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segunda-feira, 28 de dezembro de 2020

Introduction à l’étude des relations internationales du Brésil (1994) - Paulo Roberto De Almeida

 Introduction à l’étude des relations internationales du Brésil

Paulo Roberto de Almeida

Docteur ès Sciences Sociales de l’Université de Bruxelles.

Ex-Professeur à l’Institut Rio Branco du Ministère des

Relations Extérieures et à l’Université de Brasília.

Conseiller, chargé des Affaires Économiques,

à l’Ambassade du Brésil à Paris.

[Paris: 05/03/1994; n. 409]

Postado na página pessoal de Academia.edu (28/12/2020; link: https://www.academia.edu/44784099/409_Introduction_a_letude_des_relations_internationales_du_Bresil_1994_).

 


Sommaire général:

1. Nature du Problème et État de la Recherche

2. Périodicité Historique et Caractérisation Générale

3. Synthèse du Développement depuis l’Ère Coloniale

 

Le présent texte a été conçu en tant que support à des conférences données dans le cours “Méthodes et Problématiques de l’Histoire Moderne et Contemporaine”, dans le cadre de la Formation de D.E.A. en Histoire Moderne et Contemporaine de l’Institut d’Histoire de l’Université de Paris-Sorbonne (Paris IV), les 9, 23 et 30 mars 1994. Les opinions et les arguments ici développés ne représentent pas, en tout ou en partie, des positions officielles du Ministère des Relations Extérieures ou du Gouvernement du Brésil et n’engagent, bien évidemment, que son auteur. 

 

Ler a íntegra neste link: 

https://www.academia.edu/44784099/409_Introduction_a_letude_des_relations_internationales_du_Bresil_1994_


domingo, 27 de dezembro de 2020

O Brasil e a China: a cooperação em ciência e tecnologia em perspectiva histórica (1994) - Paulo Roberto de Almeida

 O  BRASIL  E  A  CHINA :

A COOPERAÇÃO EM CIENCIA E TECNOLOGIA

EM PERSPECTIVA HISTÓRICA

 

Paulo Roberto de Almeida

 

394. “O Brasil e a China: a Cooperação em Ciência e Tecnologia em Perspectiva Histórica”, Paris, 10 fevereiro 1994, 11 pp. Revisão da contribuição elaborada em Genebra, em 26/06/88, para servir como subsídio a pronunciamento do Presidente José Sarney em viagem à China (Trabalho n° 162). Publicado na Revista de estudos Afro-Asiáticos (Rio de Janeiro: Universidade Candido Mendes, Centro de Estudos Afro-asiáticos, n° 26, setembro de 1994, pp.149-158). Relação de Publicados n° 165.

 

 

Tornou-se um lugar comum, hoje, em dia, afirmar o primado da ciência e da tecnologia enquanto fatores de produção: elas seriam tão ou mais importantes, no processo produtivo contemporâneo, quanto os recursos naturais, os equipamentos industriais ou a própria mão-de-obra. Já se disse que o cenário emergente do século XXI será marcado não necessariamente por uma divisão entre ricos e pobres, mas entre os que dominam o conhecimento especializado e aqueles que não o dominam. O saber, não o ter, será o critério distintivo das sociedades no próximo milênio.

A ciência e a tecnologia são importantes não apenas ao nível das políticas nacionais de desenvolvimento, mas igualmente e sobretudo enquanto elementos de primeiro plano na trama atual das relações internacionais. É sob o marco dessas alavancas essenciais ao desenvolvimento do Brasil e da China e é sobre a base desses dois elementos chaves ao progresso econômico e social de seus povos respectivos que deve assentar-se uma fração significativa do relacionamento bilateral entre os dois países nos próximos anos.

A China e o Brasil são seguramente países muito diferentes, hoje, do que eram num passado ainda recente. A produção agrícola e industrial, em que pese a diferença de estruturas econômicas, conheceu saltos fantásticos em ambos os países, as fontes de energia continuaram a se desenvolver, novos meios de transportes integram hoje regiões antes isoladas, sistemas modernos de comunicações passaram a alcançar comunidades distantes e os benefícios da saúde e da educação puderam ser estendidos a um número maior de pessoas. A despeito da forte expansão demográfica experimentada pelos dois países nos últimos vinte anos, o Produto Bruto por habitante cresceu praticamente 300% desde a década dos sessenta. Estas realizações são ainda mais admiráveis em países de dimensões continentais como o Brasil e China, onde as diversidades regionais são por vezes tão marcadas quanto as diferenças climáticas.

O desenvolvimento não é, entretanto, uma estrada uniforme ou desprovida de obstáculos. A experiência histórica de muitos países em desenvolvimento, nas últimas décadas, tem demonstrado que, apesar da aceleração do crescimento e dos inegáveis avanços na construção da base industrial, tende a persistir uma certa coexistência de métodos diversos de produção e de distribuição, assim como diferenças técnicas por vezes surpreendentes na forma do homem se relacionar com o meio natural. Mesmo nações de relativo avanço industrial como o Brasil e a China vêm conviver, lado a lado, a energia nuclear e o carro de bois, o satélite de comunicações e o fogão a lenha. 

Somos, assim, levados a constatar que altas taxas de crescimento econômico ou a rápida mutação na base produtiva material não são suficientes para garantir a transformação equilibrada de todos os setores da sociedade. O processo de desenvolvimento é, por sua própria natureza, desigual, trazendo soluções inovadoras a velhos problemas, mas introduzindo ao mesmo tempo novas dificuldades sem fornecer respostas suscetíveis de serem implementadas no curto prazo. Enquanto ele aproxima o computador de populações semialfabetizadas e a linguagem informatizada da cultura oral, o desenvolvimento gera, de contínuo, novas desigualdades econômicas e sociais.

Mas, os países em desenvolvimento não podem esperar pela homogeneização completa de suas estruturas sociais para enfrentar o grande desafio do progresso científico e tecnológico. Num mundo interdependente, cada vez mais dominado por fluxos transnacionais de comércio de bens e de serviços, os esforços nacionais de desenvolvimento devem ser levados a cabo simultaneamente em todas as frentes, se não quisermos que a distância entre nossos países e aqueles mais avançados continue a se aprofundar.

Não se conhecem receitas simples para o desenvolvimento e não existem atalhos fáceis no caminho que deve conduzir à plenitude da moderna sociedade industrial. Mesmo supondo-se a possibilidade de ser encontrada uma fórmula supostamente salvadora, é altamente duvidoso que se consiga transplantar experiências bem sucedidas num determinado contexto, como o da Europa e dos Estados Unidos, por exemplo, para outros povos e outras culturas tão diferentes como o Brasil e a China. 

