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Este blog trata basicamente de ideias, se possível inteligentes, para pessoas inteligentes. Ele também se ocupa de ideias aplicadas à política, em especial à política econômica. Ele constitui uma tentativa de manter um pensamento crítico e independente sobre livros, sobre questões culturais em geral, focando numa discussão bem informada sobre temas de relações internacionais e de política externa do Brasil. Para meus livros e ensaios ver o website: www.pralmeida.org. Para a maior parte de meus textos, ver minha página na plataforma Academia.edu, link: https://itamaraty.academia.edu/PauloRobertodeAlmeida.

quinta-feira, 17 de novembro de 2016

III Jornada de Estudos Estratégicos de Defesa (1) - Paulo Roberto de Almeida

Meu primeiro texto preparado, não vai ser usado:

O poder das ideias como alavanca estratégicana reconstrução da nação: uma reflexão pessoal sobre o Brasil em transição

 

Paulo Roberto de Almeida

(www.pralmeida.orghttp://diplomatizzando.blogspot.com)

[Alocução na III Jornada de Estudos Estratégicos da Defesa, Comando Militar do Planalto, 17 de novembro de 2016, 16:10hs.] 

 

1. Prólogo: um livre atirador pouco estratégico

A despeito do que possam pensar os organizadores, não sou um especialista em estudos estratégicos com foco em defesa; sou menos ainda um estudioso do papel da diplomacia na evolução do pensamento de defesacomo assinalado, entre outros temas, no documento de sugestões que recebi junto com o convite para participar deste painel. Em toda a minha carreira, concentrei-me, em geral,em questões de relações econômicas internacionais, com foco na inserção do Brasil na economia mundial, em sua diplomacia econômica, em especial em temas de finanças internacionais e de integração regional. Ocorre que soudiretordesde meados deste ano, do que se acredita ser o think tank do Itamaraty, o Instituto de Pesquisa de Relações Internacionais, que é bem mais um tank do que um think, tendo em vista a exiguidade de seus recursos humanos e materiais. O think do IPRI é presumido se concentrar em questões classicamente diplomáticas, sendo que o seu tank é desprovido de orçamento próprio, ainda que com alguma capacidade de organizar encontros e até editar algumas publicações, graças aos recursos da entidade mãe, a Fundação Alexandre de Gusmão.

Pois é nessa condição de livre atirador em assuntos de pensamento estratégico que compareço a este encontro para oferecer, mais propriamente, uma reflexão pessoal sobre a importância estratégica de uma certa ideia de nação. Uma certa ideia de nação tem estado no centro de minhas preocupações desde meus tempos de adolescente precoce, concentrado em leituras de uma disciplina que já teve dias melhores no Brasil, a sociologia, que segundo Mário de Andrade era a arte de fazer a revolução. E foi isso que eu tentei durante certo tempo, até ser convencido de que precisamos, sim, engajar reformas radicais para retirar o Brasil do estado de quase anomia na qual ele se encontra atualmente. Uma certa ideia de nação vai além das questões de defesa ou de segurança, ainda que possa abarcar algum pensamento estratégico sobre como fortalecer uma e outra, num contexto de orçamentos exíguos, do mais virulento processo recessivo que já enfrentamos em toda a nossa história econômica e de um estado de deterioração moral no sistema político nacional – se ele merece esse nome  que nos remete a perspectivas sombrias nos próximos anos, senão mais de uma década de restauração necessária.

Segundo o documento de orientação que recebiesta “Jornada pretende discutir em que medida o aperfeiçoamento da gestão estratégica do conhecimento produzido sobre temas de Defesa no Brasil poderia contribuir, de forma mais efetiva, para a evolução dos processos que envolvem a formulação das políticas públicas e do pensamento estratégico de Defesa no País.”Não sendo, como disse nem um especialista em defesa ou em pensamento estratégico, o que eu poderia apresentar aqui, no limite de minha capacidade reflexiva, seria uma contribuição para um esforço que me parece apropriado a este momento de transição em que vive o Brasil, qual seja, a reconstrução mental, antes que material, do país,mediante um projeto estratégico de tipo intelectual. 

 

2. O que é verdadeiro estratégico no Brasil atual?

Se existe algo que pode ser classificado comoverdadeiramente estratégico, no Brasil atual, não é, exatamente, um pensamento estratégico para a sua defesa, mas sim um pensamento estratégico tout court. O que, mais precisamente, eu quero dizer com isso? Quero dizerque o estado de confusão mental é tão grande no Brasil –sem que exista qualquer acordo mais amplo quanto ao conjunto de reformas de que o país necessita para retomar ou reiniciar um processo de crescimento sustentado – que a primeira e mais importante necessidade estratégica é justamente a necessidade ver claro na balbúrdia atual, depois de mais de uma década de retrocessos mentais no comando do país. Acredito que a estrutura seja mais relevante do que a conjuntura, mas somos obrigados a trabalhar na conjuntura, ainda que visando reformas estruturais.

Acredito também que ideias são sempre mais poderosas do que canhões. Forças sociais, ou simples indivíduos armados apenas com ideias poderosas, são capazes de vencer os mais fortes exércitos, ainda que não imediatamente. Os canhões podem eliminar pessoas, adversários, combatentes, ou até civis inocentes. Mas eles não são capazes de eliminar ideias, se estas chegam efetivamente a impregnar indivíduos ou grupos sociais convencidos da justeza e da força moral dessas ideias.Justamente: o Brasil acaba de atravessar, talvez não completamente, um período histórico que constituiu, aomesmo tempo, a mais cativante promessa de correção social de nossas mais iníquas injustiças e desigualdades históricas, e também o mais poderoso desafio a um projeto de nação, se por acaso este existiuque deveria, para ser coerente com as aspirações da população, estar concentrado na busca da prosperidade e do bem-estar para todos os cidadãos. Em lugar disso, tivemos o que eu chamo de A Grande Destruição. 

Vou ser bastante claro quanto ao meu diagnóstico dos últimos treze anos e meio: o Brasil, entre 2003 e 2016, foigovernado por uma organização criminosa travestida de partido político, mas que representousimultânea e contraditoriamente, um projeto de superação radical daquelas injustiças e desigualdades e também o mais impressionante assalto aos fundamentos institucionais do Estado republicano. Esse formidável assalto ao sistema de poder foi de tal magnitude que justifica que passemos a dividir a história política nacional de uma forma semelhante ao já estabelecido tradicionalmente na historiografia ocidental, ou cristã, AC e DC, Antes e Depois de Cristo. Mas agora temos de dividir a nossa cronologia em Antes e Depois dos Companheiros: o período intercalar corresponde à hegemonia gramsciana do chamado lulopetismo, hoje em estado falimentar, mas que chegou a constituir quase que um sistema de governo.

O grande desafio encarnado nessa suposta nova doutrina foi constituído por um conjunto de ideias que se revelaram temporariamente poderosas, e que conseguiram vencer resistências, contra forças adversas – digamos, estratos sociais de coxinhas, que seríamos todos nós, cidadãos de classe média – e que conquistaramimportantes aliados, inclusive banqueiros e capitalistas, na consolidação dessas ideias e dessas forças sociais em direção ao poder. Essas ideias momentaneamente vencedoras, encarnadas em movimentos políticos e em indivíduos dotados de certos méritos capazes de sustentar sua supremacia eleitoral, foram capazes de construir uma ampla coalizão de forças políticas, econômicas e sociais, e de conquistar, em consequência, uma maioria eleitoral. Esta foi suficiente para conceder-lhes o quase total monopólio de poder, e de assim consolidar o seu mando exclusivo sobre a nação. Não menosprezemos, portanto, o poder das ideias.

