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Este blog trata basicamente de ideias, se possível inteligentes, para pessoas inteligentes. Ele também se ocupa de ideias aplicadas à política, em especial à política econômica. Ele constitui uma tentativa de manter um pensamento crítico e independente sobre livros, sobre questões culturais em geral, focando numa discussão bem informada sobre temas de relações internacionais e de política externa do Brasil. Para meus livros e ensaios ver o website: www.pralmeida.org. Para a maior parte de meus textos, ver minha página na plataforma Academia.edu, link: https://itamaraty.academia.edu/PauloRobertodeAlmeida.

quinta-feira, 5 de maio de 2022

Lei de Cotas: dez anos de aplicação - Avaliação pela revista Quatro Cinco Um

 

Desigualdades

A Lei de Cotas dez anos após sua promulgação

Pesquisas mostram a relevância das políticas de ação afirmativa na redistribuição de oportunidades nas universidades federais

Flavio Carvalhaes
Rosana Heringer
Rodrigo Ednilson de Jesus
Melina Klitzke
Gabriela Honorato
Revista Quatro Cinco Um, 

01mai2022 04h51 (01mai2022 07h51)

Este 2022 é um ano-chave para a Lei de Cotas (Lei nº 12.711, de 29/8/2012): celebramos uma década da mais importante política de ação afirmativa em âmbito nacional e está prevista na legislação uma revisão por parte do Congresso Nacional. Em qual direção a revisão vai caminhar — se é que vai caminhar — é uma questão em aberto. A experiência acumulada nesse período deve nortear a ação coletiva daqui para a frente. Discutir de onde viemos e para onde vamos em relação às cotas nas universidades é o objetivo deste texto.

As cotas são um tipo de política de ação afirmativa que tem como objetivo proporcionar maior igualdade de oportunidades para grupos historicamente em posição de desvantagem por meio de ações que ampliem a inserção desses grupos no sistema educacional, no mercado de trabalho, em serviços de saúde, entre outros. 

A Lei de Cotas regula políticas de ação afirmativa no acesso ao ensino superior público federal com o objetivo de promover o ingresso nas universidades e instituições federais de ensino técnico de nível médio. A lei estabelece, em cada concurso seletivo, por curso e turno, o mínimo de 50% de reserva de vagas para aqueles que tenham cursado todo o ensino médio em escolas públicas. Metade dessas vagas deve ser reservada a estudantes com renda familiar de até 1,5 salário mínimo per capita. Independentemente da renda familiar, deve haver também uma subcota para autodeclarados pretos, pardos e indígenas, calculada em proporção igual à participação destes na população de cada unidade federativa, segundo o último recenseamento demográfico. A partir de 2016, a lei foi emendada para incluir uma subcota para pessoas com deficiência.

Desigualdades

Ações afirmativas no âmbito educacional são uma espécie de medida compensatória para reduzir as desigualdades. No caso, o acesso ao ensino superior. Mas qual era o nível de desigualdade observado que justificou esse tipo de iniciativa?

Podemos começar a responder a essa pergunta com dados de uma pesquisa que acompanhou por cinco anos os alunos que prestaram o Enem em 2012. Flavio Carvalhaes, Adriano Senkevics e Carlos Antônio Costa Ribeiro seguiram esses estudantes e verificaram, após cinco anos, a proporção de candidatos que efetivamente fizeram matrícula em uma instituição de ensino superior. Os pesquisadores dividiram os alunos em dez estratos de nota no Enem, das notas mais baixas às mais altas. Os resultados mostram que estudantes pobres entre os 10% de candidatos de notas mais baixas tinham uma probabilidade de 27% de acessar o ensino superior. Estudantes ricos do mesmo estrato de desempenho têm uma probabilidade de acesso de 78%. Esses números questionam a associação entre mérito e oportunidades educacionais, uma vez que estudantes ricos de baixo desempenho podem comprar uma oportunidade no mercado educacional. O sistema público de ensino é altamente competitivo, e estudantes com baixo desempenho não conseguem competir por essas vagas. Os estudantes mais ricos de baixo desempenho podem pagar por vagas no sistema privado, ao passo que os mais pobres não têm o mesmo privilégio. 

As cotas foram uma inovação nas políticas públicas para promover o acesso à educação

O desenho da Lei de Cotas tem o foco justamente nos estudantes mais pobres, e seu objetivo é alavancar a probabilidade de um estudante pobre se matricular em uma instituição de ensino, desde que ele observe o patamar de desempenho mínimo na competição pela vaga que pleiteia.

Esses resultados podem ser complementados com outras estatísticas. Se nos voltarmos aos indicadores da desigualdade de acesso ao ensino superior veremos que, além das barreiras de renda, também encontramos barreiras raciais. Infelizmente, esse tipo de desigualdade foi e segue sendo uma característica marcante do sistema de ensino superior no país. Podemos mostrar isso olhando para como o passado do sistema educacional se faz presente na atualidade, comparando a proporção de pessoas que tinham concluído o ensino superior entre diferentes gerações e grupos raciais em um ano específico. 

