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terça-feira, 31 de maio de 2022

O mundo pós-pandemia: o que nos espera? Saúde pública, crises sanitárias - Paulo Roberto de Almeida



O mundo pós-pandemia: o que nos espera? Saúde pública, crises sanitárias

Paulo Roberto de Almeida Diplomata, professor (www.pralmeida.org; diplomatizzando.blogspot.com) Participação em aula de Christopher Bahia Mendonça, IBMEC-MG, no dia 2 de junho, 19:00.

A pandemia da Covid-19, que amainou, mas ainda não terminou – vide o caso da China, o vetor inicial e aparentemente o final da crise sanitária mundial –, teve enorme impacto sobre as sociedades nacionais e sobre a economia mundial: ademais de enormes punções demográficas sobre populações frágeis – idosos e habitantes de países pobres –, ela também afetou diferentes categorias de grupos humanos que colocaram a sua “liberdade” acima da questão da saúde pública, representada pela vacinação, o que foi o caso dos EUA e dos negacionistas como Bolsonaro e seguidores. Não existe nenhuma dúvida objetiva, de que um número muito superior de vítimas, quantitativamente aferidas, se encontra mais nos não vacinados do que entre os vacinados. Do ponto de vista econômico, ela perturbou cadeias de valor, interrompeu intercâmbios, paralisou fluxos de transportes, ao lado de um enorme impulso nos meios de comunicação eletrônicos, que se tornaram intensivos e extensivos.

Como se tornou evidente desde o primeiro momento da pandemia, não se conseguiu chegar a nenhum entendimento comumente partilhado entre as grandes potências sobre um tratamento multilateral coordenado da pandemia, e isso basicamente pela atitude agressiva, persistentemente adversária, do presidente Trump sobre como se deveria chamar o novo vetor da pandemia, que ele insistia em chamar de “vírus chinês”. A despeito de insistentes apelos do diretor-geral da OMS e até do secretário-geral da ONU, não houve meio de se instituir um comitê global de coordenação das ações preventivas, curativas e paliativas da pandemia. O mundo careceu, portanto, de uma instância de combate e de distribuição mais ou menos equânime dos meios de se paliar os efeitos da pandemia. Os países mais bem dotados de meios financeiros, tecnológicos, científicos e assistenciais conseguiram salvar boa parte da sua população, o que talvez não tenha sido o caso dos EUA e do Brasil, com um volume desproporcionalmente elevado de vítimas da pandemia, essencialmente por negacionismo.

Essa descoordenação global, que já estava em curso, notadamente desde o início do governo Trump – um opositor decidido do multilateralismo e da globalização e um defensor obtuso do nacionalismo protecionista –, agregou determinados problemas que se arrastavam desde a crise de 2008, quando aparece de maneira mais proeminente o papel da China na economia mundial. A partir desse momento, em lugar de adotarem uma postura compatível com a cooperação internacional em favor de um mundo mais aberto, mais interdependente e mais integrado no tratamento das questões globais – meio ambiente, direitos humanos, criminalidade internacional –, bem como da agenda normal de negócios internacionais, como comércio e desenvolvimento, investimentos e propriedade intelectual, os Estados Unidos passaram a encarar a China, não como uma competidora legítima nas transações globais, mas como uma adversária em busca de disputar o poder hegemônico em torno da ordem global.

Data de 2015 – antes, portanto, da eleição de Trump – a sabotagem americana do sistema de solução de controvérsias da OMC, a paralização de qualquer nova iniciativa de negociações comerciais multilaterais e a publicação de um livro extremamente controverso, o do professor de Harvard Graham Allison sobre a possibilidade de um enfrentamento belicoso entre a China e os EUA, no modelo da “armadilha de Tucídides” que ele extrapolou a partir de uma leitura enviesada do famoso clássico sobre a guerra do Peloponeso: Destined to War? Can America and China escape Thucydides’s Trap? (2a edição: 2017, no governo Trump; edição brasileira: A Caminho da Guerra: os Estados Unidos e a China conseguirão escapar da armadilha de Tucídides? 2020). Eu não hesito em classificar esse livro como o mais perigoso do mundo, depois do Mein Kampf de Hitler, de 1927, pelo seu potenciar de acirrar a postura adversária, que é, por excelência, a dos generais do Pentágono; que aqueles generais tenham uma postura paranoica é natural, mas que acadêmicos também a exibam é bem mais preocupante. Lembra um pouco a postura de um almirante argentino, Isaac Rojas, que, nos anos 1970, recomendava que a Argentina se dotasse de armas nucleares para evitar que o Brasil chantageasse a Argentina ao eventualmente usar a represa de Itaipu como uma arma natural potencial contra o seu país, pela liberação de comportas que poderiam, segundo ele, inundar Buenos Aires. A perspectiva de um novo conflito global é propriamente assustadora.

