Desigualdades
A Lei de Cotas dez anos após sua promulgação
Pesquisas mostram a relevância das políticas de ação afirmativa na redistribuição de oportunidades nas universidades federais
Flavio Carvalhaes
Rosana Heringer
Rodrigo Ednilson de Jesus
Melina Klitzke
Gabriela Honorato
Revista Quatro Cinco Um,
01mai2022 04h51 (01mai2022 07h51)
Este 2022 é um ano-chave para a Lei de Cotas (Lei nº 12.711, de 29/8/2012): celebramos uma década da mais importante política de ação afirmativa em âmbito nacional e está prevista na legislação uma revisão por parte do Congresso Nacional. Em qual direção a revisão vai caminhar — se é que vai caminhar — é uma questão em aberto. A experiência acumulada nesse período deve nortear a ação coletiva daqui para a frente. Discutir de onde viemos e para onde vamos em relação às cotas nas universidades é o objetivo deste texto.
As cotas são um tipo de política de ação afirmativa que tem como objetivo proporcionar maior igualdade de oportunidades para grupos historicamente em posição de desvantagem por meio de ações que ampliem a inserção desses grupos no sistema educacional, no mercado de trabalho, em serviços de saúde, entre outros.
A Lei de Cotas regula políticas de ação afirmativa no acesso ao ensino superior público federal com o objetivo de promover o ingresso nas universidades e instituições federais de ensino técnico de nível médio. A lei estabelece, em cada concurso seletivo, por curso e turno, o mínimo de 50% de reserva de vagas para aqueles que tenham cursado todo o ensino médio em escolas públicas. Metade dessas vagas deve ser reservada a estudantes com renda familiar de até 1,5 salário mínimo per capita. Independentemente da renda familiar, deve haver também uma subcota para autodeclarados pretos, pardos e indígenas, calculada em proporção igual à participação destes na população de cada unidade federativa, segundo o último recenseamento demográfico. A partir de 2016, a lei foi emendada para incluir uma subcota para pessoas com deficiência.
Desigualdades
Ações afirmativas no âmbito educacional são uma espécie de medida compensatória para reduzir as desigualdades. No caso, o acesso ao ensino superior. Mas qual era o nível de desigualdade observado que justificou esse tipo de iniciativa?
Podemos começar a responder a essa pergunta com dados de uma pesquisa que acompanhou por cinco anos os alunos que prestaram o Enem em 2012. Flavio Carvalhaes, Adriano Senkevics e Carlos Antônio Costa Ribeiro seguiram esses estudantes e verificaram, após cinco anos, a proporção de candidatos que efetivamente fizeram matrícula em uma instituição de ensino superior. Os pesquisadores dividiram os alunos em dez estratos de nota no Enem, das notas mais baixas às mais altas. Os resultados mostram que estudantes pobres entre os 10% de candidatos de notas mais baixas tinham uma probabilidade de 27% de acessar o ensino superior. Estudantes ricos do mesmo estrato de desempenho têm uma probabilidade de acesso de 78%. Esses números questionam a associação entre mérito e oportunidades educacionais, uma vez que estudantes ricos de baixo desempenho podem comprar uma oportunidade no mercado educacional. O sistema público de ensino é altamente competitivo, e estudantes com baixo desempenho não conseguem competir por essas vagas. Os estudantes mais ricos de baixo desempenho podem pagar por vagas no sistema privado, ao passo que os mais pobres não têm o mesmo privilégio.
As cotas foram uma inovação nas políticas públicas para promover o acesso à educação
O desenho da Lei de Cotas tem o foco justamente nos estudantes mais pobres, e seu objetivo é alavancar a probabilidade de um estudante pobre se matricular em uma instituição de ensino, desde que ele observe o patamar de desempenho mínimo na competição pela vaga que pleiteia.
Esses resultados podem ser complementados com outras estatísticas. Se nos voltarmos aos indicadores da desigualdade de acesso ao ensino superior veremos que, além das barreiras de renda, também encontramos barreiras raciais. Infelizmente, esse tipo de desigualdade foi e segue sendo uma característica marcante do sistema de ensino superior no país. Podemos mostrar isso olhando para como o passado do sistema educacional se faz presente na atualidade, comparando a proporção de pessoas que tinham concluído o ensino superior entre diferentes gerações e grupos raciais em um ano específico.
No ensino superior, há praticamente dois estudantes brancos para cada aluno preto ou pardo
Em 2019, na população com idade entre 60 e 64 anos, 13% concluíram o ensino superior. Entre brancos, a taxa é 19%; entre pardos, 7%; e entre pretos, 6%. Na geração de 30 a 34 anos, 20% dos brasileiros haviam concluído o ensino superior: entre brancos, a taxa é de 30%; entre pardos, 13%; e entre pretos, 11%. A comparação geracional mostra uma pequena melhora ao longo do tempo, expressa no aumento das proporções de pessoas jovens que concluíram o ensino superior. Mesmo assim, os pretos e pardos ainda não atingiram o patamar de conclusão dos brancos das gerações mais antigas! Esse resultado também está presente entre os ainda mais jovens, de 18 a 24 anos. Para cada estudante preto ou pardo matriculado ou formado no ensino superior no Brasil, há praticamente dois estudantes brancos.