No ensino superior, há praticamente dois estudantes brancos para cada aluno preto ou pardo

Em 2019, na população com idade entre 60 e 64 anos, 13% concluíram o ensino superior. Entre brancos, a taxa é 19%; entre pardos, 7%; e entre pretos, 6%. Na geração de 30 a 34 anos, 20% dos brasileiros haviam concluído o ensino superior: entre brancos, a taxa é de 30%; entre pardos, 13%; e entre pretos, 11%. A comparação geracional mostra uma pequena melhora ao longo do tempo, expressa no aumento das proporções de pessoas jovens que concluíram o ensino superior. Mesmo assim, os pretos e pardos ainda não atingiram o patamar de conclusão dos brancos das gerações mais antigas! Esse resultado também está presente entre os ainda mais jovens, de 18 a 24 anos. Para cada estudante preto ou pardo matriculado ou formado no ensino superior no Brasil, há praticamente dois estudantes brancos. 

As ações afirmativas foram iniciativas para reagir a tamanha desigualdade. Do ponto de vista histórico, as cotas foram uma inovação no âmbito de políticas públicas de promoção de acesso à educação que surgiram nos anos 2000. Entre 2001 e 2012, é possível identificar um primeiro período de sua implementação. Algumas experiências promoveram a reserva de vagas para certos grupos (pobres, negros, pardos, indígenas), enquanto outras iniciativas procuraram aumentar a competividade atribuindo bônus nas notas de estudantes pertencentes a esses grupos em processos seletivos. A primeira experiência de ações afirmativas foi implantada no sistema estadual de ensino superior do Rio de Janeiro em 2001, mediante lei estadual. Em 2004, o sistema de cotas foi adotado pela Universidade de Brasília (UnB), primeira instituição federal a implementar uma política dessa natureza. A partir de então, o número de instituições de ensino superior que adotaram programas de ação afirmativa aumentou gradativamente, alcançando, em 2012, a cifra de 42 entre 59 universidades federais, a maior parte delas beneficiando egressos do ensino médio público e/ou pretos, pardos e indígenas. Essa fase inicial de experimentação se coadunou com a lei federal de 2012, que padronizou o sistema de ações afirmativas nas escolas e institutos de ensino federais, assim como nas universidades. 

Indicadores

Dez anos após sua promulgação, consolidação e experiência de múltiplas gerações que acessaram o ensino superior público federal acionando a política, é possível usar uma série de indicadores que descrevem essa experiência em múltiplas dimensões.

Resultados de pesquisas de Úrsula Mello e Adriano Senkevics apontam que a participação de estudantes que cursaram ensino médio público nas instituições federais cresceu de 55% para 63%. Se agruparmos estudantes pretos, pardos e indígenas em uma categoria (a sigla “ppi”, frequentemente acionada em discussões sobre o tema) e combinarmos a informação de onde esses estudantes cursaram o ensino médio, é possível identificar que a participação de estudantes PPI de escolas públicas aumentou de 28% para 38%. Esse é o perfil de estudante contemplado pela Lei de Cotas que teve o maior crescimento relativo no período. 

Se deslocarmos nosso olhar para cursos específicos, podemos captar mudanças igualmente significativas. Úrsula Mello fez um exercício de acompanhar a adoção progressiva da Lei de Cotas nos cursos e como sua implementação afetou a presença de grupos desprivilegiados em todos, principalmente os cursos mais competitivos. Comparando o perfil dos estudantes antes de 2010 — portanto antes da lei —e depois de sua implementação, a pesquisadora mostra que foram os cursos com menos estudantes vindos da escola pública aqueles que mais mudaram. Isso permite afirmar que são os cursos previamente mais excludentes aqueles que foram os mais transformados pela política de ação afirmativa. Igualmente, são esses cursos — medicina, engenharias, direito — os que têm maior retorno no mercado de trabalho. Esse tipo de resultado aponta para duas direções positivas: a redistribuição de oportunidades educacionais na direção de grupos desprivilegiados e o aumento da representatividade de estudantes pretos, pardos e indígenas em profissões historicamente ocupadas, sobretudo, por estudantes brancos.

Um cuidado que devemos tomar ao analisar esses resultados é que a política de cotas não tem o objetivo de promover somente o acesso ao ensino superior. A avaliação também depende de os estudantes terem trajetórias de sucesso dentro do ambiente universitário. Uma forma de verificar isso é documentar o percurso dos estudantes e calcular se as taxas de evasão e conclusão dos alunos que entram via política de reserva de vagas é parecida com a de estudantes que entram na concorrência geral. 

