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terça-feira, 31 de maio de 2022

O mundo pós-pandemia: o que nos espera? Saúde pública, crises sanitárias - Paulo Roberto de Almeida



O mundo pós-pandemia: o que nos espera? Saúde pública, crises sanitárias

Paulo Roberto de Almeida Diplomata, professor (www.pralmeida.org; diplomatizzando.blogspot.com) Participação em aula de Christopher Bahia Mendonça, IBMEC-MG, no dia 2 de junho, 19:00.

A pandemia da Covid-19, que amainou, mas ainda não terminou – vide o caso da China, o vetor inicial e aparentemente o final da crise sanitária mundial –, teve enorme impacto sobre as sociedades nacionais e sobre a economia mundial: ademais de enormes punções demográficas sobre populações frágeis – idosos e habitantes de países pobres –, ela também afetou diferentes categorias de grupos humanos que colocaram a sua “liberdade” acima da questão da saúde pública, representada pela vacinação, o que foi o caso dos EUA e dos negacionistas como Bolsonaro e seguidores. Não existe nenhuma dúvida objetiva, de que um número muito superior de vítimas, quantitativamente aferidas, se encontra mais nos não vacinados do que entre os vacinados. Do ponto de vista econômico, ela perturbou cadeias de valor, interrompeu intercâmbios, paralisou fluxos de transportes, ao lado de um enorme impulso nos meios de comunicação eletrônicos, que se tornaram intensivos e extensivos.

Como se tornou evidente desde o primeiro momento da pandemia, não se conseguiu chegar a nenhum entendimento comumente partilhado entre as grandes potências sobre um tratamento multilateral coordenado da pandemia, e isso basicamente pela atitude agressiva, persistentemente adversária, do presidente Trump sobre como se deveria chamar o novo vetor da pandemia, que ele insistia em chamar de “vírus chinês”. A despeito de insistentes apelos do diretor-geral da OMS e até do secretário-geral da ONU, não houve meio de se instituir um comitê global de coordenação das ações preventivas, curativas e paliativas da pandemia. O mundo careceu, portanto, de uma instância de combate e de distribuição mais ou menos equânime dos meios de se paliar os efeitos da pandemia. Os países mais bem dotados de meios financeiros, tecnológicos, científicos e assistenciais conseguiram salvar boa parte da sua população, o que talvez não tenha sido o caso dos EUA e do Brasil, com um volume desproporcionalmente elevado de vítimas da pandemia, essencialmente por negacionismo.

Essa descoordenação global, que já estava em curso, notadamente desde o início do governo Trump – um opositor decidido do multilateralismo e da globalização e um defensor obtuso do nacionalismo protecionista –, agregou determinados problemas que se arrastavam desde a crise de 2008, quando aparece de maneira mais proeminente o papel da China na economia mundial. A partir desse momento, em lugar de adotarem uma postura compatível com a cooperação internacional em favor de um mundo mais aberto, mais interdependente e mais integrado no tratamento das questões globais – meio ambiente, direitos humanos, criminalidade internacional –, bem como da agenda normal de negócios internacionais, como comércio e desenvolvimento, investimentos e propriedade intelectual, os Estados Unidos passaram a encarar a China, não como uma competidora legítima nas transações globais, mas como uma adversária em busca de disputar o poder hegemônico em torno da ordem global.

Data de 2015 – antes, portanto, da eleição de Trump – a sabotagem americana do sistema de solução de controvérsias da OMC, a paralização de qualquer nova iniciativa de negociações comerciais multilaterais e a publicação de um livro extremamente controverso, o do professor de Harvard Graham Allison sobre a possibilidade de um enfrentamento belicoso entre a China e os EUA, no modelo da “armadilha de Tucídides” que ele extrapolou a partir de uma leitura enviesada do famoso clássico sobre a guerra do Peloponeso: Destined to War? Can America and China escape Thucydides’s Trap? (2a edição: 2017, no governo Trump; edição brasileira: A Caminho da Guerra: os Estados Unidos e a China conseguirão escapar da armadilha de Tucídides? 2020). Eu não hesito em classificar esse livro como o mais perigoso do mundo, depois do Mein Kampf de Hitler, de 1927, pelo seu potenciar de acirrar a postura adversária, que é, por excelência, a dos generais do Pentágono; que aqueles generais tenham uma postura paranoica é natural, mas que acadêmicos também a exibam é bem mais preocupante. Lembra um pouco a postura de um almirante argentino, Isaac Rojas, que, nos anos 1970, recomendava que a Argentina se dotasse de armas nucleares para evitar que o Brasil chantageasse a Argentina ao eventualmente usar a represa de Itaipu como uma arma natural potencial contra o seu país, pela liberação de comportas que poderiam, segundo ele, inundar Buenos Aires. A perspectiva de um novo conflito global é propriamente assustadora.

Sobre essa situação extremamente confusa, nas relações econômicas internacionais e agravadas pela descoordenação no caso da crise sanitária, a atuação revisionista da Rússia no cenário da Europa central e oriental veio agravar as tensões regionais europeias e mundiais. Poucos acreditavam que Putin ordenasse efetivamente uma invasão da Ucrânia, a despeito do fato que o presidente americano Joe Biden, com base em informes de inteligência, estivesse de certa forma “irradiando” para o mundo essa invasão, que finalmente ocorreu depois que os dois grandes adversários de outrora do comunismo mundial, a Rússia e a China, anunciassem em 4 de fevereiro uma “aliança sem limites”, o que pode ter incitado Putin a deslanchar a invasão (que tomou inclusive a China de surpresa). Não cabe culpar a OTAN, ou os membros vizinhos imediatos da Rússia, de qualquer provocação no plano da segurança. O que ocorreu, na verdade, é que, tanto a população da Ucrânia quanto a da Belarus, proclamaram a intenção de ver seus respectivos países aderirem à União Europeia, o que provavelmente despertou a ira de Putin, aliás desde 2014, quando manifestações ocorreram em ambos os países, e ele tomou isso como pretexto para anexar a península da Crimeia e intimidar aquelas populações.