As ações afirmativas foram iniciativas para reagir a tamanha desigualdade. Do ponto de vista histórico, as cotas foram uma inovação no âmbito de políticas públicas de promoção de acesso à educação que surgiram nos anos 2000. Entre 2001 e 2012, é possível identificar um primeiro período de sua implementação. Algumas experiências promoveram a reserva de vagas para certos grupos (pobres, negros, pardos, indígenas), enquanto outras iniciativas procuraram aumentar a competividade atribuindo bônus nas notas de estudantes pertencentes a esses grupos em processos seletivos. A primeira experiência de ações afirmativas foi implantada no sistema estadual de ensino superior do Rio de Janeiro em 2001, mediante lei estadual. Em 2004, o sistema de cotas foi adotado pela Universidade de Brasília (UnB), primeira instituição federal a implementar uma política dessa natureza. A partir de então, o número de instituições de ensino superior que adotaram programas de ação afirmativa aumentou gradativamente, alcançando, em 2012, a cifra de 42 entre 59 universidades federais, a maior parte delas beneficiando egressos do ensino médio público e/ou pretos, pardos e indígenas. Essa fase inicial de experimentação se coadunou com a lei federal de 2012, que padronizou o sistema de ações afirmativas nas escolas e institutos de ensino federais, assim como nas universidades.
Indicadores
Dez anos após sua promulgação, consolidação e experiência de múltiplas gerações que acessaram o ensino superior público federal acionando a política, é possível usar uma série de indicadores que descrevem essa experiência em múltiplas dimensões.
Resultados de pesquisas de Úrsula Mello e Adriano Senkevics apontam que a participação de estudantes que cursaram ensino médio público nas instituições federais cresceu de 55% para 63%. Se agruparmos estudantes pretos, pardos e indígenas em uma categoria (a sigla “ppi”, frequentemente acionada em discussões sobre o tema) e combinarmos a informação de onde esses estudantes cursaram o ensino médio, é possível identificar que a participação de estudantes PPI de escolas públicas aumentou de 28% para 38%. Esse é o perfil de estudante contemplado pela Lei de Cotas que teve o maior crescimento relativo no período.
Se deslocarmos nosso olhar para cursos específicos, podemos captar mudanças igualmente significativas. Úrsula Mello fez um exercício de acompanhar a adoção progressiva da Lei de Cotas nos cursos e como sua implementação afetou a presença de grupos desprivilegiados em todos, principalmente os cursos mais competitivos. Comparando o perfil dos estudantes antes de 2010 — portanto antes da lei —e depois de sua implementação, a pesquisadora mostra que foram os cursos com menos estudantes vindos da escola pública aqueles que mais mudaram. Isso permite afirmar que são os cursos previamente mais excludentes aqueles que foram os mais transformados pela política de ação afirmativa. Igualmente, são esses cursos — medicina, engenharias, direito — os que têm maior retorno no mercado de trabalho. Esse tipo de resultado aponta para duas direções positivas: a redistribuição de oportunidades educacionais na direção de grupos desprivilegiados e o aumento da representatividade de estudantes pretos, pardos e indígenas em profissões historicamente ocupadas, sobretudo, por estudantes brancos.
Um cuidado que devemos tomar ao analisar esses resultados é que a política de cotas não tem o objetivo de promover somente o acesso ao ensino superior. A avaliação também depende de os estudantes terem trajetórias de sucesso dentro do ambiente universitário. Uma forma de verificar isso é documentar o percurso dos estudantes e calcular se as taxas de evasão e conclusão dos alunos que entram via política de reserva de vagas é parecida com a de estudantes que entram na concorrência geral.
É possível acompanhar a geração que entrou no sistema de ensino superior federal em 2013, após a Lei de Cotas. As taxas de evasão após o primeiro ano entre alunos cotistas e não cotistas é muito parecida: 11% e 10% respectivamente. Em cursos variados, como arquitetura e urbanismo, engenharia civil, engenharia elétrica, medicina, veterinária e pedagogia, as taxas entre ingressantes em 2013 são igualmente próximas. Esses resultados corroboram pesquisas anteriores que sinalizavam que, embora venham de situações socioeconômicas relativamente menos privilegiadas, os estudantes cotistas têm resultados educacionais muito parecidos aos dos alunos não cotistas. Esse é um forte sinal de que os estudantes cotistas reconhecem e valorizam as oportunidades que alcançam.