É possível acompanhar a geração que entrou no sistema de ensino superior federal em 2013, após a Lei de Cotas. As taxas de evasão após o primeiro ano entre alunos cotistas e não cotistas é muito parecida: 11% e 10% respectivamente. Em cursos variados, como arquitetura e urbanismo, engenharia civil, engenharia elétrica, medicina, veterinária e pedagogia, as taxas entre ingressantes em 2013 são igualmente próximas. Esses resultados corroboram pesquisas anteriores que sinalizavam que, embora venham de situações socioeconômicas relativamente menos privilegiadas, os estudantes cotistas têm resultados educacionais muito parecidos aos dos alunos não cotistas. Esse é um forte sinal de que os estudantes cotistas reconhecem e valorizam as oportunidades que alcançam. 

Além dos números, é importante olhar para as experiências. Pesquisadores ligados ao Laboratório de Estudos e Pesquisas em Educação Superior da UFRJ e à associação civil Ação Educativa conversaram com estudantes, docentes e servidores de seis universidades federais brasileiras sobre o processo de implementação da Lei de Cotas. Foram analisados documentos institucionais, entrevistas e rodas de conversas com membros da comunidade acadêmica. Esses relatos apontam que as polêmicas e temores que marcaram os momentos iniciais do debate público sobre as ações afirmativas foram diluídos, a realidade da política se impôs e esses atores se adaptaram com sua convivência. Com efeito, nas entrevistas reportadas pela pesquisa não há menção contrária às cotas, seja por parte de docentes, servidores ou estudantes.

Por outro lado, há relatos sobre as dificuldades relacionadas à integração dos estudantes cotistas nas instituições. O novo perfil de alunos aumentou a demanda por programas de assistência estudantil e políticas de permanência, envolvendo auxílios financeiros, alimentação, moradia ou transporte. Em todas essas universidades, houve aumento em termos absolutos e relativos dos recursos aplicados nesses programas. Entretanto, o volume de benefícios concedidos é sempre menor do que a demanda, o que, por sua vez, nutre insatisfação e cobranças por parte dos estudantes.

O novo contingente de estudantes influencia outras dimensões da vida acadêmica

A pesquisa também investigou as ações desenvolvidas em termos de acompanhamento pedagógico e integração dos estudantes cotistas às universidades. Há um longo caminho a percorrer: as universidades não têm um bom programa de acompanhamento do desempenho e do percurso desses estudantes. De forma geral, há pouco conhecimento por parte dos coordenadores de curso sobre as dificuldades enfrentadas pelos cotistas, inclusive as acadêmicas. As pró-reitorias de assuntos estudantis ou equivalentes tendem a se concentrar na gestão dos benefícios financeiros e terminam por dar pouca atenção à dimensão pedagógica e à vivência cotidiana dos estudantes. Em algumas das universidades pesquisadas, existe uma instância institucional voltada para os estudantes pretos, pardos e indígenas, mas em muitos casos esses órgãos têm poucos recursos humanos e parca estrutura para atuar como gostariam. Esse tipo de relato sugere que a universidade pública passou a ter uma maior variedade de perfis de estudantes, com diferentes trajetórias, vivências e informações sobre o universo do ensino superior. Tais estudantes demandam bolsas e auxílios financeiros, mas também acolhimento, respeito, escuta, informação ampla sobre oportunidades acadêmicas e diálogo com diferentes instâncias da universidade. Destacamos, portanto, a importância de que as universidades federais ampliem seu compromisso com a permanência e o sucesso acadêmico de todos os estudantes, em particular dos que ingressam através da reserva de vagas.

Estética e identidade racial

Ainda, as alterações promovidas pela Lei de Cotas têm impacto em uma dimensão estética do corpo discente de grande parte das instituições de ensino superior, introduzindo nesses espaços outros modos de estar e lidar com o corpo e o cabelo. Esse novo contingente de estudantes começou a influenciar outras dimensões da vida acadêmica, do espaço da sala de aula, passando aos processos coletivos de politização da estética e da identidade racial. Em muitas universidades brasileiras temos visto o surgimento de grupos e coletivos que contribuem para a permanência simbólica de estudantes e para a formulação de críticas ao caráter por vezes elitista e eurocêntrico dos currículos dos cursos de graduação das universidades. 

No momento em que a lei prevê uma avaliação dos seus resultados, as análises acima sinalizam algumas perspectivas. Em primeiro lugar, apontam para a necessidade da continuidade da reserva de vagas no acesso às instituições federais de ensino superior. Os projetos de lei atualmente em discussão no Congresso Nacional que preveem a continuidade da Lei de Cotas são bem-vindos, pois reconhecem a relevância dessa política. Os resultados de pesquisa indicam que, embora a Lei 12.711 não deva ser permanente, ela deve permanecer vigente até que seus objetivos sejam plenamente atingidos.

Seus resultados devem seguir sendo acompanhados, com ampliação das dimensões analisadas. Cabe perguntar se os resultados de cotistas e não cotistas são próximos ou distantes no mercado de trabalho. Estudantes contemplados ou não pelas ações afirmativas conseguem empregos na mesma velocidade? Com remuneração semelhante? Em áreas relacionadas aos cursos em que se formaram?

