O BRASIL E A CHINA :
A COOPERAÇÃO EM CIENCIA E TECNOLOGIA
EM PERSPECTIVA HISTÓRICA
Paulo Roberto de Almeida
394. “O Brasil e a China: a Cooperação em Ciência e Tecnologia em Perspectiva Histórica”, Paris, 10 fevereiro 1994, 11 pp. Revisão da contribuição elaborada em Genebra, em 26/06/88, para servir como subsídio a pronunciamento do Presidente José Sarney em viagem à China (Trabalho n° 162). Publicado na Revista de estudos Afro-Asiáticos (Rio de Janeiro: Universidade Candido Mendes, Centro de Estudos Afro-asiáticos, n° 26, setembro de 1994, pp.149-158). Relação de Publicados n° 165.
Tornou-se um lugar comum, hoje, em dia, afirmar o primado da ciência e da tecnologia enquanto fatores de produção: elas seriam tão ou mais importantes, no processo produtivo contemporâneo, quanto os recursos naturais, os equipamentos industriais ou a própria mão-de-obra. Já se disse que o cenário emergente do século XXI será marcado não necessariamente por uma divisão entre ricos e pobres, mas entre os que dominam o conhecimento especializado e aqueles que não o dominam. O saber, não o ter, será o critério distintivo das sociedades no próximo milênio.
A ciência e a tecnologia são importantes não apenas ao nível das políticas nacionais de desenvolvimento, mas igualmente e sobretudo enquanto elementos de primeiro plano na trama atual das relações internacionais. É sob o marco dessas alavancas essenciais ao desenvolvimento do Brasil e da China e é sobre a base desses dois elementos chaves ao progresso econômico e social de seus povos respectivos que deve assentar-se uma fração significativa do relacionamento bilateral entre os dois países nos próximos anos.
A China e o Brasil são seguramente países muito diferentes, hoje, do que eram num passado ainda recente. A produção agrícola e industrial, em que pese a diferença de estruturas econômicas, conheceu saltos fantásticos em ambos os países, as fontes de energia continuaram a se desenvolver, novos meios de transportes integram hoje regiões antes isoladas, sistemas modernos de comunicações passaram a alcançar comunidades distantes e os benefícios da saúde e da educação puderam ser estendidos a um número maior de pessoas. A despeito da forte expansão demográfica experimentada pelos dois países nos últimos vinte anos, o Produto Bruto por habitante cresceu praticamente 300% desde a década dos sessenta. Estas realizações são ainda mais admiráveis em países de dimensões continentais como o Brasil e China, onde as diversidades regionais são por vezes tão marcadas quanto as diferenças climáticas.
O desenvolvimento não é, entretanto, uma estrada uniforme ou desprovida de obstáculos. A experiência histórica de muitos países em desenvolvimento, nas últimas décadas, tem demonstrado que, apesar da aceleração do crescimento e dos inegáveis avanços na construção da base industrial, tende a persistir uma certa coexistência de métodos diversos de produção e de distribuição, assim como diferenças técnicas por vezes surpreendentes na forma do homem se relacionar com o meio natural. Mesmo nações de relativo avanço industrial como o Brasil e a China vêm conviver, lado a lado, a energia nuclear e o carro de bois, o satélite de comunicações e o fogão a lenha.
Somos, assim, levados a constatar que altas taxas de crescimento econômico ou a rápida mutação na base produtiva material não são suficientes para garantir a transformação equilibrada de todos os setores da sociedade. O processo de desenvolvimento é, por sua própria natureza, desigual, trazendo soluções inovadoras a velhos problemas, mas introduzindo ao mesmo tempo novas dificuldades sem fornecer respostas suscetíveis de serem implementadas no curto prazo. Enquanto ele aproxima o computador de populações semialfabetizadas e a linguagem informatizada da cultura oral, o desenvolvimento gera, de contínuo, novas desigualdades econômicas e sociais.
