sexta-feira, 19 de maio de 2023

A inserção econômica internacional do Brasil em perspectiva histórica (1999) - Paulo Roberto de Almeida

 Um artigo antigo, que cabe verificar se ainda se sustenta (dos tempos do FHC, antes de Lula): 

713. “A inserção econômica internacional do Brasil em perspectiva histórica”, Washington, 20 outubro 1999, 15 p. Publicado em Cadernos Adenauer 2, “O Brasil no cenário internacional” (São Paulo: Fundação Konrad Adenauer, 2000, p. 37-56). Divulgado na plataforma Academia.edu (link: https://www.academia.edu/49115167/A_insercao_economica_internacional_do_Brasil_em_perspectiva_historica_1999_). Anunciado no blog Diplomatizzando (3/06/2021; link: https://diplomatizzando.blogspot.com/2021/06/a-insercao-economica-internacional-do.html). Relação de Publicados n° 252.

A inserção econômica internacional do Brasil em perspectiva histórica

 
Paulo Roberto de Almeida

Sociólogo. Diplomata.

Cadernos Adenauer 2, “O Brasil no cenário internacional”

São Paulo: Fundação Konrad Adenauer, 2000, pp. 37-56).

 

O crescimento da economia brasileira registrou grande dinamismo no século XX, pelo menos até seu último quarto: a taxa de expansão do PIB, entre 1870 e 1987, foi de 4,4% ao ano, em média, desempenho poucas vezes igualado na história mundial (Maddison, 1989). Entre 1870 e 1987, o PIB brasileiro foi multiplicado 157 vezes, contra apenas 84 vezes para o Japão e 53 para os Estados Unidos, as duas outras economias de grande dinamismo desde o início da segunda Revolução Industrial. Mesmo considerando-se apenas o período final desse corte temporal, o desempenho da economia brasileira foi impressionante: entre 1957 – data decisiva no processo de modernização brasileira, com a implantação da indústria automobilística – e 1986, a expansão do PIB brasileiro foi de 594,9%, contra um aumento acumulado de apenas 150,4% para o PIB dos Estados Unidos. Em consequência, a distância que separava o PIB nominal brasileiro do dos EUA foi encurtada: de mais de 44 vezes, em 1957, para “apenas” 16 vezes mais em 1986.

Entretanto, a despeito desse desempenho nominal, a economia que mais avançou em termos de renda per capita foi a do Japão, com um crescimento da ordem de 2,7% ao ano no mesmo período, contra apenas 2,1% para o Brasil, este penalizado pelo seu “dinamismo” demográfico. Com efeito, a razão para a diferença de crescimento líquido em relação ao Japão e aos Estados Unidos se situa na vertente do crescimento demográfico, duas vezes mais importante no Brasil ao longo do período, o que reduziu a expansão do seu PIB per capita. Entre o terço final do século XIX e meados do XX, o número de brasileiros triplicou: de um total de 10 milhões de habitantes em 1872 – primeiro recenseamento –, a população brasileira alcançou 41 milhões de pessoas em 1940 e 51 milhões em 1950, tendo triplicado desde então. A taxa de crescimento demográfico, que era de 2,34% ao ano entre 1940 e 1950, passou a 3,17% nos anos 50. Ela caiu para 2,91% ao ano entre 1960 e 1970 e mais ainda a partir dos anos 80 e 90, situando-se num patamar de relativo equilíbrio (menos de 1,6% ao ano), embora com taxas significativas para as zonas rurais e os estratos mais pobres da população.

Adicionalmente à “bomba demográfica”, que diluiu os frutos da expansão do produto, fatores externos a partir dos anos 70 (choques do petróleo em 1973 e 1979, crise da dívida externa em 1982) e obstáculos internos (aceleração da inflação, ruptura de confiança na administração e desorganização da economia) atuaram no sentido de reduzir o ritmo de crescimento. Em consequência, a distância entre o PIB nominal e o PIB per capita do Brasil em relação aos países mais avançados voltou a aumentar.

A estabilização econômica iniciada em 1994 não permitiu a retomada dos índices de crescimento que tinham caracterizado a economia no período mais intenso do processo industrializador. A globalização financeira ofereceu acesso aos capitais (para financiar os déficits em transações correntes), mas criou novos focos de instabilidade em virtude da inversão repentina de alguns desses fluxos. A fase de crises e de turbulências financeiras nas economias emergentes dos anos 1997-99, invertendo a (até então) “irresistível ascensão” das economias asiáticas – e levando muitas delas a um relativo declínio –, ainda está muito próxima para permitir ao observador uma análise isenta e de maior profundidade quanto à verdadeira tendência do ciclo econômico naquela região e, de modo geral, nas economias emergentes. Não há certeza quanto à natureza dos desenvolvimentos nessas economias, inclusive na brasileira, razão pela qual uma análise de tipo estrutural deve se deter na fixação das grandes tendências de desenvolvimento conhecidas no passado. Para a análise do desempenho econômico do Brasil no contexto do sistema mundial desde 1820 valemo-nos da metodologia e das informações compiladas em estudo comparativo do Prof. Angus Maddison (1995), cujos cálculos econométricos, apresentados na Tabela 1, formam a base dos parágrafos seguintes.

 

1. O Brasil de 1820 a 1870: partida difícil, baixa dispersão mundial

Em 1820, às vésperas de iniciar sua vida como Nação independente, o Brasil dispunha de um PIB per capita de 670 dólares, valor que representava cerca da metade da renda média das economias “desenvolvidas” de então (países da Europa ocidental, Estados Unidos, Canadá, Austrália), que se situava em torno de 1.235 dólares. O índice brasileiro estava um pouco abaixo do PIB per capita do Japão (704) e era 13% inferior ao do México (760). 

Em 1870, ou seja 50 anos depois, o Brasil apresenta um PIB per capita de 740 dólares, quase a metade do PIB per capita da Argentina (1.311), que despontava como fornecedor de produtos alimentares (carne e trigo) para os países europeus. A distância do PIB per capita brasileiro em relação à média européia tinha dobrado em meio século, amplitude ainda maior no caso dos EUA, cuja renda era de 2.748 dólares. Mas, o Brasil ultrapassou o México e alcançou o Japão, com 741 dólares per capita. O processo da dispersão de renda per capita entre os países começa a aprofundar-se com a revolução industrial e a aceleração da inovação técnico-científica nos países de cultura européia.

O crescimento real do Brasil nesse meio século tinha sido modesto, à razão de 0,2% de média anual, contra uma média aritmética de 0,9% para os países da Europa ocidental e de 1,3% para os EUA. Essa taxa foi, ainda assim, o dobro da experimentada pelo Japão “feudal”, que tinha conhecido, entre 1820 e 1870, um ritmo de apenas 0,1% de crescimento em seu PIB per capita. Não obstante seu fechamento ao mundo até 1870, o Japão nunca foi, contudo, colônia de exploração como o Brasil, que sempre acumulou “para fora”, mesmo depois de 1822. Em todo caso, a inserção econômica do Brasil era bem superior à do Japão, já que o país exportava, em 1870, cerca de 76 milhões de dólares (ou 7,8 dólares per capita), contra apenas 15 milhões de dólares, no total, para o país asiático (0,4 per capita), que tinha recém iniciado, lembre-se, seu processo de abertura para o exterior, no seguimento da “revolução Meiji”. O Reino Unido era então o líder mundial em exportações, com 971 milhões de dólares (31 dólares per capita), contra apenas 541 milhões para a França, 424 para a Alemanha e 403 para os EUA (14, 11 e 13 dólares per capita, respectivamente).

 

2. O Brasil de 1870 a 1900: crescimento modesto, ascensão do café

Em 1900, 30 anos depois, o Brasil conhece uma regressão no PIB per capita, reduzido a 704 dólares sob impacto do crescimento, ao passo que a Argentina dava uma arrancada, passando de 1.311 a 2.756 dólares, mais do que o dobro da média latino-americana (1.311) e um pouco inferior à média da Europa ocidental (2.899). O Japão também já tinha decolado para um PIB per capita de 1.135 dólares, ainda assim um valor quatro vezes inferior aos índices dos EUA (4.096) e do Reino Unido (4.593). O período era caracterizado por pequena intervenção do Estado na economia, liberdade dos fluxos de capital, moedas estáveis e conversíveis (o Brasil teve taxas de câmbio flutuantes) e um certo liberalismo no comércio internacional (com tarifas altas em países como Brasil e EUA e baixas no Reino Unido).

O Brasil apresentava, a despeito de ser o maior exportador de café e do boom da borracha, a menor renda per capita dos países mais importantes da América Latina, sendo ultrapassado pelo Chile (1.949), pelo México (1.157), pela Colômbia (973) e mesmo pelo Peru (817). O crescimento de seu PIB per capita foi modesto no período, uma vez que, entre 1870 e 1913, a taxa média anual foi de apenas 0,3%, contra 2,5% para a Argentina e 1,7% para o México. A taxa de crescimento estimada por Maddison foi de 1,5% para o continente, valor comparável ao crescimento anual médio do PIB dos países da Europa ocidental (1,3%), superior ao do Japão (1,4%), mas inferior ao dos EUA (1,8%) e do Canadá (2,2%).

 

3. O Brasil de 1900 a 1913: aumentam as distâncias internacionais

Em 1913, o PIB per capita do Brasil continuava a se situar em níveis modestos, de apenas 839 dólares, para uma média de 1.733 na América Latina. A Argentina, com 3.797 dólares, estava num patamar 4,5 vezes superior ao Brasil e superava a própria França, que apresentava um PIB per capita de “apenas” 3.452 dólares, bastante próxima à média européia. A distância do Brasil em relação aos países dinâmicos de cultura ocidental (Austrália, Canadá, Nova Zelândia e EUA) tinha se tornado bem maior, uma vez que estes, com uma renda média de 5.051 dólares, perfaziam 6 vezes o valor do PIB per capita do Brasil. 