Essas ideias vagas e difusas, temporariamente vencedoras, que integram esse caldeirão disforme a que chamamos de lulopetismo, estão hoje apenas parcialmente derrotadas, maelas não foram vencidas totalmente, pois que continuam a influenciar poderosamente certos movimentos ditos sociais, mais bem grupelhos sectários,esses mesmos que estão ocupando instituições de ensino e infernizando a vida de todos os cidadãos de bemPois são a essas “ideias”, entre aspas, que eu quero devotar um pouco da minha atenção, para, em seguida, falar da importância estratégica de criarmos, de adotarmos e de disseminarmos um outro conjunto de ideias, novas ideias talvez, mas algumas velhas ideias também, em todo caso,ideias que possam servir de tijolos conceituais para construir um novo projeto estratégico para a defesa da nação Brasil, o que compreende, igualmente, a sua defesa e segurançaTal intenção, de minha parte, não é diferente da velha recomendação de Sun Tzu, segundo a qual o caminho para a vitória passa por um conhecimento profundo que possamos dispor acerca do inimigo. 

Aliás, quando se fala em defesa – que é um conceito diferente do de segurança, mas que aparece frequentemente acoplado a ela  deve-se sempre agregar um complemento: defesa do quê, para o quê, com vistas a contra-arrestar qual tipo de ameaça ou perigo? Com efeito, se segurança parece ser um conceito intransitivo, ou seja, que se basta a si mesmo – temos segurança, vivemos em segurança, estamos seguros – defesa, por sua vez, é um termo transitivo, que requer algum tipo de explicitação: se queremos defesa, seria preciso saber contra o quê, exatamente, ou contra qual tipo de ameaça?

 

3. Quais são as grandes ameaças ao Brasil?

Permito-me avançar algumas sugestões sobre o mal que ameaça o Brasil no plano estratégico. Esse perigo não representa nenhum desafio externo, nenhuma força maléfica vinda do exterior, que poderia, supostamente, ameaçar nossa segurança, nosso bem estar ou se contrapor à realização dos nossos grandes objetivos nacionais, como se lê ainda nos manuais da Escola Superior de GuerraCreio que o Brasil precisa de uma forte defesa contra um mal que nos assedia constantemente, um mal que fragilizanosso bem estar, que compromete nosso futuro, e até nosso desenvolvimento, sem a qual dificilmente caminharemos em direção de uma nação integrada, satisfeita de suas realizações, e confiante em um futuro de paz e de prosperidade. 

O inimigo que nos ameaça de maneira tão insidiosa, volto a repetir, não vem de fora, não é nenhuma força estrangeira malévola, que pretenderia obstar o crescimento do país. Esse inimigo está aqui mesmo, dentro do país, vive em Brasília: somos nós mesmos, nossas deformações, nossos equívocos, em uma palavra, nossa má educação, como povo e como sociedade. Ele se manifesta, entre outras características nefastas, num Estado exacerbado, um ogro famélico que consome os recursos criados pela nação. Esse inimigo, concorrentemente à ação do lulopetismo, que o magnificou de forma consistente e impressionante, é multiforme; ele se apresenta sob as roupagens do populismo econômico, da corrupção política, do espírito totalitário de certas doutrinas. 

Tais doutrinas e concepções não são apenas essas que estão normalmente associadas ao lulopetismo, slogans que animauma organização de corte leninista, commilitantes e apparatchiks que gostariam de ser neobolcheviques, mas que integram um partido animado de uma vocação menos putschista do que propriamentegramsciana. Mas também persistem em nossa sociedadeideias de natureza corporativa, que criaram um Estado proto-fascista no Brasil, manipulado anteriormente por umestamento de tipo patrimonialista – de que falava Raymundo Faoro em sua tese seminal sobre os “donos do poder” – mas que sob o lulopetismo se converteu em um patrimonialismo de tipo gangsteristaEssas são as forças políticas e sociais que levaram à extraordinária concentração de poder no Brasil e que prepararam a conquista do poder por essa associação de gramscianos organizados para assaltar o poder pela via eleitoral. 

Essas foram as condições quase ideais para que as novas forças do populismo de tipo esquerdista pudessem empolgar o poder e que, por inépcia e também porcorrupção, conduzissem o país à mais profunda e estupenda derrocada moral e institucional de nossahistória. Elas são as mesmas forças que produziram o que eu chamei de Grande Destruição no plano econômico, ao maior descalabro político jamais visto na era republicana, a um enorme retrocesso que constatamos em diversas áreas do setor público, e mesmo no ambiente de negócios, forças que eu enfeixei nesse termo impreciso, um conceito dúbio, provavelmente indevido, como o de lulopetismo. Não tenho certeza de que, ou se, o lulopetismo passará à nossa história política, da mesma forma, por exemplo, como passou a integrar nosso vocabulário político, o chamado varguismo, como o qual ele pretende ser equiparado, como se esse fenômeno esquizofrênico tivesse capacidade de tornar-se o equivalente funcional de um dos mais fortes e importantes fenômenos reais da trajetória política e social do Brasil contemporâneo. Existem diferenças entre os dois fenômenos que eu me permito enfatizar rapidamente.

O varguismo não teve, certamente, o mesmo impacto doutrinal e partidário que teve, na história argentina, o peronismo, uma enfermidade mental muito mais grave, e que atingiu certos nervos centrais daquela sociedade, que se disseminou em diferentes partes do seu corpo, que se implantou ali de forma bem mais durável e determinante do que o fez o varguismo no Brasil, sem um partido político tão dominante quanto foi o justicialismo, um populismo quase sem doutrina. O peronismo contamina até hoje corações e mentes de uma nação que, vinda de uma riqueza inédita em toda a América Latina, e até mais além, conseguiu decair de uma forma espetacular, de uma maneira bem mais profunda e duradoura, quase permanente, do que conseguiu fazer entre nós o mal denominado lulopetismo.

Cabe registrar, no entanto, que o varguismocertamente constituiu, junto com o regime militar de 1964-85 – mas este sem o carisma e o populismo fabricados pelo primeiro – o mais importante processo de modernização da sociedade e da economia brasileira, com suas inegáveis boas realizações, suas inevitáveis limitações patrimonialistas (ainda que modernizadas superficialmente) e suas deformações eventuais sob a forma de um estatismo exacerbado. O varguismo deu início – não por opção pré-determinada – à industrialização substitutiva no Brasil, processo continuado sob o juscelinismo desenvolvimentista, e logo em seguida completado, até à exaustão, pelo regime militar. O lulopetismo, doença mental sem qualquer doutrina, mas dotado de uma organização de tipo leninista, com sua inépcia administrativa característica, com os imensos equívocos de política econômica – muitos deles deliberadamente perpetrados com vistas a facilitar sua obra corruptora  destruiu essa realização importante dos governos estatizantes do passado, acelerando um processo de desindustrialização que ocorreria naturalmente, mas de forma bem mais lenta, e sem esse aspecto de terra arrasada como ocorreu sob a hegemonia dos companheiros. 