Mas, os países em desenvolvimento não podem esperar pela homogeneização completa de suas estruturas sociais para enfrentar o grande desafio do progresso científico e tecnológico. Num mundo interdependente, cada vez mais dominado por fluxos transnacionais de comércio de bens e de serviços, os esforços nacionais de desenvolvimento devem ser levados a cabo simultaneamente em todas as frentes, se não quisermos que a distância entre nossos países e aqueles mais avançados continue a se aprofundar.
Não se conhecem receitas simples para o desenvolvimento e não existem atalhos fáceis no caminho que deve conduzir à plenitude da moderna sociedade industrial. Mesmo supondo-se a possibilidade de ser encontrada uma fórmula supostamente salvadora, é altamente duvidoso que se consiga transplantar experiências bem sucedidas num determinado contexto, como o da Europa e dos Estados Unidos, por exemplo, para outros povos e outras culturas tão diferentes como o Brasil e a China.
A despeito da distância cultural entre seus povos respectivos, das experiências históricas diversas dos dois países ou das diferenças existentes entre seus respectivos sistemas econômicos e políticos, o Brasil e a China partilham da vontade comum de avançar o mais rapidamente possível em direção ao século XXI. Um mesmo elemento será instrumental nessa grande tarefa do desenvolvimento, qualquer que seja o caminho escolhido em cada país: trata-se do caráter universal da ciência e da tecnologia.
A China, país de velha civilização e de cultura milenar, já brindou a Humanidade com um número significativo de descobertas e invenções. A fascinação exercida no Ocidente medieval e renascentista pela China imperial não era devida apenas às fabulosas riquezas de Cathai, que sempre atraíram mercadores corajosos e aventureiros intrépidos, mas resultava igualmente de procedimentos técnicos extraordinários e produtos misteriosos que encantavam povos europeus ainda rudes e tecnologicamente pouco desenvolvidos.
Não há exagero em afirmar-se que a China foi, durante muito tempo, uma espécie de paradigma da inventividade humana e, até o século XV pelo menos, ela demonstrou ser muito mais eficiente do que as sociedades europeias na aplicação do conhecimento do meio ambiente às necessidades práticas do homem.
Foi do Império do Meio que a Europa medieval herdou uma grande parte de seus conhecimentos e técnicas científicas: as três maiores inovações dos primórdios da era moderna - a bússola, a pólvora e a imprensa - são originárias da China. Assimiladas, no momento oportuno, por outros povos em terras distantes, algumas dessas contribuições chinesas ao patrimônio comum da Humanidade permitiram, por exemplo, que regiões antes desconhecidas fossem incorporadas ao arco civilizacional então existente, como aliás é o caso do próprio Brasil e do Novo Mundo em geral.
A ciência moderna, isto é a bagagem de conhecimentos acumulada pelo Homem sobre a vida e os processos naturais desde o século XVI pelo menos, deve muito à admirável história da ciência e da tecnologia chinesas. O Ocidente retribuiria em parte o legado herdado da China, notadamente através dessa figura extraordinária que foi o jesuíta italiano Mateo Ricci que, autorizado a instalar-se na corte imperial em 1601, ensinou aos letrados chineses os fundamentos do método experimental. Ricci deu cursos de matemática e de astronomia, traduziu em chinês os Elementos de Euclides, ajudou a reformar o calendário e transmitiu a então nascente tecnologia ocidental: fundição de canhões, relógios solares, mapas geográficos, etc. Estava lançada a cooperação científica entre sistemas sociais diferentes.
Seria um erro pretender separar a produção científica das condições sociais que presidem à sua elaboração. As descobertas e inovações técnicas introduzidas numa determinada sociedade, em certas etapas de seu desenvolvimento histórico, não são apenas o resultado do trabalho de homens geniais ou de sábios isolados em seus laboratórios. Elas são, antes de mais nada, o produto e a expressão de uma cultura e de uma sociedade e não deixam de refletir um sistema de valores inserido num processo social que favorece o espírito inventivo e o esforço criativo.