Ainda que novas perguntas possam ser feitas, as evidências mostram as mudanças significativas que a Lei de Cotas provocou nas universidades públicas brasileiras. Nossos campi estão mais parecidos com nossa sociedade, com estudantes pretos, pardos, indígenas e brancos, pobres e ricos convivendo, trocando experiências e promovendo o aprendizado. Após dez anos, esses resultados sinalizam que a experiência de ações afirmativas no ensino superior público brasileiro deve seguir com foco na renda e na raça dos estudantes para dar continuidade ao processo de redistribuição de oportunidades e promoção da representatividade nas universidades federais brasileiras

Revista da USP: dossiê Bicentenário da Independência: Economia,



“Em 200 anos, fizemos um trabalho muito insatisfatório”

É o que afirma o professor Hélio Nogueira da Cruz, coordenador do dossiê Bicentenário da Independência: Economia, da Revista USP. O dossiê é o primeiro de uma série de quatro que tratarão de aspectos essenciais do País nos últimos 200 anos
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Dossiê Bicentenário da Independência: Economia – Arte sobre fotos Wikimedia Commons

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Texto: Juliana Alves, Jornal da USP

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O Bicentenário da Independência do Brasil, que se comemora este ano, é mais do que uma efeméride — é um momento propício para se refletir acerca do caminhos (e descaminhos) que o País trilhou nesses últimos 200 anos e quais têm sido seus principais desafios. Para colaborar nessa reflexão, a Revista USP — editada pela Superintendência de Comunicação Social (SCS) — vai publicar quatro números especiais, totalmente dedicados ao bicentenário, que ajudarão a entender como o Brasil se estruturou (ou não) como nação. Esta primeira edição trata da economia brasileira, tanto no período logo subsequente à Independência como também nas décadas posteriores e foi coordenada pelo professor Hélio Nogueira da Cruz, da Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade da USP (FEA-USP). As próximas edições da revista trarão dossiês sobre cultura e sociedade (coordenado pela professora Maria Arminda do Nascimento Arruda, da FFLCH e vice-reitora da USP), política (coordenado pelo professor José Álvaro Moisés, da FFLCH) e ciência e tecnologia (coordenado pelo professor Glauco Arbix, da FFLCH e coordenador do Observatório de Inovação do Instituto de Estudos Avançados – IEA da USP).

Ao longo do dossiê Bicentenário da Independência: Economia, pode-se entender como o Brasil, dois séculos depois, ainda mantém “certos laços históricos profundos que ainda hoje nos aproximam do período da Independência, tais como a péssima distribuição de renda, o racismo, o patriarcalismo, o patrimonialismo e a baixa prioridade à educação e à saúde pública”, como afirma a apresentação da revista, assinada por Hélio Nogueira e também pelos professores Flávio Azevedo Marques Saes e Guilherme Grandi, também da FEA. O dossiê Bicentenário da Independência: Economia está disponível neste link.

Em entrevista ao Jornal da USP (veja vídeo abaixo), o professor Hélio Nogueira falou sobre o dossiê e refletiu sobre esses 200 anos de economia no Brasil. Segundo ele, “nos baseamos em um modelo estático do passado”. “Apesar de conseguirmos fazer um modelo ambicioso, com avanços importantes, a indústria brasileira não está acompanhando as indústrias dos países de porte”, afirma Nogueira.

Escravidão, Revolução Industrial e bancos

O primeiro artigo do dossiê, Dinâmica da Atividade Agrícola Até Meados do Século XIX, escrito pelos professores Francisco Vidal Luna, da USP, e Herbert S. Klein, da Universidade Columbia, nos Estados Unidos, aborda diferentes aspectos da agricultura, tanto no que se refere à grande lavoura exportadora como no que diz respeito à agropecuária voltada ao abastecimento do mercado interno. Os autores afirmam que os efeitos das atividades não exportadoras são essenciais para explicar a história, ocupação e povoamento do território brasileiro, mesmo que o mercado internacional fosse o elemento dinâmico. Eles analisam a atividade agrícola durante o século 19, período de consolidação da cafeicultura, que alterou profundamente a estrutura produtiva nacional e a infraestrutura econômica, em particular o sistema de transportes.

Já A Escravidão Brasileira à Época da Independência, de José Flávio Motta, professor da Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade (FEA) da USP e membro do Grupo de Estudos e Pesquisa em História Econômica Hermes & Clio, também da FEA, traz estimativas do “estoque” e do “fluxo” de pessoas escravizadas no Brasil na primeira metade do século 19, enfatizando a intensificação da entrada de cativos naquele período.

Em seguida, o autor investiga os impactos desses números nas características da escravidão brasileira na época da Independência. Ele analisa o padrão da distribuição da posse de cativos e evidencia a relação de vulnerabilidade e resiliência das famílias escravas no enfrentamento dos rigores e castigos do cativeiro. O professor também descreve a eventual participação direta das pessoas escravizadas no processo de emancipação política. Nas considerações finais, Motta destaca aspectos da trajetória da escravidão até sua abolição, apontando as cicatrizes profundas por ela deixadas, nitidamente visíveis até hoje.

