas de matemática e em certames semelhantes, que mobilizam anualmente milhões de jovens e permitem identificar talentos, e ficariam perdidos sem o apoio necessário. Terceiro, recursos adicionais para a expansão do programa Criança Feliz, que atende diretamente crianças e gestantes com visitas de assistentes sociais, que são muito mais efetivas do que o simples incentivo financeiro. Claro que os problemas de educação e saúde brasileiros dependem sobretudo de melhorias no funcionamento das redes escolar e de saúde, e não desses incentivos, mas eles podem dar uma contribuição importante.

Para que esse programa funcione duas outras medidas são essenciais. A primeira seria trazer para o programa recursos que hoje são gastos com salário-família e abono salarial, cuja focalização é muito mais incerta, e para isso se prevê um mecanismo de transição. A segunda, a ampliação e reformulação do cadastro único, que deveria evoluir para um cadastro universal com informações mais confiáveis sobre toda a população brasileira.

O cadastro tem hoje mais de 76 milhões de inscritos e é utilizado por cerca de 30 programas sociais diferentes, que nem sempre usam os mesmos conceitos de pobreza, família, rendimento e pobreza. Ele é alimentado pelas prefeituras, e pessoas interessadas podem pedir para ser incluídas. Com o auxílio emergencial da Covid o governo federal deparou com milhões de pessoas “invisíveis” em situação de necessidade, por estarem fora do cadastro e de outras bases de dados governamentais. A fidedignidade do cadastro deve ser aferida pelos dados censitários e amostrais do IBGE, mas com o adiamento do censo a incerteza aumenta. A unificação dos diferentes cadastros existentes no IBGE e nos Ministérios da Cidadania, da Economia, da Educação e da Saúde é uma necessidade urgente, que precisa ser feita sem comprometer a proteção das informações individuais.

As propostas do novo Programa de Responsabilidade Social são um importante salto de qualidade em relação ao Bolsa Família. E precisam ser seriamente consideradas pelo Congresso.

Links para o Programa de Responsabilidade Social: 
Texto do Projeto de Lei e de Emenda à Constituição

Justificação do Projeto de Lei

Justificação do projeto de emenda à Constituição 

O artigo sobre o projeto e a apresentação de apoio

Gustavo Franco : o enfant terrible da economia liberal

 

O aguerrido Gustavo Franco e a dupla Campos & Simonsen

"Franco, presidente do Banco Central no primeiro governo FHC, é um liberal que não ignora políticas públicas relevantes para a proteção dos mais pobres"

O Brasil, por conta da tradição católica, costuma transformar os mortos em pessoas excepcionais, independentemente da sua trajetória. Os raros seres dominados pela catalepsia ficariam perplexos com os excessos de elogios sobre a sua suposta morte. Outra maneira de prestar homenagem aos mais velhos é esperar pela idade provecta dos 80 anos, como acontece com o competente economista Affonso Celso Pastore, ou ocorreu, em abril de 1997, com Roberto Campos, ministro do Planejamento do governo Castello Branco (1964-1967), que promoveu as mais importantes reformas econômicas nos últimos 55 anos, com a colaboração decisiva de Octavio Gouvêa de Bulhões, ministro da Fazenda, e do incansável jurista José Luiz Bulhões Pedreira.

“A vantagem de se fazer uma festa de 80 anos é que, se for chata, há a certeza de que não será repetida”, disse Campos, na comemoração organizada pelo advogado e amigo Bulhões Pedreira, nos salões do Copacabana Palace. Frasista incontinente e polemista de primeira mão, Campos não escondia as suas simpatias pelo governo Fernando Henrique Cardoso e de um de seus mais importantes colaboradores, o economista Gustavo Henrique Barroso Franco, filho de um importante burocrata no governo Getulio Vargas (1950-1954), que depois se tornaria banqueiro, Guilherme Arinos Barroso Franco. Escolhido para homenagear Mario Henrique Simonsen (1935-1997) em caderno especial do “Jornal do Brasil”, Franco produziu uma verdadeira lápide para o ex-ministro da Fazenda, que morreria um ano depois da publicação do depoimento editado em 12 páginas, 1996, com a contribuição luxuosa de Dionísio Dias Carneiro (1945-2010):