O desenvolvimento econômico e tecnológico de uma dada sociedade não pode assim exercer-se num vácuo social. Ele depende de fatores sociais, culturais, institucionais, econômicos e propriamente científicos. Estes últimos estão intimamente ligados a uma correta política de formação profissional, tanto ao nível da educação de massa como no do aperfeiçoamento técnico sistemático em níveis mais avançados de graduação. A política de educação desempenha, portanto, o papel verdadeiramente estratégico nos programas de desenvolvimento nacional. O Brasil e a China desenvolvem esforços extraordinários nesse sentido, mas deve-se reconhecer que ainda resta um longo caminho a percorrer.
Se os países da Europa ocidental puderam exercer, durante os últimos quatro séculos e até uma data ainda recente, uma hegemonia incontestável sobre as demais regiões do planeta foi porque eles conseguiram estabelecer um verdadeiro "sistema de crescimento" sustentado por um constante processo de inovação, seja no que concerne os meios de produção, seja na confecção dos instrumentos propriamente militares de dominação.
Esse modo inventivo de produção, que permitiu o desencadear da Revolução Industrial e das revoluções científicas que lhe são associadas, só se tornou possível a partir de uma sólida base de conhecimentos técnicos difundidos em círculos cada vez mais amplos da população. O triunfo histórico do que se convencionou chamar de "racionalismo ocidental" pode ser em grande parte atribuído à notável expansão das oportunidades educacionais permitida pela consolidação dos Estados nacionais nos séculos XVII e XVIII. E foi a racionalidade científica que permitiu o dinamismo social, a competitividade econômica, a eficiência industrial, a performance militar, a dominação política, enfim, das potências ocidentais.
O sucesso histórico do modelo econômico ocidental já foi explicado pela dominação externa de outros povos e sociedades, seguida da consequente extração de seus recursos produtivos. Mas, se esquece muitas vezes de dizer que nenhum poder imperial se sustenta sem uma adequada base econômica de natureza propriamente interna, isto é, sem a manutenção de taxas relativamente elevadas e constantes de produtividade. Assim, ao lado dos fatores específicos ligados à organização social do trabalho nesse sistema produtivo, é preciso mencionar a difusão de um conhecimento técnico de base, largamente facilitada pela ampliação da rede escolar nas diversas sociedades que se modernizaram nesse período. Por outro lado, nenhum outro processo social foi tão responsável pelo desenvolvimento contínuo das forças produtivas nessas sociedades como a disseminação da inovação técnica ao nível das unidades de produção.
Finalmente, a afirmação e o sucesso continuado desse modo inventivo de produção só se tornaram possível graças à institucionalização da pesquisa técnico-científica, não mais em escala apenas industrial, mas já no âmbito dos laboratórios especializados. Hoje em dia, o sistema industrial passou a depender, cada vez mais, de uma infraestrutura de conhecimentos e de procedimentos técnicos especializados que estão estreitamente ligados ao progresso da ciência experimental, sob a forma de pesquisa e desenvolvimento. A interação entre o sistema produtivo e o complexo científico-tecnológico nos países desenvolvidos alcança hoje todos os ramos do conhecimento humano e seus efeitos se estendem igualmente a todas as esferas da atividade econômica.
Os países que, como a China e o Brasil, aspiram oferecer a suas populações todos os benefícios do sistema industrial moderno, inclusive participando do comércio mundial de bens e serviços, devem igualmente dominar todas as etapas do processo de elaboração do conhecimento técnico-científico. O progresso tecnológico não pode ser simplesmente importado: ou ele permeia todas as fases da formação dos recursos humanos num determinado país, ou ele será sempre uma cópia servil de produtos estrangeiros sem estender-se ao próprio processo de produção.