Comércio Interno e Manufaturas nos Tempos da Independência do Brasil é o título do artigo de Maria Alice Rosa Ribeiro, professora da Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (Unesp) e pesquisadora colaboradora do Centro de Memória da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Em seu texto, ela analisa o tráfico de escravizados, distinguindo os negociantes do comércio atlântico daqueles que atuavam na  distribuição de escravizados no mercado interno. Além disso, Maria Alice aborda o comércio de alimentos e de manufaturados comuns transacionados pelos tropeiros e o comércio de manufaturados importados mais sofisticados. Em seguida, a autora muda o foco para a produção manufatureira, a indústria artesanal doméstica, como algodão, alimentos e bebidas, cerâmica e olaria (fabricação de tijolos, telhas e vasilhames de barro). No fim do artigo, Maria Alice ainda reflete sobre uma das mais importantes atividades industriais, a siderurgia.
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A fim de analisar o legado tributário colonial e as primeiras ações do Brasil como nação independente na reestruturação de seu sistema fiscal, na separação das rendas e na definição das competências tributárias, Luciana Suarez Galvão, professora do Instituto de Estudos Brasileiros (IEB) da USP, e Anne Gerard Hanley, professora da Northern Illinois University, nos Estados Unidos, escrevem o artigo Fiscalidade no Brasil Império: a Manutenção de Privilégios e o Legado da Desigualdade. Nele, as professoras defendem que a retórica do liberalismo e a falta de planejamento levaram ao estabelecimento de um sistema tributário que manteve os privilégios da elite política e econômica, com base no recolhimento de impostos indiretos sobre toda uma população de forma desigual. A mesma falta de planejamento acabou por deixar províncias, e em especial municípios, com grande parte da responsabilidade sobre a organização de bens públicos, mas de maneira inadequada. Segundo as autoras, o conjunto desses aspectos comprometeu de maneira significativa o desenvolvimento econômico de longo prazo, agravando ainda mais a disparidade social.

Sobre o contexto histórico da Independência do Brasil, que foi marcado por inúmeros desafios, dentre eles o estabelecimento de uma rede de vias de comunicação que integrasse o território e, assim, auxiliasse a unidade do Império brasileiro, Guilherme Grandi, professor do Departamento de Economia da FEA, escreve o artigo Transportes e Planos de Viação no Brasil Imperial. O objetivo do texto, de acordo com o autor, é examinar aspectos gerais sobre os transportes terrestre e fluvial ao longo do Primeiro Reinado (1822-1831) e da Regência (1831-1840). Grandi ainda analisa as propostas de alguns dos principais planos de viação que surgiram ao longo do período de 1869 a 1882.

O professor da Universidade Federal de Alfenas (Unifal), em Minas Gerais, Thiago Fontelas Rosado Gambi, no artigo A Independência e o Banco, Brasil 1821-1829, tem a intenção de avaliar, por meio de relatórios do Ministério da Fazenda, a atuação do Banco do Brasil como fornecedor de crédito ao governo desde a Independência até sua extinção, em 1829. O autor investiga a repercussão da imprensa da corte sobre os negócios bancários no contexto da emancipação política. A pesquisa mostrou que, embora os bancos não tenham sido protagonistas na expansão do mercado de crédito no País, o Banco do Brasil cumpriu uma importante função no financiamento do gasto público e na consolidação da Independência. Desse modo, o artigo contribui para esclarecer o papel do banco no financiamento dos gastos públicos depois da Independência e captar, pela imprensa, o efeito de seus desdobramentos políticos sobre a confiança na instituição.

O artigo O Mealheiro Oculto: Dinâmicas Econômicas entre o Norte e o Sul do Brasil no Tempo da Independênciado professor da Escola de Aplicação da Universidade Federal do Pará (UFPA) Daniel Souza Barroso, tem como objetivo analisar a economia da Amazônia, do Nordeste e do Sul do Brasil no período da Independência. Para isso, Barroso examina as exportações e a força de trabalho escravizada dessas regiões.

No final, o professor propõe a hipótese de que – direta ou indiretamente – as dinâmicas econômicas entre o Norte e o Sul do Brasil produziram riqueza à margem do Centro-Sul, ao responderem por grande parte das exportações e da população do País naquele contexto.