“MHS convive bem conosco, cidadãos comuns, economistas simplórios, que acreditam na teoria, na tecnologia e que querem acertar. Ele observa, com uma elegância condescendente, as nossas hesitações, nosso aprendizado. MHS é o que os acadêmicos chamam de ‘referência obrigatória’. Ele fala com as estrelas e enxerga por trás das coisas, de um jeito que as outras pessoas não são capazes. É possível que passem gerações sem que se veja outro como ele”. À época, Franco, 39 anos, era o diretor de Assuntos Internacionais do Banco Central.

Aos 64 anos, o economista tem uma simbiose de MHS, com formação acadêmica impecável, e a ironia fina de um Bob Fields, apelido jocoso dado por um assessor nacionalista de Vargas. Bem-humorado, ele gostava da alcunha, uma alusão à sua defesa da importância do capital estrangeiro naquela economia incipiente e muito fechada dos anos 1950.

Gustavo Franco viu o céu e o inferno no governo FHC, mas sai mansamente, em janeiro de 1999, diante da forte especulação contra o real sem fazer críticas a quem serviu com grande fidelidade, tendo ajudado a montar a engrenagem que deu origem ao mais bem-sucedido plano de estabilização econômica do Brasil, o Real, reverenciado por seu guru MHS.

Apesar da estatura baixa e do corpo franzino, Franco nunca foi de levar desaforo para a casa. É um apaixonado pela escrita. Nos anos de 1988 e 1989, produziu com esmero reportagens especiais sobre a hiperinflação argentina no “Jornal do Brasil”. A hiper era o seu grande tema, que estudou como poucos. Tinha cabelos longos e barba espessa. Não deixou pedra sobre pedra. Na academia, jamais escondeu as suas críticas à politica econômica de Delfim Netto, que serviu aos governos Costa e Silva (1967-1969), Emilio Garrastazu Médici (1970-1974) e João Figueiredo (1979-1985), noves fora a intensa participação como uma espécie de assessor informal dos governos Lula 1 e Lula 2. Como se sabe, Delfim, em que pese à sua enorme competência como economista e grande mestre de gerações de profissionais, por vezes traiu a teoria, segundo Franco, para se firmar como um político. “A primeira missão de um ministro é continuar a ser ministro”, afirmava Delfim, segundo me disse Dionísio Carneiro, professor de Franco na PUC-Rio e assessor de Simonsen na Fazenda, Governo Geisel (1974-1979), além de mestre na prestigiada EPGE da vetusta FGV, início dos anos 1970.

Franco recusou um emprego rentável no BNDES para se dedicar a uma rigorosa formação acadêmica em Harvard, EUA. Volta ao Brasil equipado e suficientemente tarimbado para enfrentar, anos mais tarde, as agruras do governo Itamar Franco com inflação galopante. É dele a redação da legislação que deu origem à Unidade Real de Valor (URV), que, justiça seja feita, se baseava no conceito de uma moeda virtual tal como sistematizara a dupla Persio Arida/André Lara Resende, início dos anos 1980. Franco me disse que só foi entender a verdadeira dimensão da URV em uma viagem à sua cidade natal. Na sala com vista panorâmica para a Baía de Guanabara, saíra eufórico depois de um colóquio com Bulhões Pedreira, que trajava um terno claro e uma gravata Hèrmes: “Moeda com curso legal sem poder liberatório”. Estas sete palavras, resumidas pelo esteta do moderno direito tributário e societário, deu a certeza absoluta de que a conversão da URV para o real seria um sucesso de bilheteria. O resto da história é sobejamente conhecido do público: o Plano Real leva o candidato Fernando Henrique Cardoso a vencer com folga Lula no primeiro turno nas eleições presidenciais de 1994. Era o ponto final na super inflação.