Sobre essa situação extremamente confusa, nas relações econômicas internacionais e agravadas pela descoordenação no caso da crise sanitária, a atuação revisionista da Rússia no cenário da Europa central e oriental veio agravar as tensões regionais europeias e mundiais. Poucos acreditavam que Putin ordenasse efetivamente uma invasão da Ucrânia, a despeito do fato que o presidente americano Joe Biden, com base em informes de inteligência, estivesse de certa forma “irradiando” para o mundo essa invasão, que finalmente ocorreu depois que os dois grandes adversários de outrora do comunismo mundial, a Rússia e a China, anunciassem em 4 de fevereiro uma “aliança sem limites”, o que pode ter incitado Putin a deslanchar a invasão (que tomou inclusive a China de surpresa). Não cabe culpar a OTAN, ou os membros vizinhos imediatos da Rússia, de qualquer provocação no plano da segurança. O que ocorreu, na verdade, é que, tanto a população da Ucrânia quanto a da Belarus, proclamaram a intenção de ver seus respectivos países aderirem à União Europeia, o que provavelmente despertou a ira de Putin, aliás desde 2014, quando manifestações ocorreram em ambos os países, e ele tomou isso como pretexto para anexar a península da Crimeia e intimidar aquelas populações.

O fato é que vivemos, no mundo atualmente, uma descoordenação quase estrutural do funcionamento dos principais organismos internacionais, uma quase impossibilidade de se chegar a um consenso mínimo entre as grandes potências sobre as questões mundiais mais relevantes – mesmo deixando de lado a guerra de agressão da Rússia –, num quadro que está se tornando quase inadministrável pelos efeitos persistentes da pandemia, agora agravados pela ruptura entre o chamado “Ocidente” e a Rússia, por causa da guerra na Ucrânia. Difícil predizer qual será a evolução do sistema internacional – se é possível falar em sistema – nos meses e semanas à frente, enquanto a guerra e as sanções econômicas persistirem. Não se trata apenas de questões de segurança – como as subjacentes à postura no mínimo adversária, potencialmente confrontacionista, entre os EUA e a China –, mas de definições básicas sobre como construir uma agenda global minimamente cooperativa entre os grandes atores, para o enfrentamento dos desafios globais, não apenas em meio ambiente, comércio e criminalidade internacional, mas também os desdobramentos da pandemia nas medidas que devem ser tomadas para a reativação dos grandes intercâmbios globais. Estamos assistindo, de fato, a um processo de desglobalização que veio para ficar, o nacionalismo e a autarquia econômica vieram para ficar, e o mundo poderá enfrentar novamente, como nos anos 1930, desafios aos sistemas multilaterais de pagamentos e de comércio?

Em vista desse cenário, qual deveria ser a postura do Brasil, de sua diplomacia, em face desses desafios? Difícil indicar, no momento, qualquer sinalização de política nacional em face, justamente, de indefinições persistentes da chefia do Executivo, nos principais vetores de políticas nacionais, econômicas ou diplomáticas. O chefe de governo se revela incapaz de sinalizar qualquer coisa além de seu projeto pessoal de reeleição, num momento de grande descrédito da imagem do Brasil no exterior, dada as posturas internas controversas em matéria de sustentabilidade e meio ambiente, de direitos humanos, de ameaças ao jogo democrático, assim como às próprias eleições. A credibilidade do Brasil no mundo já estava abalada pela destruição ambiental, pelo desprezo pelos direitos humanos e pelas regras da democracia, foi ainda mais agravada pela postura negacionista durante a pandemia e, agora, dificultada por uma recusa persistente de se unir ao Ocidente numa reação contra a Rússia pela sua guerra de agressão à Ucrânia e pela violação flagrante do Direito Internacional e da própria Carta da ONU. O Brasil ficou objetivamente do lado da Rússia, segundo alguns.