Dossiê Bicentenário da Independência: Economia – Foto: Reprodução/Revista USP

Alexandre Macchione Saes, professor do Departamento de Economia da FEA, e Ivan Colangelo Salomão, professor do Departamento de Economia da Universidade Federal do Paraná (UFPR), discutem a difusão das ideias da economia política clássica no artigo Pensamento Econômico no Brasil na Época da Independência. Os autores estudam três eventos históricos, entre os séculos 18 e 19, que marcam um período de transições: as independências americanas, a Revolução Francesa e a Revolução Industrial inglesa. No confronto entre essas ideias e a prática da economia colonial, a assimilação da economia política no Brasil realizada pela geração de d. Rodrigo de Sousa Coutinho, José da Silva Lisboa e José Bonifácio de Andrada e Silva implicou tendência contraditória de difícil conciliação entre interesses metropolitanos e coloniais e a manutenção de práticas mercantilistas em meio às ideias liberais.

O debate sobre capitalismo e escravidão é o tema central do artigo Revolução Industrial e Circuitos Mercantis Globais: a Crise da Escravidão no Império Britânico, de Tâmis Parron, professor da Universidade Federal Fluminense (UFF). Para ele, essa temática ilumina as relações materiais entre Revolução Industrial e crise da escravidão negra no Império britânico a partir das perspectivas da teoria crítica e do mundo.

Para fechar a edição, e ainda na esteira das datas comemorativas, a seção Arte traz um artigo da professora da Escola de Comunicações e Artes (ECA) da USP Elza Ajzenberg: A Semana de Arte Moderna de 1922 – Cem Anos Depois. Elza conta a história da organização da Semana de Arte Moderna e os debates em torno da exposição de Anita Malfatti entre 1917 e 1918. Além disso, a professora explica o contexto histórico, as principais ideias políticas e movimentos artísticos que cercaram a Semana e a repercussão na imprensa da época.

O dossiê Bicentenário da Independência: Economia, o primeiro da tetralogia, foi organizado pelos professores Hélio Nogueira da Cruz, Flávio Azevedo Marques Saes e Guilherme Grandi, da Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade (FEA) da USP, e está disponível neste link.

quarta-feira, 4 de maio de 2022

Arnaldo Godoy: um intelectual que adentra no Instituto Histórico e Geográfico do DF (5/05/2022): discurso de saudação, Paulo Roberto de Almeida

 Terei o prazer de saudar o novo acadêmico do Instituto Histórico e Geográfico do DF, meu colega e amigo Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy, que assume na cadeira que tem como patrono Clovis Bevilaqua, o mais longevo Consultor Juridico do Itamaraty, de 1906 a 1934.


Resumo do CV do Lattes, que tem 165 páginas no formato miúdo do padrão CNPq, mas pode alcançar 345 páginas, em Times NewRoman 12, interlinha simples.



  Livre docente em Teoria Geral do Estado pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo-USP.Professor Visitante na Faculdade Nacional de Direito de Nova Délhi (Índia), na Faculdade de Direito daUniversidade da Califórnia-Berkeley, na Universidade de Pretória (África do Sul) e no Instituto Max-Planck deHistória do Direito Europeu- Frankfurt (Alemanha). Pós-doutorado em Direito Comparado na Universidade deBoston, em Direito Constitucional pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul-PUC-RS, emLiteratura no Departamento de Teoria Literária da Universidade de Brasília-UnB e em História do Direito naFaculdade de Direito da Universidade de Brasília-UnB. Doutor e Mestre em Filosofia do Direito e do Estado pelaPontifícia Universidade Católica de São Paulo-PUC-SP. MBA em Direito Comunitário Europeu pela FundaçãoGetúlio Vargas e pela Escola de Administração Fazendária- Brasília. Pós-graduação em Filosofia e Bacharel emDireito pela Universidade Estadual de Londrina- PR. Consultor-Geral da União (fevereiro de 2011 a junho de2015). . Procurador-Geral Adjunto na Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional (outubro de 2015 a janeiro de2016). Procurador da Fazenda Nacional Aposentado (concurso de 1993). Vencedor do prêmio Capes, orientaçãomelhor tese em Direito, 2018. Advogado em Brasília. 

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Minha saudação a ele, com base num resumo de sua imensa produção intelectual:

Saudação a Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy


Tomada de posse em 5 de maio de 2022, cadeira Clovis Beviláqua

Recepção por Paulo Roberto de Almeida, cadeira Tobias Barreto

 

Bacharel em direito, formado pela Universidade Estadual de Londrina, onde lecionou direito romano. Após a formatura, fez uma especialização em filosofia: história do pensamento brasileiro, que concluiu com um trabalho sobre a Lei da Boa Razão, que fixou o iluminismo jurídico da era pombalina.

Tirou o mestrado na PUC-SP, com pesquisa sobre as relações entre direito e literatura; explorando, especialmente a desilusão jurídica em Monteiro Lobato. Doutorou-se pela PUC também, com tese sobre os limites da história do direito, com base no legado romântico da Grécia antiga. Vinha estudando grego moderno (por quase dez anos), e desenvolveu pesquisas na Grécia, especialmente em Tessalônica (que é de onde vinha Aristóteles). Seguiu para um pós-doutoramento na Universidade de Boston, na qualidade de Hubert Humphrey Fellow, uma bolsa concedida pelo governo norte-americano. Pesquisou o direito dos Estados Unidos, e voltou com dois livros publicados (em português): um sobre o direito norte-americano em geral e um segundo sobre o direito tributário naquele país. Seguiu para a livre-docência na USP, que defendeu em 2012, com tese sobre litigância intragovernamental, isto é, um tema de direito administrativo. 