O processo histórico da industrialização tradicional, até meados deste século pelo menos, demonstrou que a difusão internacional da tecnologia disponível atuou como importante fator de recuperação para as sociedades que chegaram tardiamente à etapa da modernização. A vantagem comparativa de muitas dessas experiências nacionais de industrialização tardia constituiu-se justamente na possibilidade de beneficiar-se dos exemplos e dos conhecimentos produzidos pelos pioneiros para o estabelecimento de sistemas produtivos mais modernos e mais eficientes. Tal foi o caso, entre outros, da Alemanha, dos Estados Unidos e do Japão, desde o último quartel do século passado, e tal parece ser o itinerário, hoje, dos assim chamados "novos países industriais". Tudo indicaria que outras sociedades poderiam também reproduzir a experiência desses antecessores, à condição evidentemente de dispor dos recursos materiais e humanos e dos fatores sociais e institucionais para sustentar o esforço industrializador.
Apesar que o mundo, hoje, se tenha tornado ainda mais interdependente do que há um século, com o incremento do intercâmbio global e a interpenetração dos mercados, a repetição das performances dos atuais países avançados tende contudo a ficar mais difícil para países como os nossos e pode ser mesmo inconcebível para a grande maioria dos atuais países em desenvolvimento.
Duas razões explicam a descontinuidade histórica no processo de recuperação tecnológica e sua possível não operabilidade atual para muitos países de desenvolvimento relativamente tardio: a complexidade intrínseca das novas tecnologias e a tendência a cercear a difusão do conhecimento tecnológico. Tratemos mais detidamente dessas duas questões.
Até finais do século passado, as grandes inovações técnicas da revolução industrial podiam ser consideradas como fazendo parte de um estoque comum de conhecimentos colocado à disposição dos países engajados na corrida da industrialização. A incorporação dessas tecnologias ao sistema produtivo industrial não dependia, ou pelo menos não tanto como atualmente, de um pessoal altamente qualificado dedicado integralmente a atividades de pesquisa e desenvolvimento ao nível de laboratórios. Mesmo o volume de recursos financeiros e de meios materiais para a implementação das inovações técnicas não significava uma barreira intransponível para a maior parte dos países integrados ao sistema econômico mundial.
Esse antigo modelo de desenvolvimento industrial estava associado a uma fase ainda elementar da relação entre o homem e o mundo natural: tratava-se da transformação de elementos materiais existentes através da utilização da energia em suas diversas formas: a energia térmica, os combustíveis fósseis, a eletricidade.
A atual etapa de desenvolvimento industrial, ao contrário, dá uma maior importância à produção e à manipulação da informação, atribuindo menor peso relativo à energia e à matéria. O novo sistema industrial se baseia no desenvolvimento de forças produtivas cada vez mais exigentes em elementos imateriais e crescentemente poupadores de matérias brutas e energia.
O próprio surgimento da energia nuclear - antes mesmo da atual revolução da informação - significou uma transformação fundamental da relação entre as sociedades e o conhecimento tecnológico. A capacidade científica e técnica associada à possibilidade de utilização da energia nuclear (necessariamente concentrada em reduzido número de países) representou, na verdade, o estabelecimento de uma nova relação de forças entre as nações, muito mais do que a pólvora o havia feito nos albores da era moderna. Os países pioneiros na tecnologia nuclear pretenderam mesmo congelar em seu exclusivo benefício a relação de forças então criada, situação evidentemente inaceitável para países como os nossos que não pretendem fechar-se a nenhuma das conquistas da civilização moderna.
Seja no setor nuclear, seja no das tecnologias de ponta, as inovações tendem a surgir como resultado de enormes investimentos em pesquisa e desenvolvimento. A intensificação crescente da utilização de capital na pesquisa científica operacional parece ser uma característica permanente do atual modelo de industrialização e de desenvolvimento econômico. A desigualdade assim introduzida, em escala mundial, entre os países que podem permitir-se desenvolver pesquisa científica e explorar industrialmente os sistemas técnicos dela derivados e os demais países, designados como meros usuários dessas novas tecnologias, pode significar o surgimento de uma nova espécie de dominação, menos brutal talvez do que a antiga forma de exploração colonial direta, mas provavelmente mais insidiosa e aguda.