Tempos depois, o mesmo empolgado Gustavo Franco, o baixinho que não leva desaforo, rompe com o tucanato diante de denúncias graves contra os grandes políticos do PSDB, com as exceções de um Tasso Jereissati, incansável senador a favor do Estado equilibrado e moderno.

Curiosamente, o ministro Paulo Guedes, que jamais poupou críticas à Economia da PUC-Rio, reconheceu em Franco as qualidades de um liberal verdadeiro e não de um oportunista de plantão (esqueçam os nomes, cara leitora e caro leitor). Por algumas semanas, Gustavo foi cogitado para ser o chairman do BNDES, mas os possíveis conflitos de interesse com os seus negócios privados, bem sucedidos, diga-se de passagem, o fizeram desistir da missão. Ponto para ele e para o ministro. Nem todos no Conselho de Administração tiveram a mesma dignidade. Não vamos falar de nomes.

O presidente do Banco Central no primeiro governo FHC mantém a sua coerência com o pensamento liberal sem cair na armadilha irresponsável, de ignorar políticas públicas relevantes para a proteção dos mais pobres. Da mesma forma, não tece elogios chapa branca ao governo Bolsonaro, irresponsável seja na área da saúde seja na de meio ambiente, para não falar das verdadeiras liberdades, que são tão caras a quem sempre combateu o centralismo e a autocracia do regime militar, como Franco.

Na sua importante obra acadêmica e nos mergulhos no pensamento de Fernando Pessoa, Machado de Assis e de Shakespeare – sempre tratando de economia – o melhor de Gustavo Franco está nas pílulas contidas na “Antologia da Maldade”, em co-autoria com Fabio Giambiagi. Há boas doses de um bom veneno, do sarcasmo na medida certa.

Vamos a uma seleta de frases famosas para a humanidade:

“A estabilização econômica é obviamente importante demais para ser deixada nas mãos dos economistas.” Alan Blinder (1945-) e Robert Slow (1924-), economistas americanos em 1974;

“A guerra é um assunto sério demais para se deixar unicamente nas mãos de militares.” Georges Clemenceau (1841-1929), ex-primeiro ministro da França;

“Política é uma coisa muito séria para ser deixada nas mãos de políticos.” Charles De Gaulle (1890-1970), ex-presidente da França.

E, certamente, assinaria embaixo essas frases do decálogo decantado por Roberto Campos naquela longínqua sexta-feira de um outono agradável, em 1997, no Rio:

“Os nacionalistas gastam tanto tempo odiando os outros países que não têm tempo para amar o seu próprio país”;

“O erro dos militares foi não terem feito a abertura econômica antes da abertura política; o erro dos civis foi depois da abertura política fazerem a chamada fechadura econômica”;

“Os que creem que a culpa dos nossos males está nas estrelas e não em nós mesmos ficam perdidos quando as nuvens encobrem o céu.”

Gustavo Franco está muito longe dos 80 anos, mas certamente lembra do velho pai, a quem conduzia com carinho na cadeira de rodas na sede da sua então Rio Bravo, no Centro do Rio, também assinaria esta boutade do adorável Bob Fields, no discurso na festa no Copacabana Palace:

“O Bulhões Pedreira sugeriu, a princípio, uma festa apenas para os amigos, o pessoal que criou o BNDES, a turma do governo JK (Juscelino Kubitschek). A idade mínima da festa seria 70 anos. A festa seria chamada de PVC – a Porcaria da Velhice Chegou.”

Detalhe: depois do velho Guilherme chegar na sala, Franco abria um sorriso e dizia como quem volta no tempo: “Juízo, pai”. Guilherme devolvia o sorriso, lembrando do menino travesso no casarão da Urca, bairro da Zona Sul carioca.