Da defesa do doutorado em diante pesquisou e publicou sobre vários assuntos. Escreveu dois livros sobre direito internacional tributário, um livro sobre transação tributária, um sobre direito tributário diplomático, três livros sobre história do direito e um outro sobre a execução fiscal no direito comparado. 

Ao mesmo tempo, traduziu Roberto Mangabeira Unger (que conheceu em Harvard) e publicou três livros sobre o trabalho dele. 

A maior parte de seus estudos atuais consiste nas relações entre direito e cultura, com especial atenção nas relações entre direito e literatura e entre direito e história. Desde 2010 tem mantido uma coluna semanal na Revista Eletrônica Consultor Jurídico, os “embargos culturais”, espaço no qual comento livros e ideias. Ele costuma dizer que não tem ideias próprias, e que, no mais das vezes, expressa as ideias que lê nos livros, e que lê muito, mas muito mesmo. 

Pois eu acredito, sendo um seguidor contumaz dos seus petardos dominicais, que ele chama apropriadamente de “embargos culturais”, que o Arnaldo Godoy faz uma leitura original de cada livro resenhado, pois são bem mais do que simples resenhas, e sim resenhas-artigos, no modelo da New York Review of Books.

A par de crítica literária, confessa que fez um pouco de crítica de cinema também, sempre relacionando o cinema com a experiência jurídica. Tem inclusive um livro chamado “Direito e Cinema”. 

Nos últimos anos tem pesquisado para escrever biografias. Publicou um estudo sobre Tobias Barreto, que eu utilizei amplamente no meu discurso de posse na cadeira que tem o professor em mangas de camisa da Escola de Recife como patrono, e posso dizer que essa biografia, que recebeu aportes que Arnaldo Godoy foi buscar no Max Planck Institut da Alemanha, sob a forma dos autores alemães que ele leu no original, tendo sido um autodidata no aprendizado da língua germânica.

Atualmente, ele está avançando com uma biografia do jurista Francisco Campos, um dos grandes suportes jurídicos do Estado Novo varguista. 

Atualmente também pesquisa e prepara um livro sobre a teoria das fontes do direito.

Publicou com o jurista Ingo Sarlet, um professor de Porto Alegre, autor mais citado pelo Supremo Tribunal Federal, um livro sobre a História do Direito Constitucional Alemão, que consumiu quase 10 anos de muita pesquisa conjunta. 

Foi professor-pesquisador visitante na Universidade da California (Berkeley) onde pesquisou sobre o presidencialismo norte-americano. Esteve como pesquisador também no Instituto Max Planck de História do Direito Europeu (em Frankfurt), quando pesquisou justamente os autores alemães citados por Tobias Barreto. 

Lecionou em Nova Delhi (na Faculdade de Direito) e pesquisou na Universidade de Pretoria (também na Faculdade de Direito). Lecionou um curso na Universidade de New Brunswick (em Frederictown, no Canadá) e também na Universidad Católica do Chile (em Santiago). Palestrou em Buenos Aires e Lima sobre temas de direito tributário.

Atuou como Procurador da Fazenda Nacional de 1993 a 2021, com interregnos. Foi assessor de Ministro no Supremo Tribunal de Federal, Procurador-Geral Adjunto da Fazenda Nacional e Consultor-Geral da União. 

Atualmente, advoga como socio do escritório Hage & Navarro. Leciona no programa de pós-graduação e na graduação no Ceub (desde 2010). Lecionou na Universidade Católica de Brasília (de 2005 a 2010) e leciona também no Iesb (desde 2004).

 

Trata-se de um Currículo que, se traduzido no formato do Lattes, resultou em nada menos do que 457 páginas, o que deveria habilitá-lo a entrar no Guiness do Lattes.

Por outro lado, o que eu prezo mais do que tudo é a sua absoluta fidelidade aos livros, na verdade a todas as formas de comunicação escrita.