A intensidade tecnológica das indústrias de ponta, bem como o enorme volume de recursos financeiros que elas supõem, parecem pois atuar como uma barreira à difusão universal das novas tecnologias e sua extensão a países relativamente carentes em capital e em recursos humanos. Mesmo alguns países desenvolvidos, mas de menor porte relativo, tem por vezes dificuldades em encontrar fontes adequadas de financiamento para a pesquisa e desenvolvimento nesses novos campos. Daí a associação e a cooperação em projetos de pesquisa entre diversos países, como é o caso dos programas Eureka e Esprit ao nível da Comunidade Econômica Europeia.
Os países em desenvolvimento que, como o Brasil e a China, pretendem dominar todos os aspectos da produção e utilização das novas tecnologias são assim obrigados a operar uma igualmente formidável concentração de recursos em pesquisa e desenvolvimento. As limitações financeiras e de capital humano que ainda marcam o esforço industrializador nesses países parecem impor, quase que naturalmente, a necessidade de cooperação científica e tecnológica e a busca de associações privilegiadas mobilizando as melhores capacidades técnicas de cada país em setores selecionados de pesquisa e desenvolvimento.
A complexidade dos sistemas técnicos contemporâneos tornou a inovação uma tarefa essencialmente coletiva. O inventor isolado, se ainda existe, está cada vez mais raramente associado à novas fronteiras do conhecimento humano. Contrariamente à utilização da energia para a transformação da matéria, como se fazia nas fases anteriores da revolução industrial, a elaboração, a transferência, o tratamento e utilização da informação, que passaram a caracterizar o cenário tecnológico deste final de século, superam as possibilidades do pesquisador isolado. Mais ainda, a pesquisa científica e a inovação técnica tornaram-se tão solidárias uma da outra que as antigas distinções entre pesquisa fundamental e pesquisa operacional tendem a diluir-se. A evolução tecnológica depende tanto do laboratório como da fábrica, da universidade como da empresa, dos cientistas e administradores individuais como do Estado. O reconhecimento dessa simbiose torna assim ainda mais imperativa a necessidade de cooperação entre países que partilham da mesma preocupação quanto aos rumos do desenvolvimento tecnológico futuro da Humanidade.
Que dizer, por outro lado, do caráter universal da ciência e da tecnologia, dessa capacidade da racionalidade científica de romper as barreiras linguísticas e as fronteiras políticas dos Estados soberanos ?
Os pesquisadores engajados na produção de ciência e na sua aplicação aos problemas práticos enfrentados pelas sociedades sempre se identificaram como pertencentes a uma mesma comunidade de interesses, dotada fundamentalmente de uma mesma visão do mundo no que se refere ao objeto de seus esforços: o intercâmbio dos resultados respectivos das pesquisas engajadas como forma de melhor servir à causa do progresso e do desenvolvimento dos povos. O próprio trabalho científico foi sempre concebido como independente de opções políticas ou de preocupações econômicas, voltado primordialmente para as necessidades da Humanidade como um todo.
Cabe no entanto interrogar-se sobre a significação dessa “universalização da ciência” em face da estrutura atual da pesquisa científica em nível mundial e das tendências visíveis quanto à possibilidade de difusão irrestrita dos conhecimentos produzidos pelos cientistas. Essa questão está evidentemente ligada ao segundo fator identificado como um dos obstáculos atuais à recuperação do atraso tecnológico motivado por processos industrializadores relativamente tardios: a restrição que se manifesta em alguns círculos à difusão dos conhecimentos elaborados nos laboratórios financiados pelo setor público. Em outros termos, pretende-se que o universal deixe de ser universal.