Quais são as perspectivas para o Brasil e para o mundo nesse confuso cenário interno e internacional? No caso do Brasil, a diplomacia não pode recuperar sozinha a política externa, na ausência de condições favoráveis no plano da política geral doméstica; terá de haver um novo governo, com orientações claras, não ideológicas, de forma a permitir que a diplomacia profissional ofereça os fundamentos de uma nova orientação para as relações internacionais e regionais do Brasil. No caso do mundo, a violação flagrante do Direito Internacional e a agressão bárbara da Rússia contra a Ucrânia acabaram solidificando os laços internos na União Europeia e fortalecendo, em lugar de enfraquecer, a aliança defensiva atlântica, ou seja, a OTAN, com a adesão de dois países nórdicos tradicionalmente neutros, a Suécia e a Finlândia (o que também trouxe uma sentença de morte para o conceito historicamente datado de “finlandização”).

Não é possível prever, neste momento ou no futuro próximo, os desdobramentos da situação criada pela agressão russa e pela “aliança sem limites” entre a Rússia e a China, duas autocracias hostis à tradicional hegemonia ocidental sobre os assuntos do mundo, mas também sobre as grandes orientações e as linhas básicas das relações internacionais e sobre a agenda de trabalho incorporando as principais questões da agenda corrente e futura das organizações multilaterais, assim como sobre as novas fronteiras dos temas globais. Não existe nenhuma fatalidade vinculada a essa fantasmagoria da “armadilha de Tucídides”; o que existe é um império que, ao recém completar cem anos de dominação sobre a economia global insiste em manter uma primazia absoluta nos temas estratégicos e políticos mundiais. A situação atual requer estadistas responsáveis, capazes de concertarem entre si os acordos possíveis na balança de poder, animados igualmente pela ideia de que a cooperação entre as grandes economias é uma condição essencial para a elevação dos padrões de vida nos países mais pobres, fontes de crises políticas, golpes de Estado, guerras civis, miséria e desespero, gerando imigração selvagem e calamidades sociais. Esta talvez seja um argumento mais próximo da Idealpolitik do que da Realpolitik que costuma orientar as políticas nacionais das grandes potências; cabe, no entanto, esperar que a primeira seja possível, para contornar as manifestações mais brutais da segunda.

 Paulo Roberto de Almeida 

Brasília, 4164: 30 maio 2022, 4 p.

 Referência a meu trabalho n. 3948.

segunda-feira, 25 de maio de 2020

O mundo pós-pandemia: resumo para o programa do Livres - Paulo Roberto de Almeida

O mundo pós-pandemia: resumo para o programa do Livres 

Paulo Roberto de Almeida
Rascunho para debate público online para o Livres, no dia 25/05/2020
na companhia do embaixador Rubens Ricupero e da economista Sandra Rios. 

A presente nota se dedica, numa primeira parte, a resumir o trabalho já elaborado para este debate e ao qual se pode recorrer para maiores detalhes: “O mundo pós-pandemia: contextos políticos e tendências internacionais” – disponível na plataforma Academia.edu (link: https://www.academia.edu/43123473/O_mundo_pos-pandemia_contextos_politicos_e_tendencias_internacionais_2020_) –, a que se seguem mais alguns comentários sobre a questão selecionada para debate, bem como sobre a situação recente da diplomacia do Brasil, o atual “homem doente da América do Sul”. 