O Japão, por sua vez, com um PIB per capita de 1.334 dólares em 1913, ainda estava bem abaixo da média européia ou dos ocidentais “periféricos” (ou da própria Argentina), mas conservava a mesma vantagem nominal, em relação ao Brasil que aquela apresentada em 1900, de cerca de 60% superior à renda brasileira. Ambos os países aumentaram o PIB global, passando o Japão a 17 bilhões de dólares (de 1965) e o Brasil a 2,8 bilhões, mas este último continuava a estar mais inserido na economia mundial (com exportações de 13,3 dólares per capita) do que o Japão (exportando em 1913 menos de 7 dólares por pessoa), embora a distância nesse setor tenha diminuído em relação aos valores de 1870 (7,8 e 0,4 dólares).

Às vésperas da Primeira Guerra, o Brasil permanecia “subdesenvolvido”, sobretudo se comparado à Argentina que, em 43 anos, tinha aumentado a distância em relação ao PIB per capita brasileiro de 1,7 para 4,5 vezes mais. Apesar de ter experimentado uma aceleração de sua taxa de crescimento econômico no período (2,3% de crescimento médio do PIB, entre 1870 e 1913), o Brasil esteve abaixo da média dos países “desenvolvidos” dessa época (com 2,9% de crescimento anual, sendo que os EUA conheciam uma taxa de 4,2%). O crescimento per capita foi ainda mais irrisório para o Brasil, estimado por Maddison em 0,2% ao ano entre 1880 e 1913, contra 1,5% de média ponderada para os países “desenvolvidos” (que é também a média japonesa) e 2% para os EUA. 

O Brasil também acompanhou mal o dinamismo das exportações mundiais, cujo crescimento, no período 1870-1913, se fez à razão de 3,3% ao ano. Praticando uma política comercial que no geral era livre-cambista, o Brasil fixava seus níveis tarifários mais para fins de arrecadação fiscal do que num sentido protecionista e industrializador; a especialização agrária no café e em alguns outros poucos produtos primários (de baixa elasticidade-preço) impediu, por outro lado, a necessária diversificação de sua pauta exportadora, a despeito mesmo de um notável esforço de “promoção comercial” no período. Não obstante os elevados saldos comerciais obtidos a partir da ascensão do café (e da borracha) no mercado mundial, a maior parte dos valores assim liberados destinava-se ao pagamento do serviço da elevada dívida externa acumulada, bem como à cobertura dos investimentos estrangeiros realizados no Império. A dependência da renda nacional em relação às exportações representava fragilidade econômica, pois que submetida à deterioração dos termos do intercâmbio e desorganizando a economia em momentos de queda dos preços mundiais ou de contração dos mercados.

 

4. O mundo entre 1913 e 1950: catástrofes econômicas e sociais

O período de entre guerras, assim como o imediato pós-segunda-guerra são atípicos, no sentido em que os equilíbrios econômicos são rompidos por conflitos na Europa e na Ásia, pela crise de 1929, pela depressão e o protecionismo dos anos 30, pelo fechamento da América Latina ao mercado mundial, enfim, por uma quebra geral da velha ordem liberal, com generalização do intervencionismo e a interrupção dos fluxos financeiros. Os indicadores para 1950 não representam, assim, um reflexo do potencial econômico dos países ou regiões, mas tão simplesmente o resultado da enorme concentração de riqueza nos EUA.

Com um PIB per capita de 1.673 dólares em 1950, o Brasil tinha uma renda inferior à metade da média da América Latina, mas a distância em relação à Argentina diminuiu: esta, que tinha aumentado o PIB a índices 3,9 e a 4,5 superiores aos valores do Brasil em 1900 e em 1913, já não fazia mais, com 4.987 dólares em 1950, do que 2,9 vezes o PIB per capita do Brasil. O Japão, destruído pela guerra, detinha, com 1.873 dólares, um PIB per capita apenas 12% superior ao do Brasil (é bem verdade que com uma população bem superior, de 83 milhões de habitantes, para apenas 52 milhões no Brasil). O PIB per capita do Brasil era ainda próximo da Grécia, superior ao da Turquia, representando o dobro da média da Ásia (863 dólares). Os EUA ostentavam 9.573 dólares, contra uma média de 5.513 para a Europa ocidental: a distância em relação ao PIB per capita brasileiro, que tinha aumentado entre 1820 e 1913 (passando de +1,9 a +6,3), vem a diminuir para “apenas” 5,7 vezes em 1950. 

Deve-se reconhecer, nesse sentido, o relativo dinamismo do crescimento brasileiro no período 1913-1950, estimado em uma média de 1,9% reais (isto é, PIB per capita) ao ano, contra apenas 1,2% para a Europa ocidental e 1,6% para os EUA. O crescimento demográfico no Brasil foi intenso, mas os Estados Unidos, que também tinham conhecido um aumento de população, passaram mais cedo pelo processo de transição, isto é, a redução tanto das taxas de natalidade, como de mortalidade. O Japão, que vinha conhecendo altas taxas de crescimento econômico no período anterior à segunda guerra, contabilizou, em virtude das destruições materiais, apenas 0,9% de crescimento real do produto no período global compreendido entre 1913 e 1950. Sua recuperação foi entretanto bastante rápida, evidenciando o papel crucial do capital humano como fator de desenvolvimento.

 

5. O grande crescimento de 1950 a 1973: a Ásia e o Brasil decolam

As mudanças decisivas nos desempenhos relativos dessas economias iriam se dar no período posterior a 1950, em especial a partir dos anos 70, coincidindo aliás com uma expansão notável do comércio internacional, transformado em motor do crescimento mundial. Entre 1950 e 1973, o ritmo de crescimento é importante em todas as regiões, à exceção da África, com destaque para a Europa ocidental (3,8% de aumento anual médio do PIB per capita, mas 5% para a Alemanha e Itália) e meridional (4,8% na média, com 5,8 na Espanha e 5,7 em Portugal), ademais da Ásia (3,1% na média, mas 8% para o Japão). A América Latina teve um desempenho apenas médio, com 2,4% de crescimento anual (similar aos EUA). 

O Brasil se destacaria na região, com 3,8% de aumento real por ano, considerando-se sua igualmente alta taxa de crescimento populacional, de 2,9% ao ano no período (enquanto o Japão já tinha diminuído a sua para 1,1%). Assiste-se nesse período a um rápido processo de industrialização no Brasil, movido por ativas políticas intervencionistas, ao mesmo tempo em que o Estado se tornava fator inflacionário, ao ordenar investimentos e gastos correntes não com base em arrecadação e poupança mas em emissões não cobertas pelo orçamento.

A natureza do crescimento é, portanto, diversa nos países dinâmicos, sobretudo no que se refere à inserção internacional de cada uma das economias. Enquanto a Alemanha e o Japão aumentam extraordinariamente o nível de suas respectivas exportações per capita (passando a primeira de modestos 40 dólares em 1950, para 1.090 em 1973, e o segundo de 10 a 340 no mesmo período), o Brasil marca passo, incrementando suas exportações de 26 dólares por habitante para modestos 62 dólares no quarto de século decorrido. 

O diferencial de taxas de crescimento populacional entre as regiões explica em parte o aumento na dispersão dos indicadores relativos à renda pessoal. Enquanto os países da Europa ocidental e meridional conheciam, nos anos 1950 a 1973, taxas de incremento anual de suas populações de 0,8 e 0,9% respectivamente, a América Latina, a Ásia e a África experimentavam taxas de 2,8, 2,3 e 2,7%, com o pico assinalado de 2,9% para o Brasil e de um controle notável para o Japão, com apenas 1,1%. Os EUA experimentam um decréscimo, de uma taxa histórica de 2,1% no período 1820-1950, para apenas 1,4% (mantido elevado devido ao afluxo de imigrantes) nos anos 1950-1973. Nesse período, a dispersão de renda entre os EUA e os demais países ocidentais diminui bastante, ao mesmo tempo em que esta continua a aumentar em relação às demais regiões do mundo. A Ásia, que tinha crescido muito pouco até 1950, começa a recuperar terreno desde então, e muitos países realizam um notável catch-up econômico e social no quadro do fenômeno global da “divergência” de renda. Depois de 1950, a América Latina continuou a crescer, mas o fez a um ritmo bem mais lento do que o dos países da OCDE e da Ásia. 

O Brasil chega assim a 1973 com um PIB per capita de 3.913 dólares, ainda inferior (em 28%) ao da média latino-americana (de 5.017), mas já menor em 50% apenas em relação à renda argentina (7.970). Ainda assim, a distância em relação ao Japão torna-se dramática, uma vez que o país asiático tinha chegado a mais de 11 mil dólares em 1973, multiplicando 5 vezes seu PIB per capita de 1950, contra uma modesta duplicação no caso brasileiro. A distância em relação aos demais países desenvolvidos, sobretudo os EUA, diminui nesse período, mas a recuperação mais importante para o Brasil se situa mesmo no interior da própria região latino-americana: de 1:2 para 1:1,2). 

 

6. Crise e crescimento de 1973 a 1992: as diferenças se acentuam

O ritmo de crescimento entre as regiões, que nunca foi uniforme ao longo de todo o período aqui enfocado, torna-se ainda mais diferenciado nessa fase. Sob o impacto de choques monetários, de mudanças na oferta energética e da aceleração da inflação, o crescimento diminuiu em todas as áreas, com exceção da Ásia. Depois da recuperação das economias no pós-guerra, a produtividade diminuiu nos países avançados, processo acompanhado do fenômeno contraditório da estagflação e de um aumento nas taxas de desemprego.

A despeito do choque petrolífero de 1973, que atingiu mais o Brasil, como importador líquido, o crescimento na América Latina não diminuiu tanto como no centro capitalista: os países se acomodaram com altas taxas de inflação e, os que não eram exportadores de petróleo, foram capazes de atrair capitais nos mercados internacionais para financiar déficits de balanço de pagamentos. O choque maior veio com a crise da dívida, nos anos 80, quando os fluxos financeiros se interromperam e começou uma dramática drenagem de recursos reais: o serviço da dívida aumenta exponencialmente e, com o aumento nas taxas de juros, a região torna-se exportadora líquida de capitais. O Brasil, que tinha enfrentado mais um aumento da fatura petrolífera em 1979, apresenta um comportamento errático desde então, com fases de crescimento alternando-se com momentos de recessão, paralelamente ao aumento da inflação.