O que sobretudo fez o lulopetismo, além de destruir a economia nacional, foi destruir as instituições – a começar pelo parlamento, mas sem poupar o judiciário – e, principalmente, contaminar as mentalidades por uma mistura caríssima, no plano da propaganda governamental, de demagogia mistificadora (o que é uma redundância), ou de mistificações demagógicas, e de mentiras ricamente envelopadas por uma máquina milionária de fraudes cuidadosamente servidas e veiculadas pelos canais oficiais e por uma imensa rede de mercenários alimentados pelos recursos públicos (isto é, pelo seu, pelo meu, pelo nosso dinheiro). O lulopetismo poderia ter sido apenas uma espécie de doença de pele, a ser combatida por algum remédio familiar, mas ele também pode revelar-se uma doença mental bem mais poderosa do que o imaginado anteriormente

Eu menciono expressamente essa característica de doença mental, pois de outra forma dificilmente se poderia explicar como tantos acadêmicos gramscianos, membros das melhores universidades, supostos intelectuais,continuam, contra todas as evidências de crimes cometidos pelo chefe da quadrilha, já revelados nas investigações policiais, a defender o líder mafioso e o seu partido, a pretexto de defender alegadas conquistas sociais ou uma ilusória redução da pobreza. À falta de uma explicação plausível para essa insistência na defesa de criminosos, só posso atribuir essa atitude a uma doença mental, e muita má-fé e falta de caráter, pois não se poderia atribuí-la à ignorância dos fatos ou alguma incapacidade de se informar sobre fatos notórios, amplamente sabidos

 

4. As tarefas do período de transição

Pois bem, uma vez identificada a natureza de nossos males atuais, cabe partir para a formulação de um diagnóstico preciso dos grandes problemas, ou desafios, do Brasil, para logo em seguida tentar desenhar algumas novas ideias para a reconstrução moral da nação. Vejamos então, quais seriam, numa determinada ordem, ou mesmo sem qualquer ordem, os elementos que integram um receituário suscetível de assegurar ao Brasil um ritmo adequado e sustentado de crescimento econômico, base indispensável a um processo de desenvolvimento social e de aumento da segurança jurídica e institucional no paísEu agregaria esses diferentes problemas – de natureza fiscal e tributária, educacional, laboral, institucional e de inserção internacional – num conjunto de cinco grandes áreas de reconstrução estratégica da nação, como vou descrever em seguida. 

 

4.1. Estabilidade macroeconômica

A estabilidade macroeconômica é a condição prévia indispensável sem a qual nada é possível em termos de crescimento sustentado, base inquestionável de um processo de transformações estruturais com distribuição dos seus benefícios sociais. Ela é constituída, basicamente, por finanças públicas saudáveis, equilíbrio fiscal, câmbio realista (o mais possível determinado pelas forças de mercado), da mesma forma como os juros de referência, sem manipulações políticas e distorções oportunistas. Finanças equilibradas significam um orçamento apenas ligeiramente deficitário, na suposição que os gastos em excesso das arrecadações são feitos para investimentos que reverterão, mais adiante, em retornos tributários capazes de cobrir o serviço da dívida.

Mas é preciso qualificar o que representa essa alocação fiscal em função da qualidade dos gastos previstos nos programas governamentais. Um grande orçamento diplomático, por exemplo, não significa maiores gastos na política externa, assim como um grande orçamento militar não significa gastos suficientes a uma defesa adequada. Eles podem representar, simplesmente, maiores benefícios para as respectivas corporações. Uma fiscalidade saudável significa, antes de mais nada, o melhor ambiente de negócios para os verdadeiros criadores de riquezas, que são os empresários e trabalhadores. 

Ora, não é desconhecido de ninguém que o Brasil viveu em instabilidade macroeconômica na maior parte do último meio século: nenhum país, em qualquer etapa de sua história econômica, passopelo que o Brasil conheceu desde a Segunda Guerra Mundial, nada menos do que oito moedas sucessivas, sendo seis no espaço de menos de dez anos. Nenhum outro país, atravessando eventualmente acelerações inflacionárias, ou até hiperinflações virulentas, conheceu nossos números astronômicos de inflação, assim como existem poucos países, atualmente, que convivem com nossas altas taxas de juros. 

No que respeita a dívida pública, ela pode ser, nominalmente, menor do que a de muitos países, mas é, relativamente ao PIB e sobretudo quanto ao seu serviço, uma das mais pesadas do mundo, responsável, talvez, por uma inadimplência inevitável quando sua proporção chegar a 85% ou 90% do PIB, com juros em torno de 10%. Um problema ainda mais crucial, e que impede a competitividade de nossos produtos no exterior, e até a sobrevivência de nossas empresas, é certamente o sistema tributário, não apenas exacerbado, pelo seu nível extorsivo, mas também pela burocracia envolvida em sua regulação. Nenhum outro fator é mais prejudicial ao funcionamento de uma economia saudável do que o inferno tributário no qual vivem os empresários brasileiros, impossível de reformar, dado o crescimento contínuo das despesas públicas – especialmente sob o lulopetismo – e a anarquia federativa em vigor desde décadas (aliás magnificada pelo “pacote de abril de 1977”, sob o regime militar, com a introdução de novos desequilíbrios regionais, aprofundados desde então). 

O processo de estabilização macroeconômica, tão penosamente conquistado entre 1994 e 1999, e parcialmente preservado na primeira fase do domínio lulopetista, começou a ser erodido no segundo mandato do líder da organização criminosa, para ser totalmente estraçalhado nos cinco anos de sua sucessora designada, um período de esquizofrenia econômica caracterizado pela sua suprema inépcia, e teimosia no equívocoPoucas vezes em nossa história tantos erros foram cometidos com tal persistência; pareceria que muitos deles foram deliberadamente praticados para disfarçar equívocos anteriores ou então crimes econômicos que se destinavam a encobrir crimes comuns, no mais desenfreado ciclo de corrupção a que jamais assistimos não só neste país, mas provavelmente em todo o hemisfério.

 

4.2. Competição microeconômica

A competição, tanto interna quanto externa, é essencial para construir um sistema produtivo permanentemente focado em ganhos de produtividade e de competitividade para preservar nichos de mercado e ganhar novos espaços nos mercados globais. O Brasil é um país notoriamente cartelizado, monopolizado, oligopolizado. Setores inteiros da economia – no petróleo, na telefonia, nos transportes de todos os tipos, numa infinidade de outros ramos produtivos e de serviços, como os bancos – são dominados por um número restrito de grandes atores, geralmente concertados com (e assediados por) representantes políticos de várias esferas e níveis da federação.

Esse cenário foi deliberadamente construído pelo Estado, tanto para fortalecer os tais “campeões nacionais” setoriais, quanto impulsionado, na era lulopetista, pelo chamado modelo do “capitalismo de laços”, com vistas a aumentar o poder de fogo dos novos gigantes, e assim melhor poder extorquir as empresas em favor do partido hegemônico. O capitalismo promíscuo – ou seja, a colusão entre grandes empresários e dirigentes políticos – sempre existiu no Brasil, mas foi espantosamente exacerbado desde o início da era lulopetista, não só por inclinações doutrinais dos companheiros, mas também, talvez principalmente, por cálculo deliberado quanto aos ganhos extrativos capazes de serem obtidos num sistema desse tipo.

Essa extração de recursos empresariais, feita de forma sistemática pelo partido totalitário, configura o que poderia ser chamado, na terminologia marxiana, de transição entre um modo artesanal de produção da corrupção – que é prática individual e tradicional de falcatruas políticas – e um modo industrial de fabricação da corrupção, no caso do partido totalitário até em escala multinacional, tal o número de operações em paraísos fiscais e contas anônimas já reveladas pelas investigações judiciais. A corrupção lulopetista, por exemplo, teve início nos serviços urbanos de pequenas e médias prefeituras – transportes urbanos, lixo, merenda escolar, concessões diversas – e cresceu depois nas políticas acordadas entre associações de interesses privados, num sistema que pode ser chamado de “pacto perverso”: este se forma na colusão entre empresários e sindicatos de trabalhadores – digamos entre as montadoras de automóveis e os metalúrgicos  e sempre resulta em acordos vantajosos para ambas as partes, com os custos transferidos para o conjunto da população. 