Adivinhos, oráculos e previsões
Debates online: fadiga pós-pandêmica, ou então substituirão os encontros físicos;
Minhas previsões imprevidentes...; companheiros ajudavam (ética na política...); os atuais fazem besteiras previsíveis;

Mudanças e continuidades, com pandemias que vão e que voltam
A verdade é que não sabemos como será o mundo pós-pandêmico;
Emb. Ricupero alerta que não será muito diferente; pandemias não mudam estruturas longas, à la Braudel;
Depois do terremoto de 14-18, o mundo continuou mais ou menos como antes;
Pacto Briand-Kellog, 1928; Japão invade a Manchúria em 1931; rearmamento alemão em 1933; Itália inicia guerra contra a Abissínia em 1937; 

Contextos nacionais e forças transnacionais
Mudanças já estavam em curso desde antes, entre elas o nacionalismo e os retrocessos protecionistas, que aliás antecedem Trump;
Ou seja, já estávamos em mundo novo antes da pandemia; só o Brasil desapareceu do mundo, e isso também antes da pandemia; agora, então, simplesmente não existimos, ou apenas existimos como mau exemplo;

Globalização micro e macro: qual avança, qual recua?
A verdadeira globalização, a micro;
A antigloblização, a macro;

Da Guerra Fria geopolítica a Guerra Fria econômica: quem perde, quem ganha?
Uma das coisas mais impactantes que constatei nos tempos recentes – e isso não está em meu paper – foi a rendição dos acadêmicos americanos à paranoia do Pentágono
Isso já estava um pouco visível nos debates sobre a Grande Estratégia nos EUA, até em Yale, com o biógrafo de Kennan, John Lewis Gaddis, e em Harvard, Graham Ellison, autor do famoso livro sobre a Essência da Decisão (Cuba, 1962)
John Lewis Gaddis tem aliás um livrinho sobre o fim da Guerra Fria: o Ocidente venceu
Bem, agora saímos da Guerra Fria Geopolítica e estamos na Guerra Fria Econômica.\

Como será, então, o mundo pós-pandemia: muito diferente do atual?
Para ser sincero, não tenho a menor ideia de como será o mundo pós-pandemia
A Grande Depressão pode ser agora uma Super Depressão; Chimerica de Ferguson
Infelizmente, para o Brasil, dada a má qualidade de nossas elites dirigentes, assim como devido à péssima qualidade daqueles que ocupam o poder político no presente momento, esse futuro é o mais incerto possível, oscilando entre o precário e o desastroso. Não consigo detectar governo tão medíocre, tão miserável, tão prejudicial à nação, ao Estado, ao país, quanto o atual desgoverno que teve início em 1º de janeiro de 2019: não sabemos ainda quando terminará...

Mundo pós-pandemia: não muito diferente do atual
O mundo não mudará muito, em suas estruturas fundamentais, mas mudanças tópicas podem ser relevantes;
A pandemia traz desemprego, sofrimento e pobreza, mas não provocará nem uma revolução social, nem grandes rupturas políticas;
Se houver mudanças de governos será mais como resultado do desgaste do existentes, por ineficácia em lidar com as consequências da pandemia;
As mudanças econômicas serão adaptativas aos impactos trazidos pela doença com algumas inovações importantes, em produtos e métodos (todas as guerras fazem isso);
Lideranças medíocres, como a nossa, atrasarão essas mudanças adaptativas no campo econômico e retardarão ainda mais suas sociedades do que o mero impacto da doença.