A despeito da distância cultural entre seus povos respectivos, das experiências históricas diversas dos dois países ou das diferenças existentes entre seus respectivos sistemas econômicos e políticos, o Brasil e a China partilham da vontade comum de avançar o mais rapidamente possível em direção ao século XXI. Um mesmo elemento será instrumental nessa grande tarefa do desenvolvimento, qualquer que seja o caminho escolhido em cada país: trata-se do caráter universal da ciência e da tecnologia.

 

A China, país de velha civilização e de cultura milenar, já brindou a Humanidade com um número significativo de descobertas e invenções. A fascinação exercida no Ocidente medieval e renascentista pela China imperial não era devida apenas às fabulosas riquezas de Cathai, que sempre atraíram mercadores corajosos e aventureiros intrépidos, mas resultava igualmente de procedimentos técnicos extraordinários e produtos misteriosos que encantavam povos europeus ainda rudes e tecnologicamente pouco desenvolvidos. 

Não há exagero em afirmar-se que a China foi, durante muito tempo, uma espécie de paradigma da inventividade humana e, até o século XV pelo menos, ela demonstrou ser muito mais eficiente do que as sociedades europeias na aplicação do conhecimento do meio ambiente às necessidades práticas do homem.

Foi do Império do Meio que a Europa medieval herdou uma grande parte de seus conhecimentos e técnicas científicas: as três maiores inovações dos primórdios da era moderna - a bússola, a pólvora e a imprensa - são originárias da China. Assimiladas, no momento oportuno, por outros povos em terras distantes, algumas dessas contribuições chinesas ao patrimônio comum da Humanidade permitiram, por exemplo, que regiões antes desconhecidas fossem incorporadas ao arco civilizacional então existente, como aliás é o caso do próprio Brasil e do Novo Mundo em geral. 

A ciência moderna, isto é a bagagem de conhecimentos acumulada pelo Homem sobre a vida e os processos naturais desde o século XVI pelo menos, deve muito à admirável história da ciência e da tecnologia chinesas. O Ocidente retribuiria em parte o legado herdado da China, notadamente através dessa figura extraordinária que foi o jesuíta italiano Mateo Ricci que, autorizado a instalar-se na corte imperial em 1601, ensinou aos letrados chineses os fundamentos do método experimental. Ricci deu cursos de matemática e de astronomia, traduziu em chinês os Elementos de Euclides, ajudou a reformar o calendário e transmitiu a então nascente tecnologia ocidental: fundição de canhões, relógios solares, mapas geográficos, etc. Estava lançada a cooperação científica entre sistemas sociais diferentes. 

 

Seria um erro pretender separar a produção científica das condições sociais que presidem à sua elaboração. As descobertas e inovações técnicas introduzidas numa determinada sociedade, em certas etapas de seu desenvolvimento histórico, não são apenas o resultado do trabalho de homens geniais ou de sábios isolados em seus laboratórios. Elas são, antes de mais nada, o produto e a expressão de uma cultura e de uma sociedade e não deixam de refletir um sistema de valores inserido num processo social que favorece o espírito inventivo e o esforço criativo. 

O desenvolvimento econômico e tecnológico de uma dada sociedade não pode assim exercer-se num vácuo social. Ele depende de fatores sociais, culturais, institucionais, econômicos e propriamente científicos. Estes últimos estão intimamente ligados a uma correta política de formação profissional, tanto ao nível da educação de massa como no do aperfeiçoamento técnico sistemático em níveis mais avançados de graduação. A política de educação desempenha, portanto, o papel verdadeiramente estratégico nos programas de desenvolvimento nacional. O Brasil e a China desenvolvem esforços extraordinários nesse sentido, mas deve-se reconhecer que ainda resta um longo caminho a percorrer.

Se os países da Europa ocidental puderam exercer, durante os últimos quatro séculos e até uma data ainda recente, uma hegemonia incontestável sobre as demais regiões do planeta foi porque eles conseguiram estabelecer um verdadeiro "sistema de crescimento" sustentado por um constante processo de inovação, seja no que concerne os meios de produção, seja na confecção dos instrumentos propriamente militares de dominação. 

Esse modo inventivo de produção, que permitiu o desencadear da Revolução Industrial e das revoluções científicas que lhe são associadas, só se tornou possível a partir de uma sólida base de conhecimentos técnicos difundidos em círculos cada vez mais amplos da população. O triunfo histórico do que se convencionou chamar de "racionalismo ocidental" pode ser em grande parte atribuído à notável expansão das oportunidades educacionais permitida pela consolidação dos Estados nacionais nos séculos XVII e XVIII. E foi a racionalidade científica que permitiu o dinamismo social, a competitividade econômica, a eficiência industrial, a performance militar, a dominação política, enfim, das potências ocidentais.

O sucesso histórico do modelo econômico ocidental já foi explicado pela dominação externa de outros povos e sociedades, seguida da consequente extração de seus recursos produtivos. Mas, se esquece muitas vezes de dizer que nenhum poder imperial se sustenta sem uma adequada base econômica de natureza propriamente interna, isto é, sem a manutenção de taxas relativamente elevadas e constantes de produtividade. Assim, ao lado dos fatores específicos ligados à organização social do trabalho nesse sistema produtivo, é preciso mencionar a difusão de um conhecimento técnico de base, largamente facilitada pela ampliação da rede escolar nas diversas sociedades que se modernizaram nesse período. Por outro lado, nenhum outro processo social foi tão responsável pelo desenvolvimento contínuo das forças produtivas nessas sociedades como a disseminação da inovação técnica ao nível das unidades de produção. 

Finalmente, a afirmação e o sucesso continuado desse modo inventivo de produção só se tornaram possível graças à institucionalização da pesquisa técnico-científica, não mais em escala apenas industrial, mas já no âmbito dos laboratórios especializados. Hoje em dia, o sistema industrial passou a depender, cada vez mais, de uma infraestrutura de conhecimentos e de procedimentos técnicos especializados que estão estreitamente ligados ao progresso da ciência experimental, sob a forma de pesquisa e desenvolvimento. A interação entre o sistema produtivo e o complexo científico-tecnológico nos países desenvolvidos alcança hoje todos os ramos do conhecimento humano e seus efeitos se estendem igualmente a todas as esferas da atividade econômica.

Os países que, como a China e o Brasil, aspiram oferecer a suas populações todos os benefícios do sistema industrial moderno, inclusive participando do comércio mundial de bens e serviços, devem igualmente dominar todas as etapas do processo de elaboração do conhecimento técnico-científico. O progresso tecnológico não pode ser simplesmente importado: ou ele permeia todas as fases da formação dos recursos humanos num determinado país, ou ele será sempre uma cópia servil de produtos estrangeiros sem estender-se ao próprio processo de produção.