Tradicionalmente, a cooperação nos meios científicos se faz não apenas através do intercâmbio de informações durante colóquios e seminários e da divulgação das pesquisas em periódicos e publicações especializadas, mas também por meio do acesso dos cientistas aos laboratórios de seus colegas, sobretudo aqueles dos centros mais avançados. O desenvolvimento extraordinário da informática e da telemática, por outro lado, significa que um número cada vez maior de cientistas trabalhando nos lugares mais distantes do planeta poderia, em princípio, passar a ter acesso imediato ao estoque mundial de conhecimentos científicos. Estaríamos, assim, no limiar de uma verdadeira revolução cultural, desta vez reproduzindo em escala planetária o fenômeno de expansão cultural que a difusão da imprensa representou para a Europa do século XV.
Entretanto, não é isso que está ocorrendo a nível mundial. Atualmente, as restrições de natureza política ou ideológica já observadas no passado tendem a ser reforçadas, quando não superadas, por considerações de natureza econômica ou comercial. Não se deve por certo esquecer que a pesquisa científica e tecnológica apresenta custos cada vez mais elevados e que os resultados obtidos constituem, em alguns casos, "bens econômicos" dotados de valor de mercado. Mas, o cerceamento exagerado dos fluxos de informação científica pode agir em detrimento das próprias políticas nacionais de desenvolvimento tecnológico, já que a restrição ao intercâmbio transfronteiriço de dados tende a diminuir os insumos colocados à disposição dos pesquisadores.
Esse fenômeno é ainda agravado pela nova orientação, de caráter igualmente restritivo, que se pretende imprimir à proteção da propriedade intelectual, já objeto de difíceis negociações nos organismos internacionais com sede em Genebra. A legítima proteção que passa a ser concedida aos novos campos do conhecimento humano - na informática ou na biotecnologia, entre outros exemplos - deveria normalmente ter como contrapartida o estabelecimento de um necessário equilíbrio entre os direitos dos detentores das invenções e seus deveres para com a sociedade que lhes confere o monopólio de exploração sobre os produtos e processos por eles criados. Não é contudo a opinião de alguns representantes dos setores engajados comercialmente nas pesquisas ligadas aos novos campos: avançando o argumento da “confidencialidade” da inovação tecnológica, eles não pretendem compensar a concessão de direitos exclusivos de utilização com a indispensável divulgação do conhecimento produzido. O que se busca, na verdade, é legitimar no plano multilateral o princípio do “segredo comercial”, como se este conceito devesse necessariamente passar do plano das relações contratuais entre empresas privadas ao nível das relações entre Estados.
Uma parte significativa da pesquisa e desenvolvimento no campo das novas tecnologias - pelo menos aquela que apresenta incidência direta para os sistemas produtivos - é hoje conduzida pelas grandes empresas transnacionais, que também são responsáveis pela chamada transferência de tecnologia para os países em desenvolvimento. Essa transferência não se dá no entanto diretamente, como o conceito poderia deixar supor, mas preferencialmente numa relação de matriz a filial, que nada mais constitui senão um fluxo interno à própria empresa. Os países em desenvolvimento recebem assim produtos e processos cujos custos já estão em grande parte amortizados, sem beneficiar-se do acesso ao know-how que lhes permitiria uma produção autônoma. Em outros termos, há mais transporte do que transferência de tecnologia.
A eventual instalação de laboratórios das empresas transnacionais em países em desenvolvimento não está dirigida para a pesquisa nos setores tecnológicos mais avançados, mas destina-se fundamentalmente a adaptar e explorar nos mercados locais setores de baixa ou média intensidade tecnológica. A produção local de bens de alta tecnologia, quando ocorre, visa a beneficiar-se de menores custos relativos, em materiais ou mão-de-obra, tendência já algo em recuo dada a automação crescente das unidades de produção nos países mais desenvolvidos.