Tais fenômenos são recorrentes no Brasil, com o governo patrocinando tais “câmaras setoriais”, que apresentam sempre os mesmos resultados: preços passam a ser administrados pelos monopolistas do setorcom a sociedade sendo chamada a pagar a extração forçosa de renda pelos “sindicatos de ladrões” de empresários e trabalhadores. O desmantelamento total desses feudos econômicos e a abertura concomitante de todos eles à competição irrestrita – nacional e estrangeira  são medidas indispensáveis à criação de um ambiente de negócios favorável à modernização contínua do tecido produtivo do Brasil.

 

4.3. Boa governança

Ela não significa apenas ausência de corrupção, ou sua redução a níveis mais aceitáveis. Ela se traduz sobretudo em eficiência da máquina estatal, algo incompatível, talvez, com o empreguismo generalizado e a estabilidade irrestrita e generalizada do funcionalismo público. A dissonância entre privilégios e eficiência é certamente mais sentida no Judiciário, responsável por custos de transação exagerados, mas ela é provavelmente exacerbada na Justiça do Trabalho, uma irracionalidade total em termos de custos e propensão a litígios anormalmente elevados (pela sua própria existência): ela deveria ser extinta, substituída por sistemas arbitrais e varas especializadas para os casos mais complicados. O Legislativo, por sua vez, é fonte de outras irracionalidades, a começar pela sua irresponsabilidade no campo das finanças públicas, fonte adicional da terrível crise fiscal que assolou o Brasil a partir do início desta década. 

Mas a fonte dos males principais é evidentemente o Executivo, que possui um poder raramente igualado em outros regimes presidencialistas; ele controla soberanamente mecanismos orçamentários possui ele mesmo uma capacidade corruptora quase genética, pelo volume exagerado de decisões que precisam ser tomadas em Brasília. As grandes empresas de construção, não apenas no Brasil, são geneticamente corruptas, pela natureza mesma de suas formas de contratação; elas encontraram, nos governos lulopetistas, o sócio ideal para expandir exponencialmente os seus lucros abusivos, extorsivos, criminosos, como também já revelado amplamente.

Essa deformação típica do sistema estatista brasileiro produz um fenômeno também típico do capitalismo nacional: em lugar de concentrarem esforços em ganhos de produtividade, os empresários, individualmente ou via suas associações de classe, organizaconstantes caravanas à capital para implorar por políticas setoriais ou medidas tópicas: subsídios, desgravações específicas, proteção tarifária, empréstimos a baixo custo do BNDES e de outros bancos estatais, algum programa de incentivosdirigidos e diversas outras iniciativas costumeiras nesse capitalismo de compadrio. O remédio mais simples a esse problema complexo é a redução geral do dirigismo estatal, o retraimento do Estado do mundo dos negócios, a diminuição radical das políticas setoriais, em favor de medidas horizontais e universais, sem qualquer discriminação entre os atores. 

Talvez um bom começo para reduzir o grau de irracionalidade regulatória existente no Brasil seja simplesmente aplicar sistematicamente os diferentes critérios listados nos relatórios anuais do Banco Mundial, Fazendo Negócios, com vistas a trazer a classificação geral do Brasil a níveis mais aceitáveis (abaixo do 80o. lugar, por exemplo, hoje superior à posição 120). Uma consulta concomitante aos relatórios de competitividade do Fórum Econômico Mundial também ajudaria a reduzir a sanha regulatória do Estado intervencionista brasileiro.O mapeamento já foi feito, mas preciso aplica-lo com vigor, não ficar traçando planos utópicos de engenharia social como feito diversas vezes sob o lulopetismo, um regime que, à falta de ideias próprias, foi buscar na experiência dos governos militares, alguns exemplos, que eles pensavam necessário, de planejamento centralizado, de protecionismo nacionalista e de intervencionismo estatal em grande escala. Ficaram em descompasso com a história.

 

4.4. Alta qualidade do capital humano

Não existe nenhuma dúvida, entre economistas sensatos, de que abundância de recursos naturais não significa, automaticamente uma alavanca essencial do crescimento econômico; ao contrário, muitos deles alertam contra a “maldição” de uma dependência qualquer de uma mercadoria relativamente bem transacionada nos mercados internacionais (e o principal exemplo é, obviamente, o petróleo). Todos eles concordam em que o fator mais importante para o desenvolvimento é a qualidade da educação, base essencial de ganhos de produtividade e de melhor distribuição de renda. Em nenhum outro campo, o atraso brasileiro pode ser considerado como aceitável, em vista dos altos investimentos feitos no setor e da cobertura já razoável alcançada pelas instituições nacionais de ensino, nos três níveis da federação. O problema principal é mesmo a má qualidade do corpo de professores, que se conjuga à ausência de controles de resultados, segundo princípios meritocráticos (já que entre nós predomina o mais exacerbado e nefasto isonomismo, defendido furiosamente por sindicalistas prejudiciais à causa). 

A má qualidade tradicional da educação brasileira foi tremendamente ampliada na era do lulopetismo educacional, que consolidou suas estupidezes pedagógicas na consagração do maior idiota do setor, Paulo Freire, como “patrono da educação brasileira”. Os erros cometidos nos treze anos de gestão companheira na educação, desde cursos obrigatórios com sentido puramente demagógico – como espanhol e estudos afro-brasileiros no primário, e filosofia e sociologia obrigatórias no secundário – e ausência completa de metas aferíveis nesses níveis, assim como o esquerdismo inerente à tal “pedagogia do oprimido” que inspirou (e ainda inspira) os responsáveis de áreas relevantes da educação pública, concorrem, todos eles, para colocar o Brasil em posições deploráveis nos indicadores universais do setor (Pisa, da OCDE, por exemplo).

Reformas parciais – aliás fortemente contestadas por sindicatos do setor e pelos partidos de esquerda, que dominam os primeiros  não vão alterar significativamente os péssimos resultados registrados até a atualidade. O Brasil necessita, urgentemente, de uma verdadeira revolução educacional para converter o seu ensino fundamental de deplorável em simplesmente medíocre, uma condição que já representaria algum progresso em relação à situação atual. Quanto ao terceiro ciclo – caracterizado por uma notável distância vis-à-vis o sistema produtivo – caberia explorar a via de uma autonomia bem mais ampla, em relação aos padrões atuais, e uma mudança radical nos modelos de gestão, atualmente marcados pelo democratismo de baixo clero e pela demagogia desenfreada na administração dos recursos públicos. Sou relativamente pessimista quanto à recuperação de uma boa dinâmica econômica, mas sou absolutamente pessimista quanto às perspectivas na frente educacional: pelo que vejo, no futuro previsível, não existe nenhum risco de melhorar significativamente.

 

4.5. Abertura aos investimentos estrangeiros e ao comércio internacional 

O Brasil é um país notoriamente fechado ao comércio e aos investimentos, o que é facilmente detectável pelo baixo coeficiente do comércio exterior na formação do PIB e por diferentes mecanismos restritivos ao capital estrangeiro em diversos setores da economia. Desde o período da independência, parece uma mania nacional depender mais de financiamentos externos do que investimentos diretos, a ponto de se perguntar se o brasileiro não é caracterizado por uma dissonância cognitiva consistindo em amar o capital estrangeiro, masdetestar o capitalista estrangeiro. Alta proteção tarifária desde meados da era monárquica, lei do similar nacional desde o início da República, e diversos outros mecanismos protecionistas e nacionalistas ao longo de toda a nossa história econômica fizeram do Brasil um país singularmente isolado das correntes mais dinâmicas da economia mundial, presente com grande destaque na oferta de diversas commodities relevantes, mas praticamente ausente dos intercâmbios em produtos dotados de maior elasticidade-renda, notadamente as manufaturas de grande valor agregado. 