O desempenho exportador do Brasil é contraditório, com diversificação geográfica e qualitativa da pauta exportadora, mas pouco aumento da participação efetiva no comércio internacional. O Brasil, que até essa época tinha problemas em sua conta corrente, torna-se, por força do problema da dívida, um país “estruturalmente exportador”, que passa a liberar grandes saldos em sua balança comercial: praticamente o terceiro excedente comercial do mundo depois da Alemanha e do Japão. Mas, as diferenças são ainda consideráveis nesse setor, quando comparados os desempenhos dos mesmos países. Na primeira fase desse período, que se estende até 1987, a Alemanha, ao triplicar o nível de suas vendas externas, tornava-se o primeiro exportador mundial per capita (com 3.000 dólares por habitante) enquanto o Japão multiplicava as suas por 4,4, atingindo 1.467 dólares per capita, quase duas vezes o índice dos EUA. 

O Brasil, mesmo aumentando significativamente o volume e diversificando o destino de suas exportações, saiu de seu modesto patamar de 62 dólares em 1973 para pouco mais de 191 dólares por habitante em 1987, valor bastante inferior aos 283 do México, cuja população se situava na faixa dos 82 milhões de habitantes, para 140 do Brasil. Em 1992, o Brasil tinha conseguido elevar suas exportações a 240 dólares per capita, um valor ínfimo comparado ao de diversos exportadores dinâmicos da Ásia. De fato, a América Latina como um todo perde espaço nos mercados internacionais: de uma participação de 7% nas exportações globais em 1982, a região não consegue colocar mais do que 5,7% em 1986, valor ainda reduzido para 5,5% em 1992. Em contraste, a Ásia, mesmo sem considerar o Japão (que passa, individualmente, de 9 a 12,3%), aumenta sua participação nas vendas totais de 12,8%, em 1982, para 19,8% em 1992. A Europa comunitária e a América do Norte também aumentam, embora em níveis mais modestos, suas partes relativas nas exportações mundiais, sendo que a África, o Oriente Médio e os socialistas experimentam dramáticos declínios nessa frente.

Precisamente, a dispersão de rendas se agrava na fase recente, não apenas entre países desenvolvidos e em desenvolvimento, como também entre estes últimos, como resultado do dinamismo econômico dos países asiáticos e da relativa estagnação da América Latina. O Brasil, país relativamente dinâmico a despeito de graves problemas macroestruturais, chega em 1992 dispondo de um PIB per capita de 4.637 dólares, aproximando-se cada vez mais da Argentina (7.616). Este país, surpreendentemente, foi um dos poucos no mundo (junto com o Chile) a não se beneficiar das grandes taxas de crescimento dos anos 1950-1973, continuando a apresentar baixo desempenho nas duas décadas seguintes. Como resultado, a relação das rendas respectivas, que em 1913 se situava em 1:4,5 em favor da Argentina, tinha diminuído para 2 em 1973 e apenas 1,6 em 1992, não considerando outros fatores de redução adicional do diferencial como a provável importância maior do mercado de trabalho informal no Brasil. Embora aumentando momentaneamente sua distância em relação aos níveis de rendimentos prevalecentes nos países desenvolvidos, o Brasil também tinha se aproximado bastante da renda média de sua região, já que esta era apenas 20% mais elevada que o PIB per capita do Brasil: tanto o País avançou como a América Latina estagnou no decurso dos 80. 

Esse avanço foi entretanto modesto em termos históricos, pois que, de 1973 a 1992, o ritmo anual de crescimento do PIB per capita no Brasil não ultrapassou 0,9% (mas, ele foi de -0,2% para a Argentina e de -1,7% para o Peru), contra uma média aritmética de 1,8% para os países da Europa ocidental e 1,4% para os EUA. Na América Latina, cujo desempenho geral foi de apenas 0,4% de crescimento por ano, os países de melhor desempenho foram a Colômbia e o Chile, ambos com taxas anuais de aumento do PIB per capita de 1,9% de 1973 a 1992. Em contraste, o ritmo anual conhecido na Ásia foi de 3,5% de crescimento médio anual, com os picos de 6,9% para a Coréia do Sul, de 6,2% para Taiwan, 5,2% para a China e “apenas” 3% para o Japão. Tanto os países africanos como os socialistas enfrentavam nesse período taxas negativas de 0,4 e 0,8% respectivamente, conhecendo uma deterioração dramática das condições de vida.

 

7. Desempenho do Brasil e da economia mundial: visão geral

Ao longo do período 1820-1992, demonstrando um desempenho positivo em face das demais regiões do mundo, a América Latina conseguiu manter sua participação no produto mundial, embora em diminuição na fase recente. Assim, mesmo aumentando sua parte na população mundial de apenas, 1,9% do total, em 1820, para 6,4% em 1950 e 8,5% em 1992, a região latino-americana realizou um desempenho satisfatório em termos de crescimento do produto global, saindo de um modesto 2,2% do total da produção mundial, em 1820, para 7,5% em 1950 e 8,2% em 1973, mas caindo para 8% em 1992. Ela passa de um ritmo de crescimento anual de apenas 1,9% no período 1820-1900, para uma taxa de 3,6% no meio século seguinte, até atingir 5,3% ao ano na fase de grande crescimento dos anos 1950-1973. 

O período recente foi entretanto de um desempenho medíocre em termos históricos, de apenas 2,8% de crescimento anual do PIB, ainda assim com grandes contrastes internos. Quando confrontado o ritmo de crescimento do produto bruto ao do aumento do PIB per capita, o desempenho da América Latina é menos espetacular, em vista das altas taxas registradas de aumento de sua população: a região que, entre todas neste século, conheceu as taxas mais elevadas de expansão demográfica, passou de um crescimento anual médio do produto per capita de apenas 0,4% no período 1820-1900, para 1,7% na primeira metade deste século e 2,5% entre 1950 e 1973, para cair a apenas 0,5% ao ano na fase recente (1973-1992). Ainda assim, a largo prazo seu desempenho pode ser considerado como satisfatório. A renda per capita da América Latina era provavelmente nove vezes mais elevada em 1992 do que em 1820. Considerando portanto esse desempenho em termos de crescimento do produto, um dos fatores responsáveis pelo relativo atraso latino-americano foi o incremento dramático de sua base populacional, o que deve ter contribuído para aumentar a distância da região em relação à renda média dos países desenvolvidos (e uma maior convergência em face do aumento da renda global e do desempenho das outras regiões em desenvolvimento).

A Ásia foi a região que mais cresceu no mundo, tanto em termos globais como em base per capita, mas seu comportamento de longo curso foi menos regular do que o da América Latina. A fase recente viu entretanto a afirmação da região asiática, que aumenta sua participação no PIB mundial de 24,7% em 1973 para 36,9% em 1992, quando todas as demais regiões viam suas partes mais ou menos diminuídas. 

O Brasil não teve um padrão de desempenho econômico diferente da América Latina, mas seu desempenho foi mais satisfatório em termos de crescimento no período de pouco mais de um século que vai de 1870 aos anos 1980. Abstraindo-se, portanto, as fases inicial (1820-1870) e final (década de 80) do período considerado, o Brasil pode orgulhar-se de um desempenho satisfatório, pelo menos em termos de incremento da base produtiva. Assim, a despeito do deliberado ou involuntário intervencionismo estatal a partir dos anos 30 – alguns diriam provavelmente graças a ele –, os desafios externos e internos ao crescimento do País foram enfrentados com resultados positivos, logrando-se um grau razoável de expansão da oferta global. Critérios básicos da produção bruta foram, assim, amplamente atendidos, logrando-se portanto um “progresso” material, o que não significa, contudo, um alto grau de desenvolvimento social ou cultural para a maior parte da população, uma vez que foram preservados os baixos padrões educacionais. 

Aspectos menos positivos desse processo de crescimento foram evidenciados na inadaptação da sociedade e da máquina do Estado às necessidades do progresso tecnológico, na irresponsabilidade fiscal e na permissividade emissionista e inflacionária dos responsáveis governamentais, na extrema desigualdade da repartição da renda global disponível (e uma intolerável concentração desta última nos estratos mais ricos), bem como em uma tolerância dramática da elite em relação aos baixos padrões culturais da maior parte da população. 

Outras insuficiências de seu processo de desenvolvimento revelam-se, ainda atualmente, no baixo coeficiente de abertura externa da economia brasileira, resultado de um processo de meio século (de 1930 a 1980) de fechamento internacional no seguimento da crise de 1929 e da depressão dos anos 30. Com efeito, como evidenciado na Tabela 2, o Brasil conhece uma “involução” ao longo do período, saindo de um percentual das exportações em relação ao PIB equivalente a mais do que o dobro da média mundial em 1870 (11,8% contra 5,0%) para cerca de um terço daquela média em 1992 (4,7% para 13,5%), o que denota uma considerável perda de dinamismo, uma vez que o comércio exterior é, reconhecidamente, um dos mais poderosos indutores do crescimento econômico, da modernização tecnológica e dos ganhos de competitividade. 

Uma evolução positiva para uma maior inserção econômica internacional começou, entretanto, a ser observada desde meados dos anos 80 e início dos 90, quando se dá a partida, timidamente no começo, a processos de reforma tarifária e de liberalização comercial e de integração econômica com a Argentina, este último acelerado e ampliado de forma quadrilateral, em 1991, no contexto do Mercosul (Almeida, 1998). Em outros termos, o Brasil passou a incorporar-se, embora ainda timidamente, ao grande movimento de interdependência característico da economia mundial no final do século XX.