 

O processo histórico da industrialização tradicional, até meados deste século pelo menos, demonstrou que a difusão internacional da tecnologia disponível atuou como importante fator de recuperação para as sociedades que chegaram tardiamente à etapa da modernização. A vantagem comparativa de muitas dessas experiências nacionais de industrialização tardia constituiu-se justamente na possibilidade de beneficiar-se dos exemplos e dos conhecimentos produzidos pelos pioneiros para o estabelecimento de sistemas produtivos mais modernos e mais eficientes. Tal foi o caso, entre outros, da Alemanha, dos Estados Unidos e do Japão, desde o último quartel do século passado, e tal parece ser o itinerário, hoje, dos assim chamados "novos países industriais". Tudo indicaria que outras sociedades poderiam também reproduzir a experiência desses antecessores, à condição evidentemente de dispor dos recursos materiais e humanos e dos fatores sociais e institucionais para sustentar o esforço industrializador.

Apesar que o mundo, hoje, se tenha tornado ainda mais interdependente do que há um século, com o incremento do intercâmbio global e a interpenetração dos mercados, a repetição das performances dos atuais países avançados tende contudo a ficar mais difícil para países como os nossos e pode ser mesmo inconcebível para a grande maioria dos atuais países em desenvolvimento.

Duas razões explicam a descontinuidade histórica no processo de recuperação tecnológica e sua possível não operabilidade atual para muitos países de desenvolvimento relativamente tardio: a complexidade intrínseca das novas tecnologias e a tendência a cercear a difusão do conhecimento tecnológico. Tratemos mais detidamente dessas duas questões. 

 

Até finais do século passado, as grandes inovações técnicas da revolução industrial podiam ser consideradas como fazendo parte de um estoque comum de conhecimentos colocado à disposição dos países engajados na corrida da industrialização. A incorporação dessas tecnologias ao sistema produtivo industrial não dependia, ou pelo menos não tanto como atualmente, de um pessoal altamente qualificado dedicado integralmente a atividades de pesquisa e desenvolvimento ao nível de laboratórios. Mesmo o volume de recursos financeiros e de meios materiais para a implementação das inovações técnicas não significava uma barreira intransponível para a maior parte dos países integrados ao sistema econômico mundial. 

Esse antigo modelo de desenvolvimento industrial estava associado a uma fase ainda elementar da relação entre o homem e o mundo natural: tratava-se da transformação de elementos materiais existentes através da utilização da energia em suas diversas formas: a energia térmica, os combustíveis fósseis, a eletricidade.

A atual etapa de desenvolvimento industrial, ao contrário, dá uma maior importância à produção e à manipulação da informação, atribuindo menor peso relativo à energia e à matéria. O novo sistema industrial se baseia no desenvolvimento de forças produtivas cada vez mais exigentes em elementos imateriais e crescentemente poupadores de matérias brutas e energia. 

O próprio surgimento da energia nuclear - antes mesmo da atual revolução da informação - significou uma transformação fundamental da relação entre as sociedades e o conhecimento tecnológico. A capacidade científica e técnica associada à possibilidade de utilização da energia nuclear (necessariamente concentrada em reduzido número de países) representou, na verdade, o estabelecimento de uma nova relação de forças entre as nações, muito mais do que a pólvora o havia feito nos albores da era moderna. Os países pioneiros na tecnologia nuclear pretenderam mesmo congelar em seu exclusivo benefício a relação de forças então criada, situação evidentemente inaceitável para países como os nossos que não pretendem fechar-se a nenhuma das conquistas da civilização moderna.

Seja no setor nuclear, seja no das tecnologias de ponta, as inovações tendem a surgir como resultado de enormes investimentos em pesquisa e desenvolvimento. A intensificação crescente da utilização de capital na pesquisa científica operacional parece ser uma característica permanente do atual modelo de industrialização e de desenvolvimento econômico. A desigualdade assim introduzida, em escala mundial, entre os países que podem permitir-se desenvolver pesquisa científica e explorar industrialmente os sistemas técnicos dela derivados e os demais países, designados como meros usuários dessas novas tecnologias, pode significar o surgimento de uma nova espécie de dominação, menos brutal talvez do que a antiga forma de exploração colonial direta, mas provavelmente mais insidiosa e aguda.

A intensidade tecnológica das indústrias de ponta, bem como o enorme volume de recursos financeiros que elas supõem, parecem pois atuar como uma barreira à difusão universal das novas tecnologias e sua extensão a países relativamente carentes em capital e em recursos humanos. Mesmo alguns países desenvolvidos, mas de menor porte relativo, tem por vezes dificuldades em encontrar fontes adequadas de financiamento para a pesquisa e desenvolvimento nesses novos campos. Daí a associação e a cooperação em projetos de pesquisa entre diversos países, como é o caso dos programas Eureka e Esprit ao nível da Comunidade Econômica Europeia. 

 

Os países em desenvolvimento que, como o Brasil e a China, pretendem dominar todos os aspectos da produção e utilização das novas tecnologias são assim obrigados a operar uma igualmente formidável concentração de recursos em pesquisa e desenvolvimento. As limitações financeiras e de capital humano que ainda marcam o esforço industrializador nesses países parecem impor, quase que naturalmente, a necessidade de cooperação científica e tecnológica e a busca de associações privilegiadas mobilizando as melhores capacidades técnicas de cada país em setores selecionados de pesquisa e desenvolvimento. 

A complexidade dos sistemas técnicos contemporâneos tornou a inovação uma tarefa essencialmente coletiva. O inventor isolado, se ainda existe, está cada vez mais raramente associado à novas fronteiras do conhecimento humano. Contrariamente à utilização da energia para a transformação da matéria, como se fazia nas fases anteriores da revolução industrial, a elaboração, a transferência, o tratamento e utilização da informação, que passaram a caracterizar o cenário tecnológico deste final de século, superam as possibilidades do pesquisador isolado. Mais ainda, a pesquisa científica e a inovação técnica tornaram-se tão solidárias uma da outra que as antigas distinções entre pesquisa fundamental e pesquisa operacional tendem a diluir-se. A evolução tecnológica depende tanto do laboratório como da fábrica, da universidade como da empresa, dos cientistas e administradores individuais como do Estado. O reconhecimento dessa simbiose torna assim ainda mais imperativa a necessidade de cooperação entre países que partilham da mesma preocupação quanto aos rumos do desenvolvimento tecnológico futuro da Humanidade.

 

Que dizer, por outro lado, do caráter universal da ciência e da tecnologia, dessa capacidade da racionalidade científica de romper as barreiras linguísticas e as fronteiras políticas dos Estados soberanos ? 