O “Homem Doente da América do Sul”? 
Esse conceito de “homem doente” foi empregado pela primeira vez para o caso da China, na última década do século XIX, e esse “homem doente” era o Império Qing, decadente, tanto que veio a termo apenas três anos depois que a Imperatriz Cixi morreu, em 1908. Contemporaneamente, o outro “homem doente” da Ásia, ou da Europa, pele menos parcialmente, era o Império Otomano, que se desfez nos muitos desastres da Grande Guerra, que também desmantelaram três outros grandes impérios europeus: o dos Habsburgos, na Áustria-Hungria, o dos Romanov, na Rússia czarista, e o dos Hoenzollerns, do Reich alemão, prussiano de origem. 
Mas não se pense que o termo possa ser exclusivo dessas situações-limite, decaindo como resultado de grandes conflitos bélicos, de guerras civis, de revoluções ou de ataques de potências estrangeiras, como também no caso da China imperial, e da própria República presidida por Sun Yat-Sen. Lembro-me que no começo deste século a Economist dedicou um editorial, artigos e uma ilustração de capa, para no novo “homem doente da Europa”, a Alemanha, antes que ela começasse as reformas que reforçariam a sua taxa de crescimento, o seu desemprego, o crescimento indesejado do já alto custo do trabalho, impactando sua competitividade internacional. Ou seja, ninguém escapa de cair no qualificativo desonroso, por razões geralmente vinculados a uma fase de declínio.
Pois agora chegou a vez do Brasil. Creio que já se pode chamar o Brasil de o “homem doente da América do Sul”, e não apenas por causa da nossa evolução trágica nos números cumulativos de infectados pelo Covid-19 e pelo volume de mortos. Nossos vizinhos já tinham percebido isso, e por isso mesmo declarado o fechamento de suas fronteiras e outras comunicações com o Brasil. Nosso país se tornou o “homem doente da América do Sul” a mais de um título, sobretudo no plano diplomático, na esfera dos direitos humanos, no respeito às liberdades fundamentais e no respeito à imprensa, assim como no terreno do meio ambiente e do cumprimento de compromissos assumidos no âmbito de acordos internacionais nessa área. Já dizia o embaixador Ricupero, ainda no governo de transição presidido pelo vice-presidente Michel Temer, que ninguém quer tirar foto ao lado do Brasil. Se isso era verdade em 2017, é bem mais atualmente. Como ele também disse, o Brasil virou um “pária internacional”, um verdadeiro proscrito da diplomacia mundial, um personagem anômalo nos foros internacionais e regionais. 
Essa não é, evidentemente, a opinião do chanceler, expressa na famosa reunião ministerial do dia 22 de abril, no Palácio do Planalto. Em meio aos muitos palavrões do presidente, o chanceler declarou que o Brasil poderia fazer parte de uma espécie de novo Conselho de Segurança que seria formado em um mundo pós-pandemia. Ele disse o seguinte, de acordo com a transcrição autorizada pelo ministro Celso de Mello:
Eu  [sic] cada vez mais convencido de que o Brasil tem hoje as condições, tem a oportunidade de se sentar na mesa de quatro, cinco, seis países que vão definir a nova ordem mundial. (...)
Eu acho que é verdade e assim como houve um Conselho de Segurança que definiu a ordem mundial, cinco países depois da... da segunda guerra, vai haver uma espécie de novo é ... [sic] Conselho de Segurança e nós temos, dessa vez, a oportunidade de  [sic] nele e acreditar na possibilidade de o Brasil influenciar e forma... ajudar a formatar um novo é ... cenário. (...)
E esse cenário é, ... eu acho que ele tem que levar em conta o seguinte é ... tamos [sic] aí revendo os últimos trinta anos de globalização. Vai haver uma nova globalização.
Que que aconteceu nesses trinta anos? Foi uma globalização cega para o tema dos valores, para o tema da democracia, da liberdade. Foi uma globalização que, a gente  [sic] vendo agora, criou é ... um modelo onde no centro da economia internacional está um país que não é democrático, que não respeita direitos humanos etc., ? [sic]