 

 

Bibliografia:

Almeida, Paulo Roberto. Mercosul: fundamentos e perspectivas. São Paulo: LTr, 1998.

–––– . O estudo das relações internacionais do Brasil. São Paulo: Unimarco, 1999.

Maddison, Angus. “Desempenho da Economia Mundial desde 1870” in Norman Gall et alii, Nova Era da Economia MundialSão Paulo: Pioneira, 1989, pp. 19-36

——— . Monitoring the World Economy, 1820-1992. Paris: OECD, 1995

 

Divulgado na plataforma Academia.edu (link: https://www.academia.edu/49115167/A_insercao_economica_internacional_do_Brasil_em_perspectiva_historica_1999_).

 


 

 

Tabela 1 (A)

Evolução histórica do PIB per capita, 1820-1992

(dólares internacionais a preços de 1990)

 

Países

1820

1870

1900

1913

1950

1973

1992

Grã-Bretanha

1.756

3.263

4.593

5.032

6.847

11.992

15.738

Estados Unidos

1.287

2.457

4.096

5.307

9.573

16.607

21.558

Alemanha

1.112

1.913

3.134

3.833

4.281

13.152

19.351

França

1.218

1.858

2.849

3.452

5.221

12.940

17.959

Canadá

893

1.620

2.758

4.213

7.047

13.644

18.159

Austrália

1.528

3.801

4.299

5.505

7.218

12.485

16.237

Japão

704

741

1.135

1.334

1.873

11.017

19.425

China

523

523

652

688

614

1.186

3.098

México

760

710

1.157

1.467

2.085

4.189

5.112

Argentina

1.371

2.756

3.797

4.987

7.970

7.616

Brasil

670

740

704

839

1.673

3.913

4.637

  Mundo

651

5.145

Fonte: Angus Maddison, Monitoring the World Economy, 1820-1992

 

 

Tabela 1 (B)

Taxa média de crescimento anual do PIB per capita, 1820-1992

 

Países

selecionados

1820

1870

1870

1913

1913

1950

1950

1973

1973

1992

Grã-Bretanha

1,2

1,0

0,8

2,5

1,4

Estados Unidos

1,3

1,8

1,6

2,4

1,4

Alemanha

1,1

1,6

0,3

5,0

2,1

França

0,8

1,5

1,1

4,0

1,7

Canadá

1,2

2,2

1,4

2,9

1,5

Austrália

1,8

0,9

0,7

2,4

1,4

Japão

0,1

1,4

0,9

8,0

3,0

China

0,0

0,6

-0,3

2,9

5,2

México

-0,1

1,7

1,0

3,1

1,1

Argentina

2,5

0,7

2,1

-0,2

Brasil

0,2

0,3

1,9

3,8

0,9

  Mundo

0,6

1,3

0,9

2,9

1,2

Fonte: Angus Maddison, Monitoring the World Economy, 1820-1992

 


 

 

 

Tabela 2

Exportações de mercadorias em % do PIB, 1820-1992 

(exportações e PIB em preços de 1990)

 

1820

1870

1900

1913

1950

1973

1992

Estados Unidos

2,0

2,5

3,7

3,6

3,0

5,0

8,2

Japão

0,2

2,4

3,5

2,3

7,9

12,4

Alemanha

9,5

15,6

12,8

6,2

23,8

32,6

França

1,3

4,9

8,2

8,6

7,7

15,4

22,9

Grã-Bretanha

3,1

12,0

17,7

13,3

11,4

14,0

21,4

Canadá

12,0

12,2

15,8

13,0

19,9

27,2

Austrália

7,4

12,8

11,2

9,1

11,2

16,9

China

0,7

1,4

1,7

1,9

1,1

2,3

Coréia

0,0

0,0

1,0

4,5

1,0

8,2

17,8

México

3,7

10,8

14,8

3,5

2,2

6,4

Argentina

9,4

6,8

6,1

2,4

2,1

4,3

Brasil

11,8

9,5

7,1

4,0

2,6

4,7

Mundo

1,0

5,0

8,7

9,0

7,0

11,2

13,5

Fonte: Elaboração a partir de Angus Maddison, Monitoring the World Economy, 1820-1992

 

A Experiência de Integração Europeia e a Evolução do Mercosul (1999) - Paulo Roberto de Almeida

 Por incrível que pareça, os links deste artigo ainda estão disponíveis, mas transcrevo mesmo assim: 

701. “A Experiência de Integração Europeia e a Evolução do Mercosul”, Brasília, 17 agosto 1999, 18 p. Palestra preparada, a pedido da Ordem dos Advogados do Brasil (Seção do Distrito Federal), para a III Conferência dos Advogados do Distrito Federal. Pronunciada em Brasília, no dia 20 de agosto de 1999, no Hotel Nacional (701a). Publicado em CivitasRevista de Ciências Sociais (Porto Alegre: Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da PUC-RS, ano I, nº 1, junho de 2001, p. 37-53; link: http://revistaseletronicas.pucrs.br/ojs/index.php/civitas/issue/view/1; artigo: http://revistaseletronicas.pucrs.br/ojs/index.php/civitas/article/view/65/65). Relação de Publicados nº 289.


A Experiência de integração europeia e a evolução do Mercosul

 

Paulo Roberto de Almeida *

 

701. “A Experiência de Integração Europeia e a Evolução do Mercosul”, Brasília, 17 agosto 1999, 18 pp. Palestra preparada, a pedido da Ordem dos Advogados do Brasil (Seção do Distrito Federal), para a III Conferência dos Advogados do Distrito Federal. Pronunciada em Brasília, no dia 20 de agosto de 1999, no Hotel Nacional (701a). Texto submetido para publicação na revista Civitas, da PUC-RS (701b). Publicado em CivitasRevista de Ciências Sociais (Porto Alegre: Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da PUC-RS, ano I, nº 1, junho de 2001, p. 37-53; link: http://revistaseletronicas.pucrs.br/ojs/index.php/civitas/issue/view/1; artigo PRA: http://revistaseletronicas.pucrs.br/ojs/index.php/civitas/article/view/65/65).

 

 

Sumário do artigo:

1. Experiência europeia: um panorama geral sobre os avanços e os desafios

2. O Manifesto de Maastricht: gostosuras e travessuras do modelo europeu

3. A agenda do Mercosul: back to the future ou a Europa dos “golden sixties”

4. Evolução recente (política, econômica e institucional) do Mercosul

5. Problemas e dificuldades do “segundo período de transição”

6. Os desafios internos e externos ao Mercosul são alavancas ou bloqueios ao seu avanço?

7. O Mercosul deveria consolidar-se como simples ZLC ou evoluir para uma união aduaneira?

8. Quando e por que ele deveria postular-se como mercado comum e não como simples UA?

9. A arquitetura institucional do Mercosul: modéstia e bom senso

 

 

1. Experiência europeia: um panorama geral sobre os avanços e os desafios

Uma avaliação ponderada sobre a experiência européia em termos de integração e seus possíveis ensinamentos para o Mercosul deve partir, fundamentalmente, de uma desmistificação daquela mesma experiência, de maneira a que não apenas não se ofereça ao Mercosul um modelo, suposto ideal, de integração como também para que não se trace de seu itinerário, certamente sinuoso, uma comparação indevidamente mais desfavorável, quando confrontado ao processo, sem dúvida alguma relativamente exitoso, da integração européia.

Aqueles que apontam para os problemas institucionais do Mercosul ou para seu suposto “déficit democrático” como elementos de bloqueio na atual agenda da integração sub-regional, parecem se esquecer, por exemplo, de que a Comunidade Européia ficou durante largo tempo, no início dos anos 60, paralisada pela política de “chaise vide” mantida pela França em face dos problemas de definição de uma política agrícola comum ou de um definição harmônica dos poderes respectivos da Comissão e do Conselho (questão parcialmente resolvida com a institucionalização semioficial do COREPER, o Comitê de Representantes Permanentes, ou seja, os Embaixadores dos países membros acreditados junto à Comissão). Da mesma forma, poucos se lembram, hoje, que até quase o início dos anos 80, o Parlamento Europeu era escolhido de forma indireta pelos parlamentos nacionais e que ele tinha de fato muito ou quase nenhum pouco poder consultivo ou realmente deliberativo (ele sequer detém, ainda atualmente, o poder legislativo, monopólio do Conselho ou da Comissão). 

Os que se assustam com a descoordenação cambial do Mercosul tampouco se dão conta das assimetrias cambiais e de políticas monetárias que caracterizaram a Europa comunitária na saída do sistema de Bretton Woods, problemas parcialmente resolvidos com a instituição progressiva do Sistema Monetário Europeu, no decorrer dos anos 1970 e 1980. Mas este sistema funcionou, de fato, para um número limitado de países articulados em torno de uma moeda dominante dotada de muita credibilidade (o deutsche mark, ao qual foram estreitamente correlacionados o florim holandês e, numa etapa mais avançada, o franco francês). Os desalinhamentos da lira italiana, da libra britânica e mesmo do franco francês (este durante uma primeira fase de desalinhamento “político”) dão testemunho das dificuldades de se lograr um regime cambial coordenado num regime de flutuação de taxas e de movimentação mais ou menos livre dos capitais. Num período bem mais recente, sabe-se que o financiamento “generoso” da unificação alemã, por exemplo, feito à custa de uma elevação sensível das taxas de juros da RFA em 1992, aliado a problemas de instabilidade dos mercados cambiais, provocou o éclatement, ou seja, uma ruptura benigna do próprio SME, que passou a funcionar com margens de flutuação recíproca de +15 e de -15%, ou seja, de fato a livre flutuação das moedas ainda teoricamente integrantes de uma mesma zona monetária. 