Os pesquisadores engajados na produção de ciência e na sua aplicação aos problemas práticos enfrentados pelas sociedades sempre se identificaram como pertencentes a uma mesma comunidade de interesses, dotada fundamentalmente de uma mesma visão do mundo no que se refere ao objeto de seus esforços: o intercâmbio dos resultados respectivos das pesquisas engajadas como forma de melhor servir à causa do progresso e do desenvolvimento dos povos. O próprio trabalho científico foi sempre concebido como independente de opções políticas ou de preocupações econômicas, voltado primordialmente para as necessidades da Humanidade como um todo.

Cabe no entanto interrogar-se sobre a significação dessa “universalização da ciência” em face da estrutura atual da pesquisa científica em nível mundial e das tendências visíveis quanto à possibilidade de difusão irrestrita dos conhecimentos produzidos pelos cientistas. Essa questão está evidentemente ligada ao segundo fator identificado como um dos obstáculos atuais à recuperação do atraso tecnológico motivado por processos industrializadores relativamente tardios: a restrição que se manifesta em alguns círculos à difusão dos conhecimentos elaborados nos laboratórios financiados pelo setor público. Em outros termos, pretende-se que o universal deixe de ser universal.

Tradicionalmente, a cooperação nos meios científicos se faz não apenas através do intercâmbio de informações durante colóquios e seminários e da divulgação das pesquisas em periódicos e publicações especializadas, mas também por meio do acesso dos cientistas aos laboratórios de seus colegas, sobretudo aqueles dos centros mais avançados. O desenvolvimento extraordinário da informática e da telemática, por outro lado, significa que um número cada vez maior de cientistas trabalhando nos lugares mais distantes do planeta poderia, em princípio, passar a ter acesso imediato ao estoque mundial de conhecimentos científicos. Estaríamos, assim, no limiar de uma verdadeira revolução cultural, desta vez reproduzindo em escala planetária o fenômeno de expansão cultural que a difusão da imprensa representou para a Europa do século XV.

Entretanto, não é isso que está ocorrendo a nível mundial. Atualmente, as restrições de natureza política ou ideológica já observadas no passado tendem a ser reforçadas, quando não superadas, por considerações de natureza econômica ou comercial. Não se deve por certo esquecer que a pesquisa científica e tecnológica apresenta custos cada vez mais elevados e que os resultados obtidos constituem, em alguns casos, "bens econômicos" dotados de valor de mercado. Mas, o cerceamento exagerado dos fluxos de informação científica pode agir em detrimento das próprias políticas nacionais de desenvolvimento tecnológico, já que a restrição ao intercâmbio transfronteiriço de dados tende a diminuir os insumos colocados à disposição dos pesquisadores.

 

Esse fenômeno é ainda agravado pela nova orientação, de caráter igualmente restritivo, que se pretende imprimir à proteção da propriedade intelectual, já objeto de difíceis negociações nos organismos internacionais com sede em Genebra. A legítima proteção que passa a ser concedida aos novos campos do conhecimento humano - na informática ou na biotecnologia, entre outros exemplos - deveria normalmente ter como contrapartida o estabelecimento de um necessário equilíbrio entre os direitos dos detentores das invenções e seus deveres para com a sociedade que lhes confere o monopólio de exploração sobre os produtos e processos por eles criados. Não é contudo a opinião de alguns representantes dos setores engajados comercialmente nas pesquisas ligadas aos novos campos: avançando o argumento da “confidencialidade” da inovação tecnológica, eles não pretendem compensar a concessão de direitos exclusivos de utilização com a indispensável divulgação do conhecimento produzido. O que se busca, na verdade, é legitimar no plano multilateral o princípio do “segredo comercial”, como se este conceito devesse necessariamente passar do plano das relações contratuais entre empresas privadas ao nível das relações entre Estados. 

Uma parte significativa da pesquisa e desenvolvimento no campo das novas tecnologias - pelo menos aquela que apresenta incidência direta para os sistemas produtivos - é hoje conduzida pelas grandes empresas transnacionais, que também são responsáveis pela chamada transferência de tecnologia para os países em desenvolvimento. Essa transferência não se dá no entanto diretamente, como o conceito poderia deixar supor, mas preferencialmente numa relação de matriz a filial, que nada mais constitui senão um fluxo interno à própria empresa. Os países em desenvolvimento recebem assim produtos e processos cujos custos já estão em grande parte amortizados, sem beneficiar-se do acesso ao know-how que lhes permitiria uma produção autônoma. Em outros termos, há mais transporte do que transferência de tecnologia.

A eventual instalação de laboratórios das empresas transnacionais em países em desenvolvimento não está dirigida para a pesquisa nos setores tecnológicos mais avançados, mas destina-se fundamentalmente a adaptar e explorar nos mercados locais setores de baixa ou média intensidade tecnológica. A produção local de bens de alta tecnologia, quando ocorre, visa a beneficiar-se de menores custos relativos, em materiais ou mão-de-obra, tendência já algo em recuo dada a automação crescente das unidades de produção nos países mais desenvolvidos. 

O fato, assim, de aceitar novas regras de proteção à propriedade intelectual - na verdade, a extensão dos monopólios de importação e exploração local sem a contrapartida da divulgação - pode resultar no congelamento de uma relação de forças já bastante desigual para os países em desenvolvimento. Países que, como o Brasil e a China, possuem a capacidade de digerir, reproduzir e transformar tecnologia estrangeira, podem ver restringidas as possibilidades de um desenvolvimento científico autônomo, consolidando-se uma nova divisão internacional do trabalho que não atende a seus mais legítimos interesses nacionais. O dever de conceder proteção adequada a técnicas e procedimentos inéditos de fabricação não pode ser dissociado do direito de utilizar os conhecimentos que eles pressupõem em benefício da sociedade como um todo.

Como já se disse tantas vezes, as leis que presidem à elaboração da ciência são universais, como é universal o próprio conhecimento científico. Mas, não são universais todas as outras condições que servem à elaboração ou tornam operacional o conhecimento científico: pessoal qualificado, instituições de pesquisa, laboratórios, universidades, registro e circulação da informação científica. Esses elementos têm necessariamente de fazer parte do patrimônio de um país se este pretende aceder às etapas mais avançadas dessa informação. 

O Brasil e a China, por características próprias em termos de espaço, recursos naturais e população, são países em desenvolvimento que dispõem como poucos da capacidade de dominar uma vasta gama de elementos do sistema técnico contemporâneo. Os dois países já se lançaram à conquista dos setores estratégicos de alta tecnologia: energia nuclear, foguetes e vetores de lançamento, indústria aeronáutica, telecomunicações, biotecnologia, microeletrônica e outros mais. Os obstáculos ao domínio completo desses sistemas não são todos de natureza técnica, mas derivam, entre outros motivos, da insuficiência dos recursos disponíveis, inclusive em termos humanos, e dos limites impostos à transmissão do conhecimento científico. A cooperação científica entre o Brasil e a China deverá contribuir para superar alguns desses obstáculos. 