Cabe mencionar que, ademais da gigantesca tarefa de resenhas dominicais implacavelmente mantidas há mais de dez anos no Conjur, ele também dirige, com um colega do Paraná, Bruno Augusto Sampaio Fuga, a coleção Literatura para Juristas, da Editora Thoth, de Londrina, que já editou grandes nomes da literatura brasileira, entre eles Dom Casmurro e Esaú e Jacó, de Machado de Assis, ambos com densas introduções explicativas em torno das conexões entre o enredo dos livros e o Direito, com considerações jurídicas sobre os temas mais instigantes, entre eles as questões do nosso regime jurídico e constitucional, a transição entre o Império e a República e outras questões pertinentes. Mas Lima Barreto também entra nessa aventura de estudar o Direito através da literatura, e vários outros mestres da arte da escrita, notadamente no volume que contém o seu “Cemitério dos Vivos” e mais um do velho Machado, O Alienista, muito adequado aos tempos atuais. Fui convidado a oferecer meus préstimos a essa magnífica coleção, mas, sendo da tribo dos sociólogos, confesso minha incompetência para a missão. Ambos os organizadores assinam, ademais de uma introdução geral à coleção, uma introdução circunstanciada de todas as interfaces da obra reeditada com a ciência, a prática e a teoria do Direito, não apenas no estrito sentido bacharelesco, mas em conexão com a vida política do Brasil, no contexto da época na qual se desenvolve o enredo. Posso afirmar que se trata de algo absolutamente inédito na crítica brasileira, muito além de uma resenha crítica ou leitura anotada e sim uma profunda reflexão sobre como esses autores – e o herói é inevitavelmente o bruxo do Cosme Velho, o fundador da Academia Brasileira de Letras – traduziram as agruras jurídico-políticos dos personagens imersos no nosso sistema político constitucional e nos problemas corriqueiros da vida em sociedade: casamento, traição, dinheiro, emprego público, enfim, o usual costumeiro de Machado. A coleção deve ter 20 volumes, o que promete leitura para pelo menos meio ano, ou mais.

O trabalho de Arnaldo Godoy, no plano intelectual, é absolutamente fenomenal, e tenho certeza de que sua participação em nosso cenáculo enriquecerá sobremaneira nossos trabalhos e nossa produção intelectual.

Seja bem-vindo, Arnaldo, faça a radiografia jurídica do nosso Instituto e coloque seu bisturi analítico a serviço de nossas memórias dos tempos correntes ou já pensando nas recordações póstumas dos nossos primeiros 60 anos. 

Paulo Roberto de Almeida

Brasília, 5 de maio de 2022

O terceiro pós-guerra - Jorge Fontoura (CB)

 Meu amigo Jorge Fontoura publicou nesta quarta-feira 4 de maio de 2022 um rico e denso artigo sobre a atual situação do sistema internacional, a partir da guerra de agressão da Rússia contra a Ucrânia, como se pode constatar por esta imagem: 


 Entre várias outras considerações bastante válidas, Jorge Fontoura formula uma pergunta básica: 

"Seria a guerra na Ucrânia um fato histórico de transição de era, o fim da Idade Contemporânea?"

Tentarei responder a essa questão mais adiante.

Mas ele também pergunta, na imediata sequência: "Seria a natureza humana irremediavelmente insana?", ao que eu responderia também imediatamente que sim, mas não todos os humanos, só os ditadores mais arrogantes.

Mas, a segunda questão é relativamente secundária, pois sempre teremos insanos, populistas e demagogos entre nós, sendo mais relevante retornar à primeira questão: a guerra de agressão da Rússia e as sanções unilaterais tomadas ao seu encontro por diversos países produziram uma mudança sistêmica no cenário mundial e nas relações internacionais?

Provavelmente sim, mas não na magnitude esperada ao final do seu artigo, quando Jorge Fontoura menciona os acordos de Yalta como o prenúncio de uma nova era. Estávamos então na maior catástrofe geopolítica do século XX e de todos os séculos precedentes, deslocando para um ínfimo terceiro ou quarto lugar a tal "catástrofe geopolítica" da autoimplosão da União Soviética, muito equivocadamente magnificada pelo neoczar Putin. Não se pode esperar que dessa guerra localizada – mas com efeitos mundiais, pelas reações provocadas – saiam grandes arranjos quanto os que resultaram de Dumbarton Oaks, de Bretton Oaks, de Yalta e San Francisco. 

O que ocorrerá será um notável processo de "diminuição" (ou enxugamento) econômico da Rússia, talvez convertida em colônia econômica da China no espaço de alguns anos, dada a sabotagem contra sua oferta conduzida pelas potências ocidentais. Não se pode pensar tampouco numa substituição do dólar no sistema monetário internacional, a não ser marginalmente, já que não existem condições para que outras moedas assumam o seu papel. 

Mas se pode pensar num debate consistente sobre o fim do "direito de veto", um privilégio abusivo, derivado de uma paz armada em 1945, e que poderá ser revisto no espaço da próxima geração de estadistas, em consonância com a experiência presente, de se ter um agressor em condição de impor sua vontade a todos os demais (o que também ocorre, diga-se de passagem, com os EUA, capazes de impor sanções econômicas unilaterais a quase todos os demais países).

É um debate necessário, tanto porque esse poder exorbitante não existia no Conselho da Liga das Nações, e tampouco existe no plano do direito interno dos países, onde juízes com algum interesse no caso são chamados, ou institucionalmente comandados, a não participar de julgamento e decisão.

Vou continuar escrevendo sobre isto.

Paulo Roberto de Almeida

Brasilia, 4 de maio de 2022