O Mercosul, que tinha sido concebido como uma plataforma essencial para a inserção competitiva dos quatro membros originais na economia mundial, foi convertido, durante a era companheira, em palanque político para discursos e demagogia bolivarianos. A política comercial e toda a diplomacia lulopetista insistiram numa equivocada opção pelo “Sul Global”, em total descompasso com o que faziam, aliás, os próprios aliados preferenciais dos lulopetistas nesse âmbito geográfico. O Brasil perdeu todas as oportunidades oferecidas numa fase anterior para fechar acordos comerciais, e agora só lhe resta uma estratégia de abertura unilateral e de melhoria na situação interna de competitividade exportadora, a começar pela redução significativa dos tributos que incidem sobre a atividade produtiva. 

 

5. O que fazer daqui para a frente?

O conjunto de tarefas aqui listado pode não ter uma relação direta com as questões de defesa e segurança, ou com qualquer pensamento estratégico de defesa, do ponto de vista do Instituto que se encontra atualmente sob meu comando. Mas considero que a atual fase de transição do Brasil requer, antes de mais nada, um esclarecimento pleno sobre a real situação do país e uma consciência igualmente plena sobre as reformas que são necessárias para nos colocar novamente num patamar de crescimento sustentado. 

A defesa, no Brasil, longe de ser apenas um projeto, ou mesmo antes de ser uma estratégia de defesa está, na verdade, conectada a projetos nacionais ou setoriais de desenvolvimento. Mesmo projetos aparentemente inúteis do ponto de vista da defesa – como o submarino nuclear, por exemplo, ou maior capacitação na área aeroespacial  são, efetivamente, apostas no desenvolvimento tecnológico do país, uma prática que os militares desenvolveram desde semprePor nossa parte, nós, os diplomatas, se temos alguma ideologia, desde pelo menos a segunda metade do século passado, ela é a ideologia do desenvolvimento, que parece ser a obsessão comum a nossas duas corporações.

Permito-me observar que a capacitação geral no terreno da defesa pode até ser realizada por meio de uma conquista de nacos maiores do orçamento geral, mas como já sugeri mais acima, um maior orçamento militar não significa, de fato, maiores recursos para a defesa do país (o que constitui, aliás, um debate fortemente enviesado por suposições pouco realistas sobre o cenário regional e internacional). Quem quer que olhe para o orçamento da área militar sabe dizer, com precisão, o que anda errado nesse setor. Aposentadorias e pensões ocupam, por exemplo, uma fração relevante dos gastos no setor, o que é uma distorção em termos de organização dessa área para os fins que são os seus, de fato.

Tanto quanto outras corporações estatais, como os diplomatas, por exemplo, os militares fazem parte de umestamento burocrático mais centrado sobre suas demandas setoriais do que partícipe de um projeto nacional de reformas indispensáveis ao avanço da nação. Essas reformas não constituem nenhum novo grande projeto de engenharia social, mas passa, justamente, pela redução do peso do Estado sobre o setor produtivo, o que talvez não combine com os projetos corporativos dos mandarinsestataisA luta contra a corrupção e a inépcia no setor público, assim como a expulsão dos totalitários do sistema político-partidário, constituem etapas indispensáveis nesse processo de reformas, mas esse processo não pode reduzir-se a isso. 

O Brasil precisa de uma verdadeira revolução nas concepções gerais que presidem à formulação e execução de suas principais políticas públicas, macro e setoriais, uma vez que seu atraso em relação a outras economias emergentes não é tanto de ordem material, mas sobretudo de natureza mental. Essa é a minha conclusão geral quanto ao poder das ideias na tarefa de reconstrução da nação nesta etapa transitória que atravessamos atualmente.

O isolamento das pressões competitivas do sistema internacional, o fechamento aos intercâmbios mais dinâmicos do comércio mundial, os equívocos cometidos na esfera educacional, a acumulação de poder econômico na esfera política, a expansão exagerada do Estado e sua intrusão na vida das empresas ou dos cidadãos, assim como o corporativismo exacerbado dos mandarins públicos contribuíram para criar esse quadro de anomia que foi precipitado pela inépcia e corrupção dos companheiros, os bárbaros que fizeram o Brasil retroceder mais de uma década em termos econômicos e muito mais nos planos ético e moral. O retrocesso institucional é evidente em face da falta de consenso nacional em torno das reformas necessárias, e de uma divisão persistente em diversas camadas da opinião pública, fratura criada não só pela ação deletéria dos expulsos recentes do poder político e seus partidos sectários, mas também pelas concepções atrasadas, ainda pré-queda do muro de Berlim, exibidas por essa outra classe de mandarins, supostamente mais esclarecida: os acadêmicos. A predominância do que pode ser chamado de gramscismo vulgar – ou seja, apenas instintivo, sem qualquer leitura mais elaborada – nesses meios é estupefaciente, em vista dos amplos recursos de informação de que todos dispomos atualmente, pelos mais diversos canais. 

 

6. Uma pergunta final

Será que o Brasil tem de esperar que todos os partidários de ideias toscas sobre a economia, a educação e a organização política desapareçam dos cenários em que atuam, antes de alguma melhoria substantiva nas políticas públicas fundamentais? Quando eu me refiro a partidários de ideias toscas eu me refiro tanto aos representantes políticos e a empresários do setor privado, quanto aos mandarins do Estado e os da universidade, e também aesses representantes anacrônicos de partidos políticos de esquerda, os mais fundamentalmente equivocados quanto aos problemas e reformas necessárias, e os mais responsáveis, certamente, pelo atual desastre econômico inédito na vida do país. 

Da igual forma, minha proposta sobre o“desaparecimento” das ideias toscas tem a ver com a conhecida tese sobre a mudança de paradigmas nas ciências, que aparentemente só ocorre quando os partidários das concepções antigas finalmente deixam definitivamente a cena, em benefício de gerações mais jovens. Quero crer que um trabalho didático, de combate de ideias, pode apressar esse processo de renovação das concepções gerais das elites brasileiras quanto a um diagnóstico preciso sobre os males do Brasil e sobre as prescrições necessárias para sua superação. É o que venho tentando fazer durante a maior parte de minha vida, agora como Diretor do Instituto de Pesquisa de Relações Internacionais. Vou perseverar nessa direção, e espero ser bem sucedido nesse empreendimento.

Grato pela atenção. 

 

Brasília, 16-17 de novembro de 2016

 

 

quarta-feira, 16 de novembro de 2016

Brasil: um sistema politico canceroso - Rubens Ricupero (Consultor Juridico)

COLAPSO CONSTITUCIONAL

"Nosso sistema político é como um câncer, com células crescendo desordenadamente"

O sistema político brasileiro é como um câncer, que cresce por meio da proliferação das células de maneira tão desordenada que acabam por sufocar o organismo, levando-o à morte. Na segunda parte da entrevista do diplomata e ex-ministro da Fazenda e do Meio Ambiente Rubens Ricupero, à ConJur, (leia a primeira parte aqui), ele analisa o contexto político-econômico do país.