Em outros termos, não há via real para o aprofundamento do processo de integração e os países europeus apenas lograram fazer avançar sua construção integracionista porque puderam contar com dois mecanismos relevantes de impulsão comunitária, um de ordem operacional, outro de natureza institucional. O primeiro foi a experiência de mais de 30 anos de coordenação das políticas macroeconômicas e setoriais, forjada na elaboração do orçamento comunitário (politique agricole oblige) e auxiliada pela instituição de um instrumento contábil comum, a unidade de conta chamada de ecu, o que permitiu avançar sem maiores dificuldades de ordem operacional na consecução dos objetivos de Maastricht para a União Econômica e Monetária. O segundo foi o enforcement obrigatório das decisões e das políticas comunitárias, em parte pela Comissão, mas sobretudo pelo Tribunal de Luxemburgo, a Corte Européia de Justiça, que pode ser considerado como o verdadeiro “cão de guarda” dos objetivos e dos compromissos do Tratado de Roma de 1957 e, de forma sucessiva, do Ato Único de 1986 e do Tratado da União Européia de 1992. 

É evidente que o Mercosul não dispõe nem de uma, nem de outra dessas duas “armas integracionistas”, mas também parece claro que, se o seu objetivo não é a construção de um majestoso edifício gótico comunitário erguido no mármore, mas tão somente a de um modesto mercado comum de tijolos e alvenaria, ele não precisa perseguir o ideal de perfeição comunitária que guiou a Europa nos últimos 40 anos, aliás, mais por necessidades externas e internas do que por exclusiva impulsão institucional. Com efeito, não se pode tampouco esquecer que o duplo desafio americano e soviético e a necessidade de superar a “guerra permanente” entre a França e a Alemanha (que desestruturou a Europa e retirou-lhe os comandos da política mundial entre 1870 e 1945) serviram como aguilhões do processo integracionista europeu. Ora, no Mercosul não existe nenhum tipo de competição geopolítica, nenhuma ameaça externa ou interna à inserção internacional (de fato pacífica e sem pretensões hegemônicas) dos países membros e, de fato, pouca densidade relativa nos intercâmbios recíprocos que justifiquem seja, por um lado, o engajamento num empreendimento de custos econômicos razoáveis (pense-se, por exemplo, nas dimensões do orçamento comunitário europeu e nos fluxos de recursos transferidos entre os países), seja, por outro, os custos políticos implícitos numa cessão de soberania pouco compatível, hoje em dia, com as necessidades dos respectivos processos de estabilização econômica. 

Em resumo, o Mercosul não tem ainda necessidade estrita, para consolidar os modestos objetivos que são os seus (de bem-estar das comunidades nacionais via unificação dos mercados), de instituir potentes e abrangentes mecanismos de impulsionamento comunitário, mas tão somente do estabelecimento de um marco regulatório mínimo para a conformação desse espaço econômico integrado. Se quisermos retirar ensinamentos da experiência européia, eles poderiam ser resumidos na desejabilidade (e, a partir de um certo momento, na necessidade) de coordenação de políticas monetária, fiscal e cambial e, num outro patamar institucional, na oportuna passagem do sistema arbitral ad-hoc para um de tipo permanente e extensivo, prévio à eventual introdução de uma corte de justiça que pudesse dar segurança à ampliação dos negócios internos e à atração de investimentos externos. Para concluir essa parte do “mimetismo europeu”, que não se fale de moeda única, pois isso seria simplesmente inexequível no presente momento: a moeda comum virá, talvez, no seguimento da conformação de um mercado comum consolidado, se tal é o objetivo de fato dos países membros. 

 

2. O Manifesto de Maastricht: gostosuras e travessuras do modelo europeu

Parodiando o velho Manifesto de 1848, poder-se-ia dizer que um espectro ronda o Mercosul: o espectro da Europa de Maastricht e seus miríficos critérios de unificação monetária. Todos os poderes do mundo acadêmico e os do universo sindical do Cone Sul que se batem pelo avanço concreto do Mercosul, segundo as linhas integracionistas do modelo europeu, parecem ter se lançado numa santa aliança para impulsionar o cenário idealista implícito a esse modelo. O que pedem essas forças do progresso e da democracia? Mais instituições, se possível supranacionais, consagradoras de um regime comum verdadeiramente engajado na realização dos princípios de coesão econômica e social tal como afirmados no Ato Único Europeu; mais direitos sociais ao estilo da Carta Social Européia, supostamente capazes de introduzir o quantum de bem-estar e de justiça social, hoje inviabilizado pelos “capitalistas selvagens” do Cone Sul latino-americano. 

Qual mercocrata de plantão não foi descrito como “insensível” por esses idealistas do projeto integracionista? Onde os economistas responsáveis não deixaram de alertar para essa simplificação da realidade da integração no Mercosul em face da complexidade das tarefas ainda remanescentes para cumprir o simples enunciado do Artigo 1º do Tratado de Assunção? Duas consequências derivam desse fato:

1) As questões da supranacionalidade e da unificação monetária já fazem parte, por bem ou por mal, da agenda implícita ou explícita do Mercosul;

2) Já é tempo que os responsáveis políticos e econômicos do Mercosul eliminem algumas das confusões mentais remanescentes nas cabeças dos partidários de um “Mercosul europeu” e expliquem em face de todo o mundo que o cenário realista traçado pelos “mercocratas” permitiria exorcizar de maneira mais eficaz os perigos que rondam a aplicação de um critério uniformemente integrador a uma realidade pré-união aduaneira que é, de fato, a situação atual do Mercosul.

 

De fato, o processo de integração no Mercosul tem sido habitualmente avaliado ¾ e julgado, o que me parece ainda pior ¾ à luz do precedente histórico europeu e segundo critérios analíticos derivados da experiência institucional européia. Sem pretender refazer a história ou reinventar a roda ¾ como se diz em relação a progressos tecnológicos dirigidos a resolver problemas práticos ¾, quer-me parecer que as possibilidades organizacionais de se instituir um mercado comum com forte embasamento nas realidades econômicas locais dos países do Mercosul não se esgotam no modelo europeu consagrado a partir de 1951 (CECA) e de 1957 (MCE). Uma tal atitude de adesismo institucional pode na verdade demonstrar uma certa preguiça conceitual dos analistas acadêmicos ou ainda uma derivação da velha constatação keynesiana de que somos, de uma forma ou de outra, prisioneiros de algum economista morto, neste caso, condenados a repetir a genial arquitetura concebida e implementada pelos founding fathers da integração européia.

Nunca é demais insistir sobre as particularidades desse processo de integração, seu alto sentido geopolítico ¾ no contexto dos terríveis conflitos que ensanguentaram a Europa durante a segunda “guerra de trinta anos” entre 1914 e 1945 ¾, seu aspecto funcional no quadro da Guerra Fria e da sustentação americana à união e integração européia, assim como as especificidades econômicas e políticas que presidiram à construção progressiva do belo edifício “gótico” ¾ pela sua complexidade, mais do que pela sua arquitetura ¾ que hoje constitui a União Européia. Em alguns momentos desse processo, pode-se até dizer que os meios passaram a justificar os fins, tal o crescimento da “razão burocrática” no âmbito da Comissão e órgãos associados e as aventuras e tribulações da “loucura agrícola comum”, para ficar apenas nos dois exemplos mais conhecidos do gigantismo europeu.

Frente a esse quadro de “overload” institucional deveria o Mercosul tomar a atual EU como modelo e pretender que, segundo a frase latina bem conhecida, de te fabula narratur? Pessoalmente acredito que assim como, no passado, os juristas e estadistas latino-americanos já deram mais de uma prova de sua inventividade conceitual e institucional ¾ como evidenciado, entre outros exemplos, pelas doutrinas Calvo e Drago, pelos diversos instrumentos e instituições políticas panamericanas ¾, poder-se-ia igualmente conceber alguma construção relativamente inédita nos anais das experiências integracionistas conhecidas.

Aliás, o Mercosul é certamente híbrido do ponto de vista institucional e não há por que pensar que o modelo comunitário europeu constitui o nec plus ultra dos padrões aceitáveis de construção de um mercado comum. A lógica do Mercosul, à diferença provavelmente da experiência européia, é a do menor custo possível, político ou social, para não dizer econômico, daí a própria economia feita pelos países membros em número de “mercocratas” e outros gêneros de tecnocratas. A própria rationale para a existência de uma entidade integracionista no Cone Sul latino-americano é, deve-se reconhecer, de menor apelo político e de menor justificativa econômica, comparativamente, por exemplo, à justificativa de segurança nacional e de détente militar embutida no Memorando Monet sobre a integração ¾ de fato fusão ¾ dos complexos carvão e aço de França e Alemanha.

No que se refere à possibilidade de formação de uma ordem jurídica comunitária no Mercosul, não se deve tomar como óbvio o conceito oriundo do direito comunitário europeu, isto é, de uma ordem autônoma e hierarquizada, implicando uma cessão de soberania por parte dos Estados-Membros. Visto de uma perspectiva propriamente latino-americana, o edifício europeu comporta virtudes e deformações, não porque seu modelo institucional seja politicamente inexequível, de maneira absoluta, ao sul do Equador, mas porque ele pode ser, tão simplesmente, na atual conjuntura econômica e geopolítica do cenário mercosuliano, historicamente desnecessário. Assim como não se pode exportar democracias ¾ pois elas dependem mais de uma cultura política e de um ethos social e mesmo “societal, do que de simples instituições políticas ¾, tampouco se poderia conceber uma exportação de modelos integracionistas. Os juristas podem até recusar esse tipo de argumento, passando a responder que uma ordem legal garantidora de normas e de procedimentos ritualizados é absolutamente indispensável ao bom funcionamento de todo e qualquer empreendimento integracionista. Talvez eles até tenham razão, mas então o Mercosul se faz pelo método do ensaio e erro, da empiria consagrada em norma, o que pode não ser uma má ideia em vista de sua ainda baixa densidade intrínseca em termos de conteúdo econômico integracionista.