 

 

[1a. versão: Genebra, 96: 26/06/88] 

[revisão: Paris, 394: 10.04.94]

[2a.revisão: 05.06.94]

Resumo do texto sobre

O  BRASIL  E  A  CHINA

Paulo Roberto de Almeida

 

Quais as possibilidades e condicionamentos da cooperação entre o Brasil e a China no terreno da ciência e da tecnologia ? Quais as bases de uma política nacional de desenvolvimento nessa área ? Quais são as raízes da preeminência ocidental nesse setor ? O meio ambiente internacional é favorável à transferência de tecnologia ou o desenvolvimento tecnológico deve assentar, prioritariamente, em bases autônomas, notadamente a formação de recursos humanos ? 

O texto discute esses diferentes problemas a partir de uma digressão histórica sobre a natureza do desenvolvimento e os requisitos sociais do progresso tecnológico, registrando em primeiro lugar as contribuições da China para o progresso científico da Humanidade e analisando em seguida as razões do domínio ocidental a partir da Renascença. O Ocidente foi capaz de estabelecer e manter um “modo inventivo” de produção, cujas bases fundamentais são dadas pela disseminação do progresso técnico e a incorporação da ciência básica pela indústria. 

O desenvolvimento econômico e tecnológico depende de fatores sociais, culturais, institucionais, econômicos e propriamente científicos que estão intimamente ligados a uma correta política de formação profissional, tanto ao nível da educação de massa como no do aperfeiçoamento técnico sistemático em níveis mais avançados de graduação. A política de educação desempenha o papel verdadeiramente estratégico nos programas de desenvolvimento nacional. O Brasil e a China realizam grandes esforços nesse sentido, mas muito ainda resta por fazer, sobretudo levando-se em conta as atuais restrições à difusão irrestrita da ciência e tecnologia e as novas orientações que se desenham no campo da proteção à propriedade intelectual. 

 

[PRA, Paris: 05.06.94]


O Itamaraty rebaixado pelo bando de aloprados: reconstruiremos a política externa e a diplomacia - Paulo Roberto de Almeida

 Desde quando começou a EA no Brasil – a Era dos Absurdos, mas que também é a Era das Aberrações coletivas, que no caso do Itamaraty pode ser chamada de Era das Alucinações exteriores –, tenho me colocado frontalmente contrário ao festival de besteiras que brota da mente deteriorada do "chefe" de governo, e também, com consequências vergonhosas para todos nós, diplomatas profissionais, da mente alucinada do chanceler acidental.


 Pouco depois de eu ter sido demitido do cargo de Diretor do Instituto de Pesquisas de Relações Internacionais, logo no começo do desgoverno bolsonarista, e de ter publicado um livro resumindo os anos finais da diplomacia lulopetista e a do governo de transição – Contra a Corrente: ensaios contrarianistas sobre as relações internacionais do Brasil, 2014-2018 (Appris, 2019) – comecei uma série de livros que não deveriam existir, não fossem os horrores perpetrados contra a política externa e a diplomacia do Brasil, que afundaram a imagem do Brasil na região e no mundo inteiro e destruiram a reputação de nossa diplomacia.

O primeiro da série foi este: Miséria da diplomacia: a destruição da inteligência no Itamaraty (edição de autor; junho de 2019), livremente disponível a partir de meu blog Diplomatizzando, o meu quilombo de resistência intelectual.

O segundo, vários meses depois (mas eu não estava planejando que fosse uma série; e ele só foi montado e publicado porque os atentados continuaram), foi um que deveria ter tido como título "Um ornitorrinco no Itamaraty", nome descartado (apesar de um capítulo nele existente) porque seria dar muita distinção a quem não merece nenhuma; ele acabou sendo chamado, com um significado muito claro, O Itamaraty num labirinto de sombras: ensaios de política externa e de diplomacia brasileira (também da minha "editora" Diplomatizzando; desta vez em formato Kindle).



O terceiro da série, desta vez com esse propósito, foi este aqui: Uma certa ideia do Itamaraty: a reconstrução da política externa e a restauração da diplomacia brasileira (nas mesmas bases editoriais do primeiro, em livre disponibilidade a partir de meu blog), cujo prólogo eu transcrevo mais abaixo 

Já terminei o quarto livro da série, com o título provisório de Apogeu e demolição da política externa brasileira: reflexões de um diplomata não convencional, ainda em revisão e preparação para publicação. Dele eu ofereço o sumário, abaixo do prefácio do terceiro livro, como informado (mas o link acima também remete a um prefácio provisório).

Sinceramente, eu espero que não tenho de haver um quinto livro desta miserável série, que não precisaria existir se os novos bárbaros não estivessem destruindo a política externa, a diplomacia e um pouco de todo o resto do Brasil. 


Prólogo ao livro Uma certa ideia do Itamaraty

 

Uma certa ideia do Itamaraty

 

À diferença de meus dois livros anteriores nesta área – Miséria da diplomacia: a destruição da inteligência no Itamaraty (2019; livremente disponível a partir do blog Diplomatizzando) e O Itamaraty num labirinto de sombras: ensaios de política externa e de diplomacia brasileira (2020; edição Kindle) –, esta nova obra se dedica não tanto a criticar o que existe atualmente, quanto a construir o que ainda não existe: um novo Itamaraty, uma nova política externa, uma nova postura do Brasil no cenário mundial, uma nova imagem para o país no contexto internacional. O que temos hoje não nos serve, não serve ao Brasil, não serve aos brasileiros, pelo menos aos que se preocupam com a nossa imagem externa, com a maneira pela qual o Brasil atual está sendo visto lá fora, mas aqui dentro também. 

Qualquer leitor bem informado, qualquer cidadão que acompanha regularmente a mídia nacional e internacional, qualquer pessoa conectada às redes de comunicação social já viu, já leu, já recebeu alguma notícia, artigo de opinião, vídeos, fotos, textos ou imagens, chamando a atenção para algo grave acontecendo no Brasil, em quaisquer áreas: número de mortos, pelo banditismo ou por excessos policiais, destruição ambiental, queimadas e desmatamento na Amazônia e no Pantanal, corrupção generalizada nas esferas públicas, enfim todo tipo de problema, acidentes e tragédias que invadem cotidianamente nossas folhas, revistas ou telas dos aparelhos conectados às emissoras de informações ou às redes de interações sociais.