O momento vivido pelo Brasil desde as eleições de 2014 é preocupante, tanto pela tensão política, quanto pelas dificuldades econômicas. “O Brasil tem penado muito para construir um regime democrático que seja, ao mesmo tempo, inclusivo, participativo e estável”, afirma.
Segundo o ex-ministro, o modelo político brasileiro chegou ao seu limite, e não é de agora.  “Se nós recuarmos, para não ir muito longe, ao período em que acabou a 2ª Guerra Mundial e houve o movimento para afastar o Getúlio Vargas, que pôs fim à ditadura do Estado Novo. Desde aí, quase 70 anos se passaram, e, nesse período, houve três regimes, sob três sistemas políticos”, explica Ricupero.
Sobre o impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff, ele destaca que qualquer processo nesse sentido é uma expressão de fracasso. “O fracasso de um governo, o fracasso de uma pessoa, não é? Fracasso de uma proposta, de uma abordagem dos problemas.”
Ainda sobre o modelo político brasileiro, Rubens Ricupero reforça que ele foi pouco alterado pela Constituição de 1988, nascendo já com um “pecado original”: a organização do Estado.
Leia a entrevista:
ConJur — Nós tivemos dois impeachments em menos de trinta anos, o nosso modelo político está exaurido?
Rubens Ricupero —
 Está há muito tempo. Toda a história política do Brasil, é muito acidentada. Nos últimos tempos, sem dúvida. Se nós recuarmos, para não ir muito longe, ao período em que acabou a 2ª Guerra Mundial e houve o movimento para afastar o Getúlio Vargas, que pôs fim à ditadura do Estado Novo. Desde aí, quase 70 anos se passaram, e, nesse período, houve três regimes, sob três sistemas políticos. O primeiro, foi o da Constituição de 1946, que durou menos que 20 anos, pois foi interrompido pelo golpe militar de abril de 1964.
Por exemplo, a Constituição é de 1946, mas em 1964 entra um regime não constitucional. O regime militar vai durar 21 anos. Ele é todo, do começo ao fim, ilegítimo e inconstitucional. Não obstante eles terem aprovado constituições e atos institucionais, é ilegítimo. E, finalmente, temos um novo regime, que poderia se chamar de terceira República, talvez, porque a primeira foi a da Proclamação até a revolução de 1930. A segunda, é a que se seguiu com a Constituição  de 1946, e essa seria a terceira. Essa, começa em 1985, com a saída dos militares, e dura 31 anos. Teve até a aprovação da Constituição em1988, mas o regime já começa em 1985. Então, nesse período, dos 71 anos, nós já temos que deduzir os 21 anos o governo militar que são totalmente ilegítimos.
Portanto, sobram 51 anos. Dos 51 anos, na primeira fase, só terminaram o mandato, foram eleitos democraticamente e terminaram o mandato o marechal Dutra e o Juscelino Kubitschek. O Getúlio Vargas se suicidou em 1954, para não ser deposto; o Jânio Quadros renunciou com oito meses de governo e o João Goulart foi deposto. Do regime que começa em 1985 até agora, o primeiro presidente eleito por voto direto foi impedido — porque o Sarney tinha sido eleito pelo Congresso e para vice, né, nem para presidente... Aí houve um período muito bom que talvez seja a era dourada dessa terceira República, que é o período de 19 anos: os primeiros oito anos de Fernando Henrique, e os oito anos de Lula.
Eu sempre digo que, do ponto de vista do Lula e do PT, o melhor teria sido que o relógio da história estivesse detido em dezembro de 2010, porque marcaria o triunfo dele. Crescimento de 7,6%, popularidade de 83% depois de oito anos de governo e eleição da sucessora. Se tivesse parado naquele momento era a glória. Infelizmente, a história continua e nós sabemos o que veio depois. É uma história acidentada. É o mínimo que se pode dizer. Isso prova que o Brasil tem penado muito para construir um regime democrático que seja, ao mesmo tempo, inclusivo, participativo e estável.
ConJur — Mas não somos os únicos com essas características?
Rubens Ricupero —
 Deve-se dizer em nosso favor que nós não somos um caso único no mundo cultural e histórico de que pertencemos, né. Que é o mundo da América Latina. Se nós olharmos do México ao Sul, todos, mais ou menos, estão no mesmo barco. Alguns mais, outros menos. A Costa Rica tem sido mais estável em não ter golpes. O Chile, mais recentemente, mas teve uma ditadura militar atroz. A Argentina, a Colômbia tinha guerra civil, Venezuela, ni hablar, como dizem os hispânicos. Então, no mundo em que nos movemos, que é o nosso mundo, e que é onde é válida a comparação, porque somos países que tiveram o mesmo tipo de colonização ibérica, que chegaram à independência na mesma época, que têm uma estrutura econômica parecida. Nesse mundo, o Brasil não faz uma figura nem boa, nem ruim. Não se destaca.
Não é, como na época do império, em que havia aquela crença errônea de que o Brasil era uma exceção brilhante pela estabilidade. Na verdade, era escravidão. A gente sabe que aquilo tudo é muito falso. Seria bom para a ideia que os brasileiros fazem de si próprios uma certa sobriedade. Nós não somos melhores que os outros. Agora, é uma história complicada. Mostra primeiro a dificuldade em construir um regime democrático com todas aquelas qualidades que eu mencionei. E indica, também, que os diferentes regimes políticos — isto é, o conjunto de instituições que foram criadas pelas constituições brasileiras — sempre mostraram a sua imperfeição diante das crises.
ConJur — A culpa é do nosso sistema político?
Rubens Ricupero —
 O atual sistema, que nasce da Constituição de 1988, tem características curiosas. O sistema político, propriamente, não é muito inovador. A Constituição de 88 teve coisas inovadoras em termos de melhorias sociais, mas, na forma de organizar os Poderes do Estado — o Executivo, o Legislativo e o Judiciário —, a divisão em ministérios, o tipo de legislação partidária... Não mudou muito. Isso vem de muito tempo atrás. Não houve uma imaginação criadora.
Criou-se um sistema político com um pecado original. Os cientistas políticos brasileiros, sobretudo os mais recentes, que estudaram nos Estados Unidos e que têm muito essas metodologias de análise de eleições e de processo legislativo, costumavam dizer, até pouco tempo atrás, que não havia nada de errado com o sistema político brasileiro, porque ele cumpria a sua missão, que era a de produzir decisões para permitir que o país fosse governado.
E isso se traduzia no fato de que o Executivo obtinha do Congresso e do Poder Judiciário boa parte do que precisava. Isso, de certa forma, era verdade, porque a Constituição de 88 já tem praticamente uma centena de emendas, incluindo as emendas de redação. Se considerarmos, por exemplo, que a Constituição  americana, que é da década de 1780, tem muito menos. Vê-se que até uma decisão difícil, como é emendar Constituição , é viável no Brasil com esse sistema. Essa visão peca por ter considerado o sistema como se ele fosse sempre igual a si próprio. Como se ele não fosse dinâmico, como se ele não estivesse sempre se modificando.
Se esses estudiosos fizessem essa afirmação, talvez há 15 ou 20 anos, se poderia mostrar que, de fato, havia decisões, e o custo das decisões não era tão grande, nem do ponto de vista moral, nem do ponto de vista econômico. O que essas pessoas não perceberam é que o sistema político brasileiro é como um câncer. Ele cresce por meio da proliferação das células. No final, as células crescem de maneira tão desordenada, que elas acabam por sufocar o organismo e levando-o à morte. O sistema brasileiro é a mesma coisa. Vários elementos s do sistema estão numa trajetória que pelo próprio desenho do sistema não há como deter.
ConJur — Um exemplo é o grande número de partidos?
Rubens Ricupero —