 

3. A agenda do Mercosul: back to the future ou a Europa dos “golden sixties”

Qual seria, portanto, uma agenda realista para o Mercosul na presente fase do processo de integração? Comecemos agora por examinar a “hipótese” em função da qual foi elaborado o próprio projeto do Mercosul, ou seja, a realização do mercado comum sub-regional. A terem sido cumpridos os objetivos fixados no Artigo 1º do Tratado de Assunção, o mercado comum previsto deveria ter entrado em funcionamento no dia 1º de janeiro de 1995, o que obviamente não foi o caso. Segundo uma leitura otimista desse instrumento diplomático e do próprio processo de integração, esses objetivos serão cumpridos nesta etapa complementar, que poderíamos denominar de “segunda transição”, observados os prazos fixados no regime de convergência estabelecido para os diferentes setores definidos como “sensíveis” e cumpridos os requisitos mínimos desse mercado comum. Isto significaria, entre outros efeitos, a implementação efetiva da Tarifa Externa Comum e a conformação eventual, se necessário, de exceções verdadeiramente “comuns” a essa pauta aduaneira, e não listas nacionais de exceções como hoje se contempla. Idealmente, todas as barreiras não-tarifárias e medidas de efeito equivalente deveriam ter sido suprimidas. A coordenação de políticas macroeconômicas, nessa perspectiva, supõe igualmente que os países membros deveriam ter delimitado todas as áreas cruciais de cooperação em vista da necessária abertura recíproca de seus mercados a todos os bens e serviços dos países membros, inclusive no que se refere à oferta transfronteiriça de serviços e ao mútuo reconhecimento de normas e regulamentos técnicos específicos. 

Na ausência de progressos mais evidentes nessas áreas, se esperava que os países pudessem ter definido, pelo menos, um sistema de paridades cambiais com faixas mínimas de variação, se alguma, entre as moedas respectivas, bem como a harmonização dos aspectos mais relevantes de suas legislações nacionais relativas a acesso a mercados. Estes são os requisitos mínimos para a conformação de um amplo espaço econômico conjunto no território comum aos países do Mercosul, a partir do qual se poderia caminhar para a consolidação progressiva e o aprofundamento do processo de integração, em direção de fases mais avançadas do relacionamento recíproco nos campos econômico, político e social. 

Ainda que esse cenário razoável não se concretize, como parece previsível, nos primeiros anos do próximo século, seu desdobramento faz parte da lógica interna do Mercosul. Em todo caso, ele resultaria num Mercosul muito próximo do padrão de integração apresentado pelo mercado comum europeu em finais dos anos 60. Operando um “retorno ao passado” da integração européia, o Mercosul se encontraria na situação do velho Mercado Comum Europeu, dos “golden sixties” e começo dos “seventies”, isto é, após terem os signatários originais do Tratado de Roma completado sua união aduaneira e definido uma espécie de “coexistência pacífica” entre uma pretendida vocação comunitária — encarnada na Comissão, mas freada pelos representantes dos países-membros nos conselhos ministeriais — e um monitoramento de tipo intergovernamental, consubstanciado no papel político atribuído ao COREPER, o Comitê de Representantes Permanentes, não previsto no primeiro esquema institucional. Em outros termos, mesmo a mais “comunitária” das experiências integracionistas, sempre foi temperada por um necessário controle intergovernamental ou, melhor dizendo, nacional.

No caso específico do Mercosul, as dúvidas ou obstáculos levantados em relação ao aprofundamento do processo de integração não parecem derivar de reações epidermicamente “soberanistas” ou mesquinhamente nacionalistas — ou até mesmo “chovinistas”, como parecem acreditar em alguns — mas de determinadas forças políticas ou de correntes de pensamento, para não falar de interesses setoriais “ameaçados”, que logram “congelar” o inevitável avanço para a liberalização comercial ampliada entre os membros. Tais tendências não são necessariamente nacionalmente definidas, mas existem ao interior de cada um dos países envolvidos no processo.

Não se poderia, por exemplo, excluir a hipótese de também o Mercosul  vir a instituir, em Montevidéu, uma espécie de COREPER, mas parece evidente que esse eventual “órgão” informal teria mais a função de assessorar o trâmite de matérias administrativas junto à Secretaria Administrativa ou de facilitar o contato “diário” entre os quatro países do que, como no exemplo original europeu, os objetivos de “controlar” um órgão legitimamente comunitário — a Comissão —, estabelecer-lhe limites no processamento das atividades de “rotina” (definidas em função dos “interesses nacionais”) e, também, de acelerar o trâmite de matérias julgadas relevantes pelas capitais. Sua institucionalização requereria uma mera “emenda”, por via de decisão ministerial, ao Protocolo de Ouro Preto, mas também parece evidente que seu significado político transcenderia o simples aspecto de um “acabamento” na incipiente estrutura organizacional da união aduaneira.

Quais seriam, em consequência, as opções razoáveis, ou as mais prováveis, que se apresentam para compor uma agenda em torno do desenvolvimento futuro do Mercosul? Elas se situam, claramente, no campo de seu aprofundamento interno, em primeiro lugar nos terrenos econômico e comercial, no âmbito de sua extensão regional, no reforço das ligações extrarregionais (em primeiro lugar com a União Européia) e, finalmente, mas não menos importante, no apoio que o Mercosul pode e deve buscar no multilateralismo comercial como condição de seu sucesso regional e internacional enquanto exercício de diplomacia geoeconômica.

Parece evidente que, a despeito de dificuldades pontuais e de obstáculos setoriais, a marcha da integração econômica não poderá ser detida pelas lideranças políticas que, nos próximos cinco ou dez anos, se sucederão ou se alternarão nos quatro países membros e nos demais associados. Tendo resultado de uma decisão essencialmente política, de “diplomacia presidencial” como já se afirmou, o Mercosul econômico não poderá ser freado senão por uma decisão igualmente política. Ora, afigura-se patente que o processo de integração possui um valor simbólico ao qual nenhuma força política nacional tem a pretensão de opor-se. Daí se conclui que os impasses comerciais, mesmo os mais difíceis, tenderão a ser equacionados ou contornados politicamente e levados a uma “solução” de mútua e recíproca conveniência num espaço de tempo algo mais delongado do que poderiam supor os adeptos de rígidos cronogramas econômicos. Nesse sentido, o Mercosul não é obra de doutrinários ortodoxos, mas de líderes pragmáticos.

Assim, sem entrar na questão do cumprimento estrito do programa de convergência ou no problema da compatibilização de medidas setoriais nacionais, tudo leva a crer que a futura arquitetura do Mercosul econômico não seguirá processos rigorosamente definidos de “aprofundamento” inter e intra-setoriais, dotados de uma racionalidade econômica supostamente superior, mas tenderá a seguir esquemas “adaptativos” e instrumentos ad hoc essencialmente criativos, seguindo linhas de menor resistência já identificadas pragmaticamente. Se o edifício parecer singularmente “heteróclito” aos olhos dos cultores dos esquemas integracionistas pode-se argumentar, em linha de princípio, que o itinerário do Mercosul econômico não precisa seguir, aprioristicamente, nenhum padrão de “beleza estética” ou de “pureza teórica” no campo da integração. Em qualquer hipótese, o Mercosul não está sendo construído para conformar-se a padrões organizacionais previamente definidos em manuais universitários de direito comunitário, mas para atender a requisitos econômicos e políticos de natureza objetiva, que escapam — e assim deve ser — a qualquer definição teórica ou pretensa coerência metodológica.

No que se refere à questão do aprofundamento interno, político e institucional do Mercosul, eventualmente inclusive no terreno militar, não se pode deixar de sublinhar, uma vez mais, as dificuldades inerentes — e as demandas inevitáveis, pelos protagonistas já identificados — vinculadas ao problema da supranacionalidade, constantemente agitado, como uma espécie de “espantalho acadêmico”, sobre a mesa de trabalho de “mercocratas insensíveis”. Não se poderia excluir, a esse respeito, a evolução progressiva do atual principal opositor a qualquer “renúncia de soberania” no âmbito do Mercosul , o Brasil, em direção de uma posição mais próxima, intelectualmente falando, dos demais países-membros — seja os declaradamente “supranacionais”, como Uruguai e Paraguai, seja a Argentina moderada, isto é, em favor de uma combinação de instituições intergovernamentais e comunitárias —, muito embora tal questão esteja em conexão direta com a definição de um outro tipo, ponderado, de sistema decisório interno à união aduaneira. 

 

4. Evolução recente (política, econômica e institucional) do Mercosul

A despeito das dificuldades atuais e do recuo conjuntural dos fluxos de intercâmbio, deve-se reconhecer que o Mercosul é um dos mais bem sucedidos empreendimentos integracionistas não só na América Latina mas em todo o mundo em desenvolvimento, tanto em termos de crescimento do comércio e dos nexos de interdependência recíproca, como em virtude uma inédita estrutura institucional adaptada aos requerimentos da união aduaneira em construção, caracterizada por uma arquitetura híbrida, flexível, econômica e sobretudo altamente interativa com os centros de decisão dos respectivos poderes executivos dos países membros.

O crescimento do comércio intrarregional, exponencial em relação à expansão do comércio individual dos países membros, não se fez em detrimento de terceiros, mas sim desenvolveu-se no contexto de processos de abertura econômica e de liberalização comercial, consoante o modelo de regionalismo aberto que marcou o seu desenvolvimento.

Todos os prazos estabelecidos consensualmente foram razoavelmente cumpridos, tanto no que se refere à formação da Zona de Livre Comércio (eliminação das listas nacionais de exceção, com pequenas derrogações no conjunto), como no que tange à implementação da União Aduaneira (cujos prazos de convergência estão sendo respeitados na quase totalidade dos casos). Situações peculiares da ZLC (açúcar, regime automotivo) devem ser equacionados internamente no futuro próximo. O aumento linear em três pontos da TEC cessará de vigorar no final do ano 2000 e a quase totalidade do comércio extra comercial da UA funcionará segundo o seu regime normal, de 0 a 20% (automóveis terão um prazo adicional na alíquota de 35%).