Tanto quanto o ainda presidente da Comissão de Relações Exteriores da Câmara dos Deputados, o filho 02 do presidente, o chanceler também acredita que o momento do Brasil inspira grande confiança e pode se refletir em prestígio internacional. Não se pode, evidentemente, evitar que determinadas pessoas entretenham ilusões sobre a imagem do Brasil no mundo, ou sobre sua capacidade de influenciar temas e políticas da agenda internacional. O que se pode fazer é manter uma visão realista, sóbria, sobre a inserção atual do Brasil no sistema internacional, e constatar, ou melhor, indagar com quais países, ou em quais áreas, o Brasil poderia manter relações estreitas, assinar novos acordos bilaterais ou plurilaterais, ter confirmadas as suas duas principais ambições do momento – a entrada em vigor do acordo Mercosul-UE e o ingresso na OCDE – ou receber convites e aceitar visitas, de trabalho ou de Estado, com quais chefes de governo ou de Estado dispostos a cultivar relações com o Brasil atual. Numa recente reunião do Conselho de Segurança das Nações Unidas, para marcar os 75 anos do final da Segunda Guerra Mundial e a vitória das Nações Aliadas contra o nazifascismo, o chanceler aproveitou para lançar um novo ataque a propósito dos riscos do comunismo, tendo ainda recomendado que se evitasse a palavra multilateralismo, uma vez que todos os conceitos terminados em “ismo” poderiam denotar fenômenos essencialmente negativos. 
Registre-se que nas áreas de meio ambiente, de direitos humanos, de luta contra a corrupção, de relações bilaterais com boa parte de importantes países da Europa ocidental, ou até no âmbito do Brics, mas sobretudo no campo das relações regionais, o leque de possibilidades abertas ao engenho e arte da diplomacia profissional tem se reduzido de maneira substantiva desde o início do governo Bolsonaro. Já tendo, de partida, anunciado sua oposição ao multilateralismo – em nome de um difuso e nunca explicado antiglobalismo –, as relações do governo com o sistema da ONU – em especial com a OMS, em plena pandemia – são as piores possíveis, a ponto de obstar a convites para determinados encontros, em vista das críticas do presidente e do chanceler às posturas adotadas nesses organismos, e não apenas em relação à luta contra o Covid-19. 
Sintetizando, como diplomata profissional, posso testemunhar que nunca, em minhas quatro décadas a serviço do Itamaraty – com alguns intervalos, como durante toda a duração dos governos petistas, e atualmente, quando também me encontrei afastado do trabalho executivo –, mas também com base na leitura da história, deparei-me com tal desprestígio do Brasil no plano internacional, com um tal rebaixamento dos padrões profissionais do Itamaraty e com um abandono inédito de teses, posturas e dos métodos de trabalho da diplomacia brasileira e da política externa brasileira: trata-se, seguramente, de uma era deprimente da política externa e das relações internacionais do Brasil, uma fase a que eu não hesito em chamar de EA, a Era dos Absurdos. 
Se olharmos para trás, na longa evolução do Serviço Exterior do Brasil, desde a sua independência, e a dois anos de comemorarmos, em 2022, os primeiros dois séculos da existência da nação independente, podemos certamente constatar, como afirmou o embaixador Rubens Ricupero, em seu livro A diplomacia na construção do Brasil, 1750-2016(2017), que nossa política externa e o pessoal profissional e os estadistas nela envolvidos participaram efetivamente da consolidação de um Estado atuante, um dos mais sofisticados dentre as nações que surgiram do colonialismo ibérico, caracterizado por uma atuação de alta qualidade, de excelência mesmo, como reconhecido inclusive por parceiros de nações avançadas e com diplomacias bem mais longevas. Infelizmente, essa tradição admirável vem sendo deliberadamente constrangida, sabotada, deformada e diminuída desde o início do governo atual. Haverá um trabalho de reconstrução a ser feito como já registrado no chamado “manifesto dos chanceleres”, publicado nos grandes jornais brasileiros no dia 8 de maio de 2020 (ler a versão em português neste link: https://www.academia.edu/43153794/A_reconstrucao_da_politica_externa_brasileira_2020_; a versão em inglês, encontra-se disponível aqui: https://www.academia.edu/43042244/The_Reconstruction_of_Brazilian_Foreign_Policy_-_Former_Ministers).
Uma transcrição de seus principais parágrafos traz algumas evidências quanto à lamentável situação atual da política externa e da diplomacia brasileira: 
É suficiente cotejar os ditames da Constituição com as ações da política externa para verificar que a diplomacia atual contraria esses princípios na letra e no espírito. Não se pode conciliar independência nacional com a subordinação a um governo estrangeiro cujo confessado programa político é a promoção do seu interesse acima de qualquer outra consideração. Aliena a independência governo que se declara aliado desse país, assumindo como própria uma agenda que ameaça arrastar o Brasil a conflitos com nações com as quais mantemos relações de amizade e mútuo interesse. Afasta-se, ademais, da vocação universalista da política externa brasileira e de sua capacidade de dialogar e estender pontes com diferentes países, desenvolvidos e em desenvolvimento, em benefício de nossos interesses.
Outros exemplos de contradição com os dispositivos da Constituição consistem no apoio a medidas coercitivas em países vizinhos, violando os princípios de autodeterminação e não intervenção; o voto na ONU pela aplicação de embargo unilateral em desrespeito às normas do direito internacional, à igualdade dos Estados e à solução pacífica dos conflitos; o endosso ao uso da força contra Estados soberanos sem autorização do Conselho de Segurança da ONU; a aprovação oficial de assassinato político e o voto contra resoluções no Conselho de Direitos Humanos em Genebra de condenação de violação desses direitos; a defesa da política de negação aos povos autóctones dos direitos que lhes são garantidos na Constituição, o desapreço por questões como a discriminação por motivo de raça e de gênero. 
Além de transgredir a Constituição Federal, a atual orientação impõe ao País custos de difícil reparação como desmoronamento da credibilidade externa, perdas de mercados e fuga de investimentos. (...)
Na América Latina, de indutores do processo de integração, passamos a apoiar aventuras intervencionistas, cedendo terreno a potências extrarregionais. Abrimos mão da capacidade de defender nossos interesses, ao colaborarmos para a deportação dos Estados Unidos em condições desumanas de trabalhadores brasileiros ou ao decidir por razões ideológicas a retirada da Venezuela, país limítrofe, de todo o pessoal diplomático e consular brasileiro, deixando ao desamparo nossos nacionais que lá residem. (..)
A reconstrução da política exterior brasileira é urgente e indispensável. Deixando para trás essa página vergonhosa de subserviência e irracionalidade, voltemos a colocar no centro da ação diplomática a defesa da independência, soberania, da dignidade e dos interesses nacionais, de todos aqueles valores, como a solidariedade e a busca do diálogo, que a diplomacia ajudou a construir como patrimônio e motivo de orgulho do povo brasileiro.