Qualquer pessoa alfabetizada, medianamente informada, ou mesmo observadora superficial da realidade à sua volta pode rapidamente concluir que o Brasil atravessa atualmente uma das piores crises de sua história, e não só por causa da pandemia do Covid-19. A presente crise brasileira precede, na verdade, essa pandemia, que pode até ter agravado alguns de seus sintomas – como a absoluta falta de estratégia ou de meras linhas diretivas para a simples governança corrente –, mas esta não é sua principal causa, nem cessará caso a pandemia seja vencida (em algum momento do futuro).

A crise, de fato, é inerente ao presente governo e está inextricavelmente vinculada ao seu personagem central. Não hesito em classificá-lo como o pior governante do Brasil desde Tomé de Souza, o primeiro governador-geral da então colônia portuguesa, que aqui chegou em meados do século XVI. O cidadão que ocupa atualmente o maior cargo da República, um político medíocre durante suas três décadas de exercício parlamentar, é um notório despreparado, um inepto total em qualquer área da administração pública, um obsessivo desequilibrado, vivendo numa bolha doentia com seus filhos maiores, cercado por alguns áulicos fiéis, mas tão despreparados quanto ele próprio para as tarefas da governança, todos apenas inspirados pelos instintos primitivos que os animam.

Em resumo: toda a crise brasileira se resume no fato de o país estar sendo desgovernado — mas de forma ativa, arbitrária e atrabiliária — por um personagem afanosamente empenhado em consolidar um poder autocrático que ele se empenha em viabilizar pelos mais diversos meios. Durante algum momento se suspeitou que ele estivesse empenhado a criar as suas próprias milícias, os equivalentes de novos “camisas pardas”, que lhe seriam devotados com a ajuda de armas e pela mobilização de estratos mais baixos das forças de segurança. A força das instituições republicanas e a resistência de setores democráticos sustou, por um momento, tais projetos autoritários.

Tratava-se de um projeto precário de construção de um poder autocrático que não teria muita chance de prosperar, mas que ainda assim arrastou o país, durante várias semanas, para um ambiente de confrontação constante, mas que se prolonga por outros meios, e que impede uma gestão normal dos negócios públicos nas demais esferas da administração do Estado. O Brasil está sendo literalmente asfixiado por crises e mais crises, constantemente deslanchadas por esse personagem nefasto, que tem a seu serviço alguns dos piores auxiliares que já assumiram cargos em diversos ministérios setoriais. 

A nação está mais dividida do que jamais esteve em toda a sua história, e assim permanecerá enquanto esse personagem continuar ocupando o centro do poder. Líderes políticos e detentores de altos cargos nos principais escalões do Estado minimamente conscientes da realidade aqui descrita podem — ou pelo menos deveriam — chegar inevitavelmente à conclusão de que o país caminha para uma crise falimentar se tal situação perdurar: o país se apaga, para a nação e para o mundo, e seus filhos podem ser levados, como na canção famosa, a “errarem cegos pelo continente”. Eu não gostaria, de verdade, de ter de escrever um epitáfio para um país evanescente. Essa possibilidade está apenas sugerida, como possível próxima etapa do declínio da nação. 

O governo atual, a partir das suas muitas promessas da campanha eleitoral, é certamente excepcional, mas não apenas pelo que deixou de fazer, e sim, sobretudo, pelo que ativamente desfez, pelo que destruiu, sem colocar absolutamente nada no lugar. Uma confrontação entre o que foi prometido, na campanha eleitoral, e o que ocorreu depois, verdadeiramente, uma vez instalado o governo, surpreende pela amplitude, pela extensão do desmantelamento institucional. Na área econômica, as promessas foram grandiosas: privatização no valor de um trilhão de reais; fechamento de estatais inúteis; eliminação do déficit público; reformas da Previdência, tributária, laboral, educacional; diplomacia sem ideologia, comércio exterior idem; redução do Estado; diminuição do número de ministérios; mais Brasil e menos Brasília; defesa intransigente da soberania; nacionalismo; fim da velha política; bandido na cadeia e segurança nas ruas; luta contra a corrupção; retomada do crescimento; fim do desemprego; atração de investimentos; reconstrução do Mercosul; abertura econômica e liberalização comercial. 

Qualquer atento observador do cenário nacional pode constatar o que de fato foi realizado, e o que foi abandonado ou simplesmente revertido. Na área do meio ambiente, por exemplo, o quadro é devastador: destruição, pura e simples, um ativismo absolutamente excepcional e arrasador em todas as formas e estilos: nunca antes em nossa história se desmatou, se queimou, se depredou com tanta volúpia e satisfação, mata virgem e reservas indígenas, sem discriminação; a ordem é, literalmente, “passar a boiada”, ou seja, derrogar leis e normas em prol de uma insana destruição.

Mas isso não foi tudo. Em nenhuma outra área como na política externa e na da diplomacia, a destruição se exerceu contra a própria política, contra a própria instituição, com um requinte excepcional. Praticamente, todas as linhas mestras pelas quais se guiavam todas as políticas externas anteriores — e elas eram múltiplas e diferentes —, todas as tradições da antiga diplomacia foram sistemática e deliberadamente postas de lado e substituídas por uma assemblagem insossa e bizarra de ideias exóticas, sem qualquer correspondência com o mundo real ou com os interesses nacionais brasileiros.

Política externa sem ideologia? Acho que alguém se enganou de slogan. As únicas viagens e visitas foram com líderes de direita ou de extrema-direita. Não houve nenhuma defesa da independência nacional; ao contrário, o que se ouviu foi um sonoro “I love you Trump”. Soberania nacional? Mas por que o chanceler acidental viajou aos EUA para combinar com o Departamento de Estado os pontos do discurso do presidente na abertura dos debates na Assembleia Geral da ONU de 2019? Não intervenção nos assuntos internos de outros países? E a Venezuela? E as eleições argentinas? E o antiglobalismo ridículo? O anticlimatismo canhestro? A oposição vergonhosa a qualquer direito da mulher e das minorias nos foros pertinentes da ONU?

A nova agenda da Fundação Alexandre de Gusmão, o braço teoricamente intelectual do Itamaraty, limitou-se a convites aos representantes medíocres do olavismo extremado para falar sem qualquer competência sobre assuntos que ignoram, o que certamente deve angustiar os preparadíssimos estudantes do Instituto Rio Branco. A cessação de qualquer contato mais amplo com pesquisadores acadêmicos das área de relações internacionais, de história ou de ciência política revela uma introversão ressentida e um enclausuramento autocentrado jamais visto na história da Fundação.