 Na época do regime militar, no início, havia dois partidos impostos. Depois, quando como começa a abertura, se permitiu a formação de alguns mais, então, além do PDS e do PMDB, foram formados, naquela época, o PTB antigo, o PDT, do Brizola, o PT, que foi fundado logo depois, e o PP [Partido do Povo] — partido que tinha sido fundado pelo Tancredo Neves e pelo Magalhães Pinto e que não durou, logo foi eliminado. Então, havia cinco ou seis partidos que foram crescendo.
E, hoje em dia, são 35 partidos. E estão em curso na Justiça Eleitoral 125 demandas de legalização de partidos. Nem todos conseguirão, mas esses 125 pedidos comprovam o que estou dizendo. É uma proliferação de células. Porque funda-se um partido como se funda uma empresa, para conseguir recursos do fundo partidário. Depois, se atrai um Tiririca da vida, ele se elege e carrega com ele mais quatro ou cinco deputados — inclusive o fundador do partido.
O Supremo Tribunal Federal, infelizmente — não tenho uma opinião muito alta do Supremo. Acho o Supremo muito medíocre na sua ação — cometeu um grande desserviço no Brasil ao decidir por unanimidade que a reforma que tinha sido votada pelo Congresso, da cláusula de barreira, era inconstitucional. O Supremo interpretou de uma maneira absurda o princípio da liberdade de representação, como se ele fosse um princípio absoluto. Nenhum princípio é absoluto. Todos os princípios são moderados por outros princípios. E o Supremo fez um desserviço em não permitir esse aperfeiçoamento da legislação.
ConJur — Qual outro ponto que pressiona os custos?
Rubens Ricupero —
 Mas, além do problema dos partidos, o que pressiona os custos é que as eleições também são mais numerosas. Porque cada vez há mais municípios criados, o que é um absurdo. A maioria deles não tem viabilidade econômica. Até estados novos são criados. As eleições têm um custo proibitivo porque passam a recorrer a meios de comunicação de massa sofisticados, com um grande aparato publicitário. Então, isso tudo leva a uma situação em que o sistema político depende de um mecanismo de transferência de recursos econômicos, da economia para os partidos, e para o bolso dos políticos, porque é difícil distinguir uma coisa da outra.
Ora, uma economia como a nossa, que já perdeu o dinamismo há muito tempo, não tem condições. As próprias empresas privadas, quando se permitia que elas doassem, doavam, mas se ressarciam com contratos da Petrobras, Eletrobrás etc. O fato de que a economia brasileira ainda depende do poder público, em grande escala, leva a essa confusão. A meu ver, nós já estamos numa situação em que esse sistema já não aguenta mais.
A “lava jato” é uma expressão disso. Mas, ainda não se vê, no Congresso, um movimento forte de autorreforma. A meu ver, o sistema atual só pode sobreviver se ele demonstrar sua capacidade de autorreforma. Em tudo, no número de partidos, no financiamento, em proibir as coligações proporcionais, com essa possibilidade de arrastar votos e coisas absurdas como o senador que indica o seu próprio suplente. O sistema é todo errôneo, a começar daquela herança do pacote de abril, do general Geisel, que traz uma distorção da representação, em que estados insignificantes em população elegem um número de deputados muito maior do que poderiam.
Nos Estados Unidos, a cada recenseamento se muda o número de deputados que um estado pode eleger, porque é o princípio democrático da representação. E aí vê-se que não se seguiu esse critério absoluto. Porque o Brasil modera o princípio da representatividade com a ideia de desigualdade, coisa que os americanos nunca fizeram.
ConJur — Mas voltar a essa representatividade não pode nos levar de volta à "República do café com leite"?
Rubens Ricupero —
 Não. Já a parte do Brasil que é desenvolvida e pega todo o Centro-Oeste. De qualquer forma, ou se acredita na democracia representativa ou não. Porque, se a representativa não pode ser na base de um homem, um voto, se o voto de alguns tem mais valor do que o de outros, então não se pode aplicar isso para permitir a proliferação de partidos. É contraditório.
É um  sistema muito imperfeito. Em resumo, até se poderia dizer, as instituições brasileiras são imperfeitas, muito imperfeitas, e mais imperfeitos são, ainda, os homens e as mulheres que as manejam. As instituições, a Constituição, elas são muito imperfeitas. E as pessoas que são encarregadas de interpretá-las têm uma atitude de indulgência em relação a essas coisas. Não quero dizer que precisa ser uma reforma perfeita, provavelmente ela vai ser imperfeita, mas algumas coisas essenciais precisam ser sanadas. Ou se faz isso, ou se caminha para outra crise.
Essa mudança de agora não é uma mudança maior na evolução do país. É um episódio que não chega a transformar as questões essenciais. Se isso não mudar, essa crise apenas é o prólogo de outras crises. As pessoas têm essa ingenuidade, de achar que chegando a 2018, uma nova eleição presidencial resolve tudo. Não resolve nada. Porque vai se fazer em condições ainda mais precárias.
ConJur — Essa expectativa de melhora, juntamente com a volta do crescimento econômico, não pode contribuir para o enfraquecimento das investigações?
Rubens Ricupero —
 Não creio. Vai depender muito das revelações. Porque as pessoas têm uma expectativa pequena, mas uma indignação enorme contra a corrupção. O descompasso é muito grande. E as delações vão aumentar ainda mais essa indignação. Teria que ser necessário um sucesso, assim, astronômico, que eu não antevejo. Todo mundo teria que virar milionário para ficar indiferente a isso. Não se pode subestimar a profundidade do descrédito dos políticos e da indignação.
ConJur — E o Congresso nesse contexto?
Rubens Ricupero —
 O Congresso, não tenho dúvidas, se puder, faz aí uma grande maracutaia. Mas não creio que eles teriam força para isso.
ConJur — O que pesou mais na saída da agora ex-presidente Dilma Rousseff: a perda de confiança dos atores econômicos, ou a perda de apoio no Congresso?
Rubens Ricupero —
  É difícil de atribuir uma porcentagem. Em termos jurídicos, eu penso que ela, de fato, cometeu crimes contra a lei de responsabilidade fiscal — que são graves e que justificam a remoção da pessoa do poder. Não é esse o sentimento popular. Porque as pessoas tendem a só considerar grave o enriquecimento pela corrupção ou o comportamento pessoal desordenado — o que não é o caso dela. Mas, em matéria de consequências, o que foi feito no governo dela, em termos de violação da lei de responsabilidade fiscal, contribuiu enormemente para a crise econômica.
E quando se vê que o Brasil tem hoje milhões desempregados, uma boa parte disso é consequência do que foi feito. Portanto, se justifica a remoção. Agora, o que contribuiu mais, além desse episódio, que é o que justifica legalmente, é o fracasso geral. É como se costumou dizer: “o conjunto da obra”. E isso é uma avaliação de todos, né. A partir de um certo momento, mesmo aqueles deputados, ainda na época que o impeachment estava na Câmara, quando ainda havia líderes do PMDB, como o pai do deputado Picciani, que é o líder do estado do Rio. Ele declarou, numa atitude que parece muito representativa, que, a partir de um certo momento, as pessoas se convenceram que ela perdeu as condições de governabilidade. Não havia mais volta. E isso exigia, portanto, uma ação.
No caso do Congresso, e da opinião pública, em geral, isso pesou muito. A atitude dos empresários, dos agentes econômicos é apenas um dos elementos. A percepção, em geral, foi essa, de que, de certa maneira, o governo se derrubou. Ele criou as condições para que gradualmente fosse perdendo apoio até daqueles que, durante muito tempo, fizeram parte da base governamental. A votação final no Senado representa mais de 75%. É muito alto para chegar a isso.