O trabalho de reconstrução será efetivamente duro e demorado. Assim faremos.

Paulo Roberto de Almeida 
Brasília, 25/05/2020

sexta-feira, 15 de maio de 2020

O mundo pós-pandemia - Ricupero, Paulo Almeida, Sandra Rios

O mundo pós-pandemia: contextos políticos e tendências internacionais
Rubens Ricupero, Paulo Roberto de Almeida e Sandra Rios
LIVRES

Programado para 25/05/2020 19:00

Qual o impacto da pandemia nas relações internacionais? Como a crise do Coronavírus vai afetar a relação entre Estados Unidos e China? Como as democracias liberais devem se relacionar com as autocracias? Os valores de liberdade individual estão em risco? A globalização e o livre mercado serão substituídos por isolacionismo e protecionismo? E o Brasil em meio a isso tudo?

Vamos debater tudo isso neste #LivresAoVivo desta segunda-feira, com os ilustres convidados Rubens Ricupero, Paulo Roberto de Almeida e Sandra Rios.

Quem são os convidados?
Rubens Ricupero é um jurista, historiador e diplomata brasileiro com proeminente atividade de economista. Ricupero é presidente honorário do think tank Instituto Fernand Braudel de Economia Mundial. Foi ministro da Fazenda de 30 de março a 6 de setembro de 1994, durante o período de implantação do Plano Real.

Paulo Roberto de Almeida é Doutor em Ciências Sociais, Mestre em Planejamento Econômico e diplomata de carreira. Foi professor de Sociologia Política no Instituto Rio Branco e na Universidade de Brasília. Foi Diretor do Instituto Brasileiro de Relações Internacionais (IPRI), afiliado à Fundação Alexandre de Gusmão (Funag), do Ministério das Relações Exteriores.

Sandra Rios é economista, diretora do CINDES e sócia da Ecostrat Consultores. Especialista em temas relacionados a negociações comerciais internacionais e a política de comércio exterior. Foi coordenadora da Unidade de Integração Internacional da Confederação Nacional da Indústria e pesquisadora do IPEA