Todas as reuniões dos órgãos permanentes do Mercosul vêm desenvolvendo-se normalmente e, se o comércio vem apresentando como se sabe dificuldades no período recente, não se pode de nenhuma forma falar de crise política ou de bloqueios institucionais. A CCM e o GMC vêm dando conta de maneira eficaz de suas agendas respectivas e o CMC tem, sob a impulsão dos presidentes, logrado enfrentar a contento os desafios que têm sido colocados aos executivos nacionais no processo de plena implementação da UA. Não se pode, aliás, deixar de reconhecer que a chamada diplomacia presidencial tem servido de fator de diluição dos desentendimentos (normais) entre os países membros numa fase decisiva de “cessão” adicional de soberanias.

A participação da comissão parlamentar e do FCES, este foro representando a sociedade civil, tem igualmente se estendido a uma gama cada vez maior de temas, dando respaldo aos órgãos institucionais de caráter político ou ao trabalho dos grupos técnicos. O debate em torno do chamado “salto supranacional”, num momento reivindicado por juristas e acadêmicos, revelou-se uma falsa questão e hoje quase ninguém mais contesta, em bases objetivas, a opção de Ouro Preto pela atual arquitetura institucional do Mercosul.

 

5. Problemas e dificuldades do “segundo período de transição”

Os poucos percalços que enfrenta atualmente o processo de integração, se examinados bem atentamente, não correspondem a problemas do Mercosul, mas em grande medida a problemas dos próprios países membros. Se não vejamos: os desequilíbrios de balanças comerciais não são derivados de fluxos desestabilizadores que tenham origem no comércio intra-Mercosul, assim como os déficits de transações correntes não podem ser considerados como tendo sido provocados pelo intercâmbio de serviços e de fatores na própria região. Esses desequilíbrios se explicam pelos fluxos globais de bens e serviços (inclusive rendas do capital) que entretêm os países membros individualmente com parceiros de fora da região e de maneira ampla com o resto do mundo, como parece evidente tanto no caso do Brasil, como no da Argentina. Os fluxos intra-Mercosul têm servido, melhor, como elementos anticíclicos em momentos de dificuldades conjunturais para cada um dos países membros. [1]

Nenhuma defasagem cambial pode ser imputada ao Mercosul enquanto tal, mas tal tipo de problema aparece como o resultado de opções políticas e econômicas propriamente nacionais, tomadas largamente num contexto de restrições externas ou de diminuição de opções internas determinadas independentemente e à margem do processo de integração. Da mesma forma, a atual fase de não-coordenação de políticas macroeconômicas não expressa uma suposta escolha anti-integracionista de um ou outro país, mas representa a ausência objetiva de condições para a efetivação dessa coordenação, situação reconhecida de boa-fé por todos os economistas atentos aos desenvolvimentos do Mercosul nesta sua “segunda fase de transição”.

O que é essa “segunda fase de transição”? Ela representa o período adicional necessário à consecução dos requisitos indispensáveis à conformação do mercado comum simplificado que se está pretendendo criar na sub-região, ou seja, justamente, a coordenação de políticas macroeconômicas e a harmonização de políticas setoriais prometidas pelo Art. 1º do Tratado de Assunção (TA). As disputas comerciais internas são bem menos relevantes, nessa ótica, do que a definição de regras estritas a serem aplicadas nos terrenos da política industrial, da concorrência, dos incentivos aos investimentos, de aplicação de normas e regulamentos técnicos, de definições nos terrenos dos financiamentos e da abertura no setor de serviços com preservação de uma certa preferência regional.

Não há, absolutamente, nenhuma crise do que se poderia chamar de “programa doutrinário da integração”, mas tão simplesmente dificuldades naturais por acesso recíproco aos mercados dos países membros em áreas bem delimitadas, ou seja, problemas que correspondem a uma situação de abertura progressiva num contexto de indefinição de normas estritas de competição e de ausência parcial ou total da “harmonização das políticas macroeconômicas”.

 

6. Os desafios internos e externos ao Mercosul são alavancas ou bloqueios ao seu avanço?

Outras dificuldades advêm, como é também natural, da percepção diferenciada que têm os países membros quanto a seus interesses nacionais no âmbito dos processos negociatórios dentro e fora da região em que eles estão coletiva ou individualmente engajados. CAN-ALCSA, ALCA, Rodada do Milênio da OMC, UE-Mercosul são exemplos de desafios externos que já se colocaram ou que devem se colocar no difícil processo de harmonização e concertação de posições em vista dessas negociações. Tomando-se como ponto de partida situações de baixa densidade intrínseca de interdependência ou de complementaridade econômica recíproca e diferentes tipos de inserção econômica internacional, é explicável que os países membros do Mercosul apresentem ainda divergências na maneira de encarar a agenda negocial externa.

No plano interno, o desafio mais óbvio é o da sustentação continuada dos respectivos processos de estabilização macroeconômica, que por sua vez se desdobra em novo desafio externo, o da manutenção da credibilidade de suas políticas econômicas, base indispensável para o acesso aos créditos, investimentos e financiamentos internacionais.

Nenhum desses problemas ou desafios, contudo, requer uma parada ou recuo no processo de integração, mas, sim, eles parecem exigir o comprometimento dos países com etapas ainda mais avançadas de construção do edifício integracionista. Os problemas da integração — que como explicitado acima não são propriamente provocados pela integração — pedem mais, e não menos, integração. Não se trata de estabelecer agendas voluntaristas, como se, por exemplo, a atual ausência efetiva de coordenação de políticas macroeconômicas requeresse, de fato, a fixação de um calendário para a introdução de uma moeda comum, pois isso apenas traria ainda menos credibilidade externa ao Mercosul do que parecem gozar hoje os países membros tomados individualmente. 

Parece claro, no entanto, que cada vez que o Mercosul foi colocado em face de desafios similares, ele soube responder de forma convincente com graus razoáveis de coordenação política e diplomática entre os países, sobretudo no caso de seus dois parceiros maiores.

 

7. O Mercosul deve consolidar-se como simples ZLC ou evoluir para uma união aduaneira?

A questão da coordenação de políticas apresenta pouca relevância para a situação em que se encontra, de fato, o Mercosul atualmente: isto é, a consolidação de sua ZLC, aliás uma base indispensável à formação da projetada ALCSA, pouco proclamada nos discursos, mas na verdade implícita nos desenvolvimentos recentes do processo negocial na América do Sul. Que o Brasil tenha dado a partida a esse processo (precisamente durante a gestão do Embaixador Rubens Antônio Barbosa à frente da área econômica do Itamaraty, tendo o Presidente FHC como chanceler), nada mais natural, uma vez que se trata do principal mercado consumidor e da maior potência industrial do continente. O Brasil se encontra, assim, em escala continental, na mesma situação da Inglaterra vitoriana, quando esta decretou o free-trade universal em meados do século XIX: cabe ao Brasil decretar uma espécie de free-trade continental e fornecer as bases para a conformação de uma vasta zona de comércio liberado no Cone Sul, antes que o hemisfério seja engolfado nos projetos livre-cambistas bem mais ambiciosos (e de fato hegemônicos, mesmo involuntariamente) da grande potência do Norte. Temos hoje condições únicas para liderar o processo sub-regional, e para isso não se necessita, ou pelo menos não se depende, do estabelecimento de uma união aduaneira no Mercosul, mas tão somente de condições relativamente igualitárias de acesso ao mercado brasileiro como forma de levar todos os parceiros à mesa negociadora.

Na perspectiva das negociações hemisféricas, é certo que quanto mais avançado estiver o Mercosul, melhor será sua força de barganha e sua credibilidade política na mesa negociadora. Mas, realisticamente, o Mercosul precisaria eventualmente evoluir para uma UA apenas e tão somente se a ALCA for uma realidade plausível no horizonte de 2003-2005, o que poderá ser melhor aferido se uma presidência e um Congresso uniformemente republicanos nos EUA lograrem obter um mandato preciso — o chamado fast-track — para conduzir, junto com o Brasil, a última fase do processo negociador. Nesse caso, a UA do Mercosul, que significa igualmente a coordenação estrita da política comercial da união aduaneira em consolidação, serviria não apenas para reforçar o grau de coesão interna dos países membros como também para preservar algumas margens de preferências que podem revelar-se úteis no jogo de barganhas e de ulterior competição aberta que passariam a caracterizar o espaço hemisférico depois de 2005. Ressalte-se, finalmente, que o fato de o mandato de Miami ter dado o prazo de 2005 para a conclusão de negociações em torno de uma ALCA, não significa que essa ALCA tenha de começar a ser implantada já em 2006. Restaria, assim, um prazo prudencial para que o Mercosul consolidasse sua união aduaneira mesmo numa “terceira fase de transição” pós-2005.

 

8. Quando e por que ele deveria postular-se como mercado comum e não como simples UA?

Essa pergunta é dependente, obviamente, do projeto estratégico comum, de longo prazo, dos quatro países membros, ou pelo menos do cenário estratégico que o Brasil, como seu maior protagonista, pretenda traçar para sua própria inserção econômica internacional e para sua política externa neste começo de século XXI. Deve-se começar por uma verdade muito simples, mas que algumas vezes é esquecida por aqueles que consideram a experiência européia como uma espécie de nec plus ultra dos processos integracionistas possíveis e imagináveis: não se faz um mercado comum pelo simples prazer estético de se partilhar mercados, pela autossatisfação de se afirmar uma política comum nos mais diversos setores da atividade produtiva ou pela compulsão de abrir fronteiras ao intercâmbio de pessoas, capitais e coisas. Um mercado comum não é senão um meio, como tantos outros, de se promover políticas de bem-estar e programas de desenvolvimento. Sua rationale é a da concorrência e da abertura como forma de estimular a inovação, a eficiência econômica e o estímulo a graus ainda maiores de inserção internacional, que não são bens coletivos em si, mas simples mecanismos para aumentar a eficiência geral do sistema econômico e o grau de bem-estar da comunidade nacional(sublinho o conceito nacional, uma vez que o horizonte da soberania estatal ainda está longe de ter sido superado na consecução dos objetivos ditos permanentes da Nação).