O fato é que vivemos, no mundo atualmente, uma descoordenação quase estrutural do funcionamento dos principais organismos internacionais, uma quase impossibilidade de se chegar a um consenso mínimo entre as grandes potências sobre as questões mundiais mais relevantes – mesmo deixando de lado a guerra de agressão da Rússia –, num quadro que está se tornando quase inadministrável pelos efeitos persistentes da pandemia, agora agravados pela ruptura entre o chamado “Ocidente” e a Rússia, por causa da guerra na Ucrânia. Difícil predizer qual será a evolução do sistema internacional – se é possível falar em sistema – nos meses e semanas à frente, enquanto a guerra e as sanções econômicas persistirem. Não se trata apenas de questões de segurança – como as subjacentes à postura no mínimo adversária, potencialmente confrontacionista, entre os EUA e a China –, mas de definições básicas sobre como construir uma agenda global minimamente cooperativa entre os grandes atores, para o enfrentamento dos desafios globais, não apenas em meio ambiente, comércio e criminalidade internacional, mas também os desdobramentos da pandemia nas medidas que devem ser tomadas para a reativação dos grandes intercâmbios globais. Estamos assistindo, de fato, a um processo de desglobalização que veio para ficar, o nacionalismo e a autarquia econômica vieram para ficar, e o mundo poderá enfrentar novamente, como nos anos 1930, desafios aos sistemas multilaterais de pagamentos e de comércio?

Em vista desse cenário, qual deveria ser a postura do Brasil, de sua diplomacia, em face desses desafios? Difícil indicar, no momento, qualquer sinalização de política nacional em face, justamente, de indefinições persistentes da chefia do Executivo, nos principais vetores de políticas nacionais, econômicas ou diplomáticas. O chefe de governo se revela incapaz de sinalizar qualquer coisa além de seu projeto pessoal de reeleição, num momento de grande descrédito da imagem do Brasil no exterior, dada as posturas internas controversas em matéria de sustentabilidade e meio ambiente, de direitos humanos, de ameaças ao jogo democrático, assim como às próprias eleições. A credibilidade do Brasil no mundo já estava abalada pela destruição ambiental, pelo desprezo pelos direitos humanos e pelas regras da democracia, foi ainda mais agravada pela postura negacionista durante a pandemia e, agora, dificultada por uma recusa persistente de se unir ao Ocidente numa reação contra a Rússia pela sua guerra de agressão à Ucrânia e pela violação flagrante do Direito Internacional e da própria Carta da ONU. O Brasil ficou objetivamente do lado da Rússia, segundo alguns.

Quais são as perspectivas para o Brasil e para o mundo nesse confuso cenário interno e internacional? No caso do Brasil, a diplomacia não pode recuperar sozinha a política externa, na ausência de condições favoráveis no plano da política geral doméstica; terá de haver um novo governo, com orientações claras, não ideológicas, de forma a permitir que a diplomacia profissional ofereça os fundamentos de uma nova orientação para as relações internacionais e regionais do Brasil. No caso do mundo, a violação flagrante do Direito Internacional e a agressão bárbara da Rússia contra a Ucrânia acabaram solidificando os laços internos na União Europeia e fortalecendo, em lugar de enfraquecer, a aliança defensiva atlântica, ou seja, a OTAN, com a adesão de dois países nórdicos tradicionalmente neutros, a Suécia e a Finlândia (o que também trouxe uma sentença de morte para o conceito historicamente datado de “finlandização”).

Não é possível prever, neste momento ou no futuro próximo, os desdobramentos da situação criada pela agressão russa e pela “aliança sem limites” entre a Rússia e a China, duas autocracias hostis à tradicional hegemonia ocidental sobre os assuntos do mundo, mas também sobre as grandes orientações e as linhas básicas das relações internacionais e sobre a agenda de trabalho incorporando as principais questões da agenda corrente e futura das organizações multilaterais, assim como sobre as novas fronteiras dos temas globais. Não existe nenhuma fatalidade vinculada a essa fantasmagoria da “armadilha de Tucídides”; o que existe é um império que, ao recém completar cem anos de dominação sobre a economia global insiste em manter uma primazia absoluta nos temas estratégicos e políticos mundiais. A situação atual requer estadistas responsáveis, capazes de concertarem entre si os acordos possíveis na balança de poder, animados igualmente pela ideia de que a cooperação entre as grandes economias é uma condição essencial para a elevação dos padrões de vida nos países mais pobres, fontes de crises políticas, golpes de Estado, guerras civis, miséria e desespero, gerando imigração selvagem e calamidades sociais. Esta talvez seja um argumento mais próximo da Idealpolitik do que da Realpolitik que costuma orientar as políticas nacionais das grandes potências; cabe, no entanto, esperar que a primeira seja possível, para contornar as manifestações mais brutais da segunda.

 Paulo Roberto de Almeida 

Brasília, 4164: 30 maio 2022, 4 p.

 Referência a meu trabalho n. 3948.

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