A eliminação dos dois boletins diários de notícias — clippings da mídia nacional e da internacional — sobre os temas mais cruciais de trabalho dos diplomatas representa um censura criminosa em detrimento da disponibilidade e da qualidade da informação, o alimento diário de todos os servidores do Serviço Exterior. Aliás, o Itamaraty não tem mais porta-voz – nem a Presidência, por sinal –, não mantém diálogo regular com jornalistas, com correspondentes estrangeiros, não se abre a um debate não controlado com interlocutores dos mais diversos meios políticos e intelectuais. As ONGs são entidades mal encaradas, senão maléficas, do ponto de vista dos novos donos de poder. A censura se exerce sobre a informação, sobre os meios de informação, sobre as comunicações no sentido amplo.

A intimidação exercida contra todos aqueles que ousam dissentir das orientações esdrúxulas, a maior parte delas ridículas, quando não vergonhosas, constitui o elemento mais grave do atual processo de destruição do Itamaraty, cujas principais diretrizes de políticas são feitas fora da Casa, por amadores ineptos. O chanceler acidental é um elo secundário, provavelmente terceiro ou quarto, na cadeia decisória, e o menos importante de todos. Existem sobejas provas a esse respeito, a começar por certas notas formalmente emitidas pelo Itamaraty, mas que pelo Português estropiado, por certos conceitos bizarros e por lacunas inacreditáveis em sua substância – falta de referência a normas consagradas do direito internacional, por exemplo –, não podem ter sido elaboradas por diplomatas experientes, ou que, então, foram deformadas e estropiadas por amadores ignorantes. 

Esse último aspecto é suficientemente grave para que ele mereça uma ênfase adicional nesta avaliação crítica do que se refere, ainda, à mera processualística da cadeia decisória: várias tomadas de posição da diplomacia bolsolavista em assuntos relevantes do multilateralismo político — voto sobre sanções unilaterais na ONU, “plano de paz” de Trump para a Palestina, eliminação de um general iraniano no Iraque, mudança da embaixada para Jerusalém, entre vários outros — não exibem menção a elementos de direito internacional ou a resoluções do Conselho de Segurança das Nações Unidas que são implícitos a esses assuntos, objetos de relevante atenção da diplomacia brasileira em mais de meio século de uma cuidadosa construção das posturas brasileiras nos foros mais importantes abertos ao engenho e arte de nossos diplomatas profissionais, assim como ao escrutínio preliminar dos Consultores Jurídicos da Casa, e também por meio de um diálogo ponderado com outros governos, antes de qualquer tomada de posição sobre cada um deles. Como indicado acima, o fato de que algumas dessas tomadas de posição tenham sido apoiadas em mal traçadas “notas”, redigidas num Português tão canhestro e tão singularmente desprovido de conceitos próprios à diplomacia profissional, permite supor que elas foram mesmo fabricadas fora da Casa, pelos mesmos ineptos que estão destruindo uma diplomacia tida outrora como de excelente qualidade. Mas este é apenas o lado dos procedimentos próprios aos métodos de trabalho dos diplomatas brasileiros.

No terreno propriamente substantivo – no que concerne o comércio exterior, as relações políticas, diplomáticas e econômicas com os grandes parceiros do Brasil, a postura em relação a acordos já concluídos (no meio ambiente, por exemplo) ou em curso de tramitação, algumas decisões de grande impacto para o futuro tecnológico do país, as escolhas que vão determinar o perfil geográfico ou político da interface externa da nação –, algo semelhante pode estar acontecendo, com impacto potencial sobre milhões de dólares de intercâmbios externos, em dezenas de milhares de empregos, e não só no agronegócio, mas também no campo das associações tecnológicas e produtivas. 

A postura do chefe de Estado no campo do meio ambiente, secundada aliás pelo seu ministro da área e pelo próprio chanceler, pode estar criando as condições para um imenso boicote a produtos brasileiros no exterior, o que trará enormes prejuízos materiais a diversos setores da economia brasileira. Mas não só em relação ao meio ambiente: a insistência numa relação subordinada com o país que ainda representa uma das mais importantes interfaces externas do relacionamento nacional – mas que já perdeu há mais de dez anos o principal posto nas relações comerciais – pode redundar em mais perdas sensíveis para outras esferas da atividade econômica nacional. 

Tal aspecto tem causado preocupação entre esses setores, e talvez explique certa marginalização da diplomacia no tratamento de alguns itens da agenda externa, o que já ocorreu, por exemplo, no campo do meio ambiente. O Itamaraty como principal centro de formulação e implementação de políticas para o relacionamento externo do país pode estar deixando de ser operacional, pelo menos virtualmente. Na área dos acordos comerciais e de vários outros assuntos econômicos externos esse rebaixamento já é uma realidade, aliás praticamente desde o início da presente administração. Os diplomatas nunca tiveram o monopólio exclusivo das decisões no campo das relações comerciais bilaterais ou multilaterais – uma vez que vários aspectos, como tarifas, medidas de defesa ou normas setoriais estão afetos a outros ministérios –, mas eles detinham, pelo menos, um comando visível no campo do sistema multilateral de comércio, outra das vítimas da postura absurdamente “antiglobalista” da atual administração. Nessa, como em outras frentes de debate em temas da agenda multilateral, a excessiva aderência da diplomacia bolsolavista às posições dos Estados Unidos – antes, às do governo Trump – pode acarretar uma perda ainda maior de prestígio para nossa diplomacia profissional no plano externo, adicionalmente à imagem já desgastada em diversas outras áreas.

Todos esses tristes aspectos da atual política externa e de sua antidiplomacia confirmam que o trabalho de reconstrução do anterior edifício diplomático, dotado de real prestígio, será duro e longo, haja vista a total perda de credibilidade da imagem do Brasil no exterior. Isso já vinha ocorrendo bem antes e independentemente da postura lamentável assumida pelo país — na verdade pelo chefe de Estado — na luta contra a pandemia, que se faz à margem de, e até contrariamente a, qualquer esforço de coordenação multilateral, um anátema para os novos bárbaros que comandam o atual processo de destruição do Itamaraty e dos seus padrões consagrados de trabalho.

Esse trabalho de reflexão, em prol da reconstrução futura, já começou, inclusive com o envolvimento e participação de diplomatas da ativa, embora ele não possa ainda ser revelado em seus objetivos e extensão. No momento oportuno, os ineptos que infelicitam a diplomacia profissional e rebaixam a credibilidade do Brasil no exterior serão afastados, e o trabalho de reconstrução da política externa será conduzido de maneira mais afirmada. As bases desse trabalho são conhecidas de todos, no Brasil e no mundo. Elas emergirão mais cedo do que se pensa. 

Este novo livro pretende oferecer alguns modestos tijolos em prol deste empreendimento de reconstrução. Ele corresponde a uma certa ideia do Itamaraty, que não é exclusivamente minha, mas que é partilhada por uma grande maioria de meus colegas de carreira. As boas ideias, ou as simplesmente sensatas, acabam prevalecendo, mesmo depois de tortuosos e turbulentos caminhos equivocados: a sociedade brasileira já é suficientemente complexa e sofisticada para não deixar que amadores mal informados e despreparados sufoquem completamente uma das principais políticas públicas nacionais. Construiremos um novo Itamaraty. 