O fato, assim, de aceitar novas regras de proteção à propriedade intelectual - na verdade, a extensão dos monopólios de importação e exploração local sem a contrapartida da divulgação - pode resultar no congelamento de uma relação de forças já bastante desigual para os países em desenvolvimento. Países que, como o Brasil e a China, possuem a capacidade de digerir, reproduzir e transformar tecnologia estrangeira, podem ver restringidas as possibilidades de um desenvolvimento científico autônomo, consolidando-se uma nova divisão internacional do trabalho que não atende a seus mais legítimos interesses nacionais. O dever de conceder proteção adequada a técnicas e procedimentos inéditos de fabricação não pode ser dissociado do direito de utilizar os conhecimentos que eles pressupõem em benefício da sociedade como um todo.
Como já se disse tantas vezes, as leis que presidem à elaboração da ciência são universais, como é universal o próprio conhecimento científico. Mas, não são universais todas as outras condições que servem à elaboração ou tornam operacional o conhecimento científico: pessoal qualificado, instituições de pesquisa, laboratórios, universidades, registro e circulação da informação científica. Esses elementos têm necessariamente de fazer parte do patrimônio de um país se este pretende aceder às etapas mais avançadas dessa informação.
O Brasil e a China, por características próprias em termos de espaço, recursos naturais e população, são países em desenvolvimento que dispõem como poucos da capacidade de dominar uma vasta gama de elementos do sistema técnico contemporâneo. Os dois países já se lançaram à conquista dos setores estratégicos de alta tecnologia: energia nuclear, foguetes e vetores de lançamento, indústria aeronáutica, telecomunicações, biotecnologia, microeletrônica e outros mais. Os obstáculos ao domínio completo desses sistemas não são todos de natureza técnica, mas derivam, entre outros motivos, da insuficiência dos recursos disponíveis, inclusive em termos humanos, e dos limites impostos à transmissão do conhecimento científico. A cooperação científica entre o Brasil e a China deverá contribuir para superar alguns desses obstáculos.
[1a. versão: Genebra, 96: 26/06/88]
[revisão: Paris, 394: 10.04.94]
[2a.revisão: 05.06.94]
Resumo do texto sobre
O BRASIL E A CHINA
Paulo Roberto de Almeida
Quais as possibilidades e condicionamentos da cooperação entre o Brasil e a China no terreno da ciência e da tecnologia ? Quais as bases de uma política nacional de desenvolvimento nessa área ? Quais são as raízes da preeminência ocidental nesse setor ? O meio ambiente internacional é favorável à transferência de tecnologia ou o desenvolvimento tecnológico deve assentar, prioritariamente, em bases autônomas, notadamente a formação de recursos humanos ?
O texto discute esses diferentes problemas a partir de uma digressão histórica sobre a natureza do desenvolvimento e os requisitos sociais do progresso tecnológico, registrando em primeiro lugar as contribuições da China para o progresso científico da Humanidade e analisando em seguida as razões do domínio ocidental a partir da Renascença. O Ocidente foi capaz de estabelecer e manter um “modo inventivo” de produção, cujas bases fundamentais são dadas pela disseminação do progresso técnico e a incorporação da ciência básica pela indústria.
O desenvolvimento econômico e tecnológico depende de fatores sociais, culturais, institucionais, econômicos e propriamente científicos que estão intimamente ligados a uma correta política de formação profissional, tanto ao nível da educação de massa como no do aperfeiçoamento técnico sistemático em níveis mais avançados de graduação. A política de educação desempenha o papel verdadeiramente estratégico nos programas de desenvolvimento nacional. O Brasil e a China realizam grandes esforços nesse sentido, mas muito ainda resta por fazer, sobretudo levando-se em conta as atuais restrições à difusão irrestrita da ciência e tecnologia e as novas orientações que se desenham no campo da proteção à propriedade intelectual.
[PRA, Paris: 05.06.94]