Aceitas estas considerações, o mercado comum do Mercosul apenas deve e poderá existir se e quando os países membros definirem metas comuns nas áreas das políticas setoriais e macroeconômicas como o meio mais adequado para a realização de seus objetivos nacionais e internacionais. Não se deve ter ilusões: o mercado comum só tem condições efetivas de se realizar se ele responder a necessidades objetivas dos processos nacionais de estabilização macroeconômica, de inserção produtiva de cada um de seus sistemas econômicos nacionais (por certo, progressivamente integrados e interdependentes), e, finalmente, de aumento do bem-estar das populações de cada um dos países participantes nesse empreendimento. A invocação do mercado comum como um objetivo desligado e autônomo dessas metas individuais dos países membros não tem a força mobilizadora que lhe atribuem muitos dos românticos acadêmicos da integração sub-regional. Não estamos engajados num processo, por certo difícil de cessão de soberanias e de construção de um edifício razoavelmente complexo em termos de administração pública compartilhada, para atender a qualquer tipo de profecia bolivariana, por mais nobres que possam ser tais metas solidaristas. O objetivo estratégico, pelo menos o do Brasil, não esqueçamos essa verdade muito simples, é, antes de mais nada, o de elevar o padrão de vida da comunidade nacional, e apenas em segundo lugar viriam quaisquer outros objetivos de política econômica ou de política externa.

A conformação do mercado comum do Sul, nome e mandato originais do Mercosul, deve, portanto, obedecer a esse objetivo de simples bom senso e de modesto comprometimento comunitário. Se o mercado comum for o instrumento mais adequando à consecução daqueles objetivos, tanto melhor: ele deve ser julgado à luz de sua adequação e funcionalidade a tais metas, e não o contrário. Parece, contudo, razoável supor que um grau adequado de avanço na construção do mercado comum seja uma espécie de préalable e de garantia à afirmação interna e externa do Mercosul no cenário de blocos estratégicos e de zonas preferenciais que ainda marcarão o horizonte das relações internacionais no limiar do século XXI. Com efeito, parece lícito supor que os progressos da liberalização multilateral e os avanços práticos tanto no terreno do direito internacional como no da interdependência econômica não serão tão importantes no cenário previsível pós-Rodada do Milênio e de fim definitivo dos últimos experimentos socialistas do planeta como para se renunciar à “arma” do regionalismo enquanto vetor prático, por vezes, necessário, da afirmação dos interesses nacionaisnum mundo em que, a despeito da interdependência global, sempre alguns serão mais “interdependentes” do que outros. Nesse caso, a interdependência de um mercado comum é mais administrável, no plano das políticas públicas, do que a interdependência saudavelmente anárquica do não-sistema político mundial e de fato multipolar em que vivemos hoje. Aliás, até como uma defesa contra o hegemonismo, o mercado comum pode apresentar certas vantagens intrínsecas.

 

9. A arquitetura institucional do Mercosul: modéstia e bom senso

Caberia, no futuro próximo, promover avanços notáveis no plano político e institucional do Mercosul? Não necessariamente, pois que uma eventual “mercocracia” comodamente instalada em Montevidéu não será necessariamente mais eficiente do que as burocracias nacionais coordenadas entre si; ao contrário, ela pode até ser mais “alienada” das realidades nacionais, regionais ou locais, num contexto bem diferente, recorde-se, em que sempre atuou a “eurocracia” comunitária, virtualmente soterrada por massas de informações relevantes provindas de Estados relativamente mais eficientes do que os do Cone Sul. Alguém poderia, em sã consciência, argumentar que alguns burocratas mercosulianos “iluminados” serão mais imaginativos e eficientes do que seus contrapartes nacionais trabalhando de forma coordenada?

Caberia, sim, portanto, impulsionar a coordenação dos aparelhos estatais entre si, nas mais diferentes esferas de atuação das agências públicas nacionais e das tecnoburocracias especializadas, sempre tendo presente o objetivo da eficiência e do menor custo possível. Não se pode estabelecer políticas comuns, como na Europa, pensando na hipotética projeção externa e internacional de um espaço integrado (minimamente) que permanecerá, de fato, no futuro previsível, um importador líquido de capitais, tecnologia e know-how de países e regiões mais avançados do ponto de vista econômico e tecnológico.

Se o Mercosul se consolida enquanto mercado comum, ele poderá, então, pensar numa moeda comum, em políticas comuns em diversas áreas de interesse conjunto (inclusive, por que não?, no terreno militar) e sobretudo em afirmar uma nova personalidade internacional que não será apenas a de um captador de inteligência externa, mas também a de um provedor de recursos e de serviços para outros parceiros nos quais possa haver espaço para o engenho e arte de suas empresas e agentes econômicos. Como já disse o Embaixador Rubens Antônio Barbosa em ocasiões anteriores, as instituições do Mercosul devem ser definidas segundo suas funções e não o contrário, ou seja, criar instituições para somente então dar-lhes atribuições específicas. Volto a afirmar, o Mercosul não é uma finalidade em si; ele é um meio, ainda que o mais importante da política externa do Brasil contemporâneo. 

Tendo em conta as observações realistas efetuadas no presente texto e do ponto de vista do direito internacional, não se pode alegar quebra de compromissos no âmbito do Mercosul, uma vez que não foram definidos, seja no Tratado de Assunção, seja nos demais instrumentos “constitucionais” (Protocolos de Ouro Preto, de Brasília) e nas medidas “legais” do Mercosul, consubstanciados em diferentes resoluções e decisões de seus órgãos diretivos, a definição de objetivos estritamente calendarizados — além da liberalização comercial — ou metodologias específicas para a construção do mercado comum. Trata-se mais de um programa e antes um processo do que um conjunto de compromissos estrita e precisamente definidos. Se é verdade que pretendemos uma longa vida ao Mercosul, e seu sucesso continuado enquanto projeto estratégico para a inserção conjunta de seus países membros no sistema econômico e político internacional do século XXI, então devemos colocar o direito a serviço da economia, e não o contrário. Qualquer tentativa de ignorar as condições concretas de existência da Realekonomic do Mercosul, substituindo-as pelas promessas miríficas da Idealpolitikde muitos acadêmicos e observadores descompromissados com o processo negocial e desligados da vida econômica real nos países membros, estaria condenada ao fracasso e contribuiria, contraditoriamente, para o descrédito interno e externo do Mercosul.

Em conclusão, aqueles que acusam o Mercosul de “fadiga burocrática”, de “descolamento da vida social”, de ignorar ou de desprezar a chamada “participação cidadã” no processo negociador, ou de qualquer outro “pecado” real ou imaginário em relação a um suposto modelo ideal de integração — aliás, jamais definido de modo claro —, provavelmente não se dão conta da extrema complexidade e mesmo da própria “temeridade” da construção integracionista no Cone sul latino-americano, sobretudo numa fase de tensões econômicas de ordem interna e externa e de elevação inevitável dos custos relativos do desmantelamento das barreiras ainda existentes à liberalização total dos fluxos internos de bens e serviços. Esses críticos “críticos” do Mercosul são usualmente os mesmos que pedem, e de fato reclamam, políticas setoriais mais ativas por parte dos Estados membros e diversas outras medidas de apoio às indústrias nacionais, sem atentar para o contraditório das posições assumidas nesse tipo de argumentação. O segredo do sucesso do Mercosul, até o presente momento, tem sido o seu caráter pragmático, bem como a postura realista, e mutuamente compreensiva (para não dizer leniente) assumida pelos Governos dos países membros, em face dos notórios problemas e dificuldades do processo de integração. Sua preservação enquanto experiência até aqui bem-sucedida de internacional dependerá, precisamente, da manutenção desse caráter flexível. 

 

PRA, 701b: 17/08/1999

Brasília, 17 agosto 1999, 18 p. Palestra preparada, a pedido da Ordem dos Advogados do Brasil (Seção do Distrito Federal), para a III Conferência dos Advogados do Distrito Federal. Pronunciada em Brasília, no dia 20 de agosto de 1999, no Hotel Nacional (701a). Publicado em CivitasRevista de Ciências Sociais (Porto Alegre: Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da PUC-RS, ano I, nº 1, junho de 2001, p. 37-53; link: http://revistaseletronicas.pucrs.br/ojs/index.php/civitas/issue/view/1; artigo PRA: http://revistaseletronicas.pucrs.br/ojs/index.php/civitas/article/view/65/65). Relação de Publicados nº 289.

 

 

 



* Doutor em Ciências Sociais pela Universidade de Bruxelas. Mestre em Planejamento Econômico. Diplomata (Ministro-Conselheiro da Embaixada do Brasil em Washington). Editor Adjunto da Revista Brasileira de Política Internacional (Webpage: http://members.tripod.com/rbpi). Autor dos seguintes livros: Relações Internacionais e Política Externa do Brasil (Porto Alegre: EdUFRGS, 1998); O Brasil e o multilateralismo econômico(Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1999); O estudo das relações internacionais do Brasil (São Paulo: Universidade São Marcos, 1999);Mercosul: fundamentos e perspectivas (São Paulo: LTr: 1998). Coorganizador, com Yves Chaloult, do livro Mercosul, Nafta, Alca: a dimensão social (São Paulo: LTr: 1999). Webpage: http://members.tripod.com/pralmeida; E-mail: pralmeida@brasilemb.org. As opiniões e argumentos contidos neste trabalho são exclusivamente os de seu autor e não representam posições ou políticas do Ministério das Relações Exteriores ou do Governo brasileiro.

[1] Para maiores desenvolvimentos sobre as dificuldades atuais do Mercosul e seus desafios externos, ver meu artigo “Brasil y el futuro del Mercosur: dilemas y opciones”, Integración & Comércio (Buenos Aires: BID-INTAL, vol. 2, nº 6, set.-dic. 1998, pp. 65-81); versão em inglês: “Brazil and the future of Mercosur: dilemmas and options”, Integration and Trade (Buenos Aires: BID-INTAL, vol. 2, nº 6, sept.-dec. 1998, pp. 59-74).


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