 

Paulo Roberto de Almeida

7 de setembro de 2020

 


 
Índice do livro Apogeu e demolição da política externa brasileira (capa provisória)

 

 

Prefácio:

Uma história sincera do Itamaraty?

 

1. Um novo animal na paisagem: o globalismo e os seus descontentes

1.1. Dos antiglobalizadores aos antiglobalistas?

1.2. À la recherche du globalisme perdu

1.3. Os nacionalismos canhestros: genitores do antiglobalismo

 

2. As relações internacionais do Brasil em perspectiva histórica

2.1. Padrões e tendências das relações internacionais do Brasil

2.2. Etapas das relações internacionais do Brasil

       2.2.1. O Império: a construção da nação e as bases da diplomacia

       2.2.2. A Velha República: os mitos e as deficiências da política externa

       2.2.3. A era Vargas: escolhas estratégicas, a despeito de tudo

       2.2.4. O regime militar: consolidação do corporatismo diplomático

2.3. A redemocratização e as relações exteriores do Brasil

       2.3.1. Uma periodização diplomática para o período contemporâneo

       2.3.2. A restauração constitucional e os erros econômicos

       2.3.3. Os anos turbulentos das revisões radicais do momento neoliberal

       2.3.4. Estabilização macroeconômica e nova presença internacional

       2.3.5. A primeira era do Nunca Antes: a diplomacia personalista de Lula

       2.3.6. Uma transição pouco convencional: retornando a padrões anteriores

       2.3.7. Uma segunda era do Nunca Antes: a diplomacia bizarra de Bolsonaro

2.4. O que concluir de tudo isto? Que lições ficam de nossa trajetória histórica?

2.5. Nota final: reformas internas e inserção na globalização

 

3. Processos decisórios na história da política externa brasileira

3.1. O que define um processo decisório: observações preliminares

3.2. A diplomacia brasileira como instituição

3.3. A estrutura orgânica da diplomacia brasileira

3.4. Os processos decisórios na diplomacia brasileira

3.5. Virtudes e defeitos do processo decisório na diplomacia lulopetista

3.6. A degradação da cadeia de decisão no governo Bolsonaro

3.7. Conclusões: como funciona, como talvez devesse funcionar...

 

4. A política da política externa: as várias diplomacias presidenciais

4.1. Participação dos presidentes em política externa: da omissão ao ativismo

4.2. O início da liderança presidencial em política externa: a era Vargas

4.3. JK e o desenvolvimentismo: a caminho da política externa independente

4.4. O regime militar: tudo pelo “Brasil Grande Potência”

4.5. Redemocratização: crise externa e integração regional

4.6. Os anos FHC: enfim, uma diplomacia presidencial

4.7. Os anos Lula: o ativismo como norma, o personalismo como finalidade

4.8. A tímida diplomacia presidencial de Michel Temer

4.9. A antidiplomacia de Bolsonaro e dos assessores aloprados: afundamento

4.9. Conclusões: caminhos erráticos da diplomacia presidencial brasileira

 

5. O outro lado da glória: o reverso da medalha da diplomacia brasileira

5.1. Tropeços na independência e durante o império

5.2. Os fracassos da primeira diplomacia republicana

5.3. A difícil construção de uma diplomacia autônoma, e consciente de sê-la

5.4. A diplomacia profissional, como base da diplomacia presidencial

5.5. A deformação da política externa sob a diplomacia bolsolavista

 

6. Relações com o Big Brother e os vizinhos regionais

Introdução: a importância da descontinuidade, em circunstâncias inéditas

6.1. A importância histórica das relações regionais e hemisféricas

6.2. Da aliança não escrita aos impasses políticos e econômicos

6.3. Bolsonaro e uma inédita relação de alinhamento sem barganha

6.4. A desintegração regional e o desalinhamento com os vizinhos 

6.5. Qual o futuro da integração, do Mercosul, da política externa brasileira?

 

7. Degradação democrática e demolição diplomática

7.1. O destino da nação: declínio ou renovação da democracia brasileira?

7.2. A História não se repete, nem mesmo como farsa

7.3. O que fazer na ausência de um estadista circunstancial?

7.4. Uma inédita ruptura nos padrões tradicionais da política externa 

7.5. O alinhamento automático ao presidente Trump: um escândalo temporário

7.6. A hostilidade em relação à China como critério da identidade comum

7.7. O isolamento na esfera internacional e no contexto regional

7.8. O caso da tecnologia 5G: prejuízos reais em qualquer hipótese

7.9. O caso da Amazônia: uma extraordinária vocação para o erro

7.10. A postura no caso da pandemia da COVID: negacionismo em toda a linha

7.11. Uma nova Idade das Trevas?

 

8. Um exercício de planejamento estratégico para a diplomacia 

Introdução: demolição e reconstrução da diplomacia brasileira

8.1. A política externa e a diplomacia no desenvolvimento nacional

8.1.1. Etapas percorridas em 200 anos de história institucional

8.1.2. Os desafios: uma matriz dos recursos e das debilidades nacionais

8.2. Campos de atuação da diplomacia e da política externa 

8.2.1. Multilateralismo, regionalismo e bilateralismo como instrumentos

8.2.2. A política externa multilateral: interfaces políticas e econômicas

8.2.3. A geografia política e a geoeconomia global das relações exteriores

8.2.4. América do Sul: eixo de um espaço econômico integrado

8.2.5. O multilateralismo econômico: eixo da inserção global do país

8.2.6. Ambientalismo e sustentabilidade: eixos dos padrões produtivos
8.2.7. Direitos humanos e democracia: eixos da proposta ética do país

8.2.8. Blocos e alianças estratégicas na matriz externa

8.2.9. Relações com parceiros bilaterais e regionais

8.2.10. Vantagens comparativas e exploração de novas possibilidades

8.2.11. Integração política externa e políticas de desenvolvimento

8.3. O Itamaraty como força motriz da inserção global do Brasil

8.3.1. Gestão da Casa, com base nas melhores práticas da governança

8.3.2. Responsabilização, abertura e transparência nas funções

8.3.3. Capital humano de alta qualidade: base de uma diplomacia eficaz

8.3.4. Planejamento estratégico como prática contínua da diplomacia 

 

Conclusões: 

Um governo dantesco e os desafios de uma diplomacia ideológica 

 

Bibliografia e referências

Nota sobre o autor

 

Aguardem a publicação deste livro: sempre podem aparecer surpresas...