Além dos números, é importante olhar para as experiências. Pesquisadores ligados ao Laboratório de Estudos e Pesquisas em Educação Superior da UFRJ e à associação civil Ação Educativa conversaram com estudantes, docentes e servidores de seis universidades federais brasileiras sobre o processo de implementação da Lei de Cotas. Foram analisados documentos institucionais, entrevistas e rodas de conversas com membros da comunidade acadêmica. Esses relatos apontam que as polêmicas e temores que marcaram os momentos iniciais do debate público sobre as ações afirmativas foram diluídos, a realidade da política se impôs e esses atores se adaptaram com sua convivência. Com efeito, nas entrevistas reportadas pela pesquisa não há menção contrária às cotas, seja por parte de docentes, servidores ou estudantes.
Por outro lado, há relatos sobre as dificuldades relacionadas à integração dos estudantes cotistas nas instituições. O novo perfil de alunos aumentou a demanda por programas de assistência estudantil e políticas de permanência, envolvendo auxílios financeiros, alimentação, moradia ou transporte. Em todas essas universidades, houve aumento em termos absolutos e relativos dos recursos aplicados nesses programas. Entretanto, o volume de benefícios concedidos é sempre menor do que a demanda, o que, por sua vez, nutre insatisfação e cobranças por parte dos estudantes.
O novo contingente de estudantes influencia outras dimensões da vida acadêmica
A pesquisa também investigou as ações desenvolvidas em termos de acompanhamento pedagógico e integração dos estudantes cotistas às universidades. Há um longo caminho a percorrer: as universidades não têm um bom programa de acompanhamento do desempenho e do percurso desses estudantes. De forma geral, há pouco conhecimento por parte dos coordenadores de curso sobre as dificuldades enfrentadas pelos cotistas, inclusive as acadêmicas. As pró-reitorias de assuntos estudantis ou equivalentes tendem a se concentrar na gestão dos benefícios financeiros e terminam por dar pouca atenção à dimensão pedagógica e à vivência cotidiana dos estudantes. Em algumas das universidades pesquisadas, existe uma instância institucional voltada para os estudantes pretos, pardos e indígenas, mas em muitos casos esses órgãos têm poucos recursos humanos e parca estrutura para atuar como gostariam. Esse tipo de relato sugere que a universidade pública passou a ter uma maior variedade de perfis de estudantes, com diferentes trajetórias, vivências e informações sobre o universo do ensino superior. Tais estudantes demandam bolsas e auxílios financeiros, mas também acolhimento, respeito, escuta, informação ampla sobre oportunidades acadêmicas e diálogo com diferentes instâncias da universidade. Destacamos, portanto, a importância de que as universidades federais ampliem seu compromisso com a permanência e o sucesso acadêmico de todos os estudantes, em particular dos que ingressam através da reserva de vagas.
Estética e identidade racial
Ainda, as alterações promovidas pela Lei de Cotas têm impacto em uma dimensão estética do corpo discente de grande parte das instituições de ensino superior, introduzindo nesses espaços outros modos de estar e lidar com o corpo e o cabelo. Esse novo contingente de estudantes começou a influenciar outras dimensões da vida acadêmica, do espaço da sala de aula, passando aos processos coletivos de politização da estética e da identidade racial. Em muitas universidades brasileiras temos visto o surgimento de grupos e coletivos que contribuem para a permanência simbólica de estudantes e para a formulação de críticas ao caráter por vezes elitista e eurocêntrico dos currículos dos cursos de graduação das universidades.
No momento em que a lei prevê uma avaliação dos seus resultados, as análises acima sinalizam algumas perspectivas. Em primeiro lugar, apontam para a necessidade da continuidade da reserva de vagas no acesso às instituições federais de ensino superior. Os projetos de lei atualmente em discussão no Congresso Nacional que preveem a continuidade da Lei de Cotas são bem-vindos, pois reconhecem a relevância dessa política. Os resultados de pesquisa indicam que, embora a Lei 12.711 não deva ser permanente, ela deve permanecer vigente até que seus objetivos sejam plenamente atingidos.
Seus resultados devem seguir sendo acompanhados, com ampliação das dimensões analisadas. Cabe perguntar se os resultados de cotistas e não cotistas são próximos ou distantes no mercado de trabalho. Estudantes contemplados ou não pelas ações afirmativas conseguem empregos na mesma velocidade? Com remuneração semelhante? Em áreas relacionadas aos cursos em que se formaram?
Ainda que novas perguntas possam ser feitas, as evidências mostram as mudanças significativas que a Lei de Cotas provocou nas universidades públicas brasileiras. Nossos campi estão mais parecidos com nossa sociedade, com estudantes pretos, pardos, indígenas e brancos, pobres e ricos convivendo, trocando experiências e promovendo o aprendizado. Após dez anos, esses resultados sinalizam que a experiência de ações afirmativas no ensino superior público brasileiro deve seguir com foco na renda e na raça dos estudantes para dar continuidade ao processo de redistribuição de oportunidades e promoção da representatividade nas universidades federais brasileiras
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