ConJur — A saída pelo conjunto da obra não pode abrir um precedente perigoso no presidencialismo? E essa motivação para a cassação não mostra que o nosso sistema está muito mais próximo de um parlamentarismo do que imaginamos?
Rubens Ricupero —
 A Constituição brasileira é  híbrida. Ela foi feita, no início, para ser parlamentarista. Depois é que se alterou devido àquele conflito sobre a apuração do mandato do Sarney. Mas ela tem muitas características parlamentaristas, sobretudo no sentido de que o congresso brasileiro tem poderes gigantescos sem ter responsabilidade, porque ele não é o governo. Era melhor completar isso.
É verdade que para o impeachment são necessárias duas coisas: uma é o conjunto da obra, mas a outra é que haja um crime. Nesse caso, ao meu ver, como já disse, há um crime de responsabilidade. Eu não sou dessa opinião de que as pedaladas fiscais são uma coisa menor. Ao contrário, acho gravíssimo. Se desfez grande parte do esforço que fizemos desde o plano Real para tentar colocar o país numa situação simplesmente de sanidade mental. Vejo com muita preocupação essa tendência dos que recusam isso. Porque mostra que eles seriam incapazes de compreender o mecanismo elementar da economia. Não se pode querer, voluntariamente, gastar aquilo que não se tem. Se o país quiser retomar o caminho do crescimento mais estável, é preciso ter as finanças saneadas. E isso vale em qualquer regime, comunista ou não. Não pode se ter essa fantasia que temos aqui, que o dinheiro é uma coisa que você colhe no ar.
ConJur — E as comparações com o impeachment do ex-presidente Fernando Collor?
Rubens Ricupero —
 No caso de agora há uma diferença:  preservaram os direitos políticos dela. Acho que, um pouco, em homenagem ao fato de que ela é percebida como uma pessoa decente do ponto de vista de moral pública. Houve essa distinção no caso do julgamento sobre o caráter, que é um pouco diferente. Mas a diferença que vejo, que vai pesar no governo Temer, é que há vários aspectos diferentes para pior, e um aspecto para melhor em relação à única experiência semelhante que nós tivemos, que foi o impeachment do Collor e a posse do presidente Itamar.
O que é pior, hoje em dia, em primeiro lugar, é a existência da operação “lava jato”. É curioso que durante as duas semanas, quando o processo de impeachment ingressou na fase decisiva, que o interesse pelos procedimentos se tornou tão grande que as pessoas praticamente esqueceram que existe a “lava jato”. Pelo menos, ela passou para segundo plano. Eu estava vendo os jornais do dia seguinte ao impeachment e não há nem praticamente menção a ela. Mas, ela não terminou e ninguém mais vai querer ler sobre o impeachment. Há uma espécie de fadiga. Depois de meses e meses, passadas as primeiras edições que vão dar um balanço, e que tem que ser rápido. Porque, depois, ninguém mais vai querer.
ConJur — Por quê?
Rubens Ricupero —
 Abre-se um vácuo que tem que ser ocupado ou pela ação do governo, ou então pelos fatos que vão ser produzidos. E muitos deles devem ser produzidos pela “lava jato”. Porque há um número muito grande de delações em curso. Só o da Odebrecht tem 51 executivos fazendo delações.
É provável que uma boa parte desse número não tenha muito a dizer. Mas, alguns, provavelmente, terão. E é impossível, como já vimos no passado, tentar prever o que é que vai sair dessas delações. Então, esse tipo de incerteza — porque o presidente disse no discurso: “agora, a incerteza chegou ao fim”  — infelizmente, para ele, não chegou. A operação “lava jato” continua e é um fator de incerteza, que não existiam no caso do Itamar.
O segundo fator de incerteza — menor, mas que existe, também — é o procedimento, no Tribunal Superior Eleitoral, sobre o financiamento ilegal da chapa da Dilma e do Temer. Embora a tendência pareça ser a separar. Mas, é uma incerteza. Como se diz: os advogados nunca sabem o que é que vai sair da cabeça do juiz. Então, não se pode, absolutamente, prever. E, em terceiro lugar, um outro fator que é pior hoje, é que, no caso do Collor, ele caiu sozinho. No final, não havia mais defensores do Collor. Nesse caso, não. Houve luta. A própria presidente lutou bravamente até o fim. Foi ao Senado. Ela tem apoiadores. Há o PT, que é um partido organizado.
Esse tipo de oposição não existia em relação ao Itamar. Na época, o Itamar fez um governo de união nacional e ele quis, até, trair o PT. O PT não ingressou, devido à sua linha tradicional, mas, na prática, o partido deixou que elementos seus participassem do governo. Eu posso dizer isso porque eu fui, na época, ministro do meio ambiente e da Amazônia, e principal órgão da minha pasta, que era o Ibama tinha, praticamente, toda a diretoria nas mãos do PT.
Quando eu me queixava com o Itamar — não porque fosse do PT, mas porque era uma diretoria muito inoperante, passava um tempo fazendo reuniões —, ele me dizia: “ah, eu preciso tomar cuidado, eu tenho que deixar alguns elementos”. Havia uma certa participação indireta do PT. Hoje, isso não existe. Vai haver um combate.
ConJur — E qual é o fator positivo?
Rubens Ricupero —
 Já o fator que é melhor, que não estava presente naquela ocasião, é a existência de uma equipe econômica forte, já em funcionamento desde a interinidade. Porque a interinidade, nos dois episódios, foi parecida. A Câmara dos deputados votou o afastamento do Collor no dia 29 de setembro de 1992. Itamar tomou posse como interino no dia 2 de outubro. E só se votou o impeachment no fim de dezembro.
O Itamar demorou muito para encontrar um apoio à equipe econômica. A primeira pessoa que ele convidou para ministro da Fazenda fui eu. Ele me telefonou para Washington e eu recusei. Ele convidou depois o Gustavo Krause. Foi o Gustavo Krause, depois o Paulo Haddad, que era de Minas, e depois o Elizeu Resende, também de Minas. Houve três. Só o quarto ministro da Fazenda, que foi o Fernando Henrique Cardoso, é que conseguiu trazer uma equipe qualificada e passou, também, a negociar com o Congresso. O Itamar demorou, praticamente, entre oito e nove meses para ter uma equipe econômica que ficou até o fim.
Porque, apesar de eu ter substituído o Fernando Henrique e, mais tarde, ter sido substituído pelo Ciro Gomes, não mudou mais em essência. Mas perdeu-se esse período. Foi muito difícil. Hoje as pessoas esqueceram, mas o começo do governo dele foi complicado. Já, agora, o Temer teve o acerto de escolher uma equipe de primeira qualidade. Sempre digo que se a seleção de futebol do Brasil fosse metade do que é essa equipe, nós conquistaríamos o campeonato do mundo.
É muita gente boa. Tanto o ministro da Fazenda, os postos principais da Fazenda, por exemplo, o Mansueto de Almeida, o Banco Central, as diretorias Num sentido amplo, incluo na equipe econômica o Pedro Parente, que está fazendo um grande trabalho na Petrobras, a Maria Silvia no BNDES. Já mudou o clima. Mas essa diferença positiva não basta. Porque ela precisa, para produzir efeitos, que o Congresso, como um todo, tenha uma atitude cooperativa. Até agora não foi mal, apesar daqueles episódios claudicantes que houve sobre o aumento do funcionalismo. Mas, eram coisas mais ou menos avançadas, como a dívidas dos estados. A verdade é que o Congresso já aprovou a Desvinculação de Receitas da União (DRU).
Ela era absolutamente necessária para que o ministro da Fazenda pudesse flexibilizar um pouco a poupança, a economia de gastos. Porque tudo era amarrado pela Constituição. É uma emenda constitucional que foi proposta e aprovada na época do Fernando Henrique. Foi o que viabilizou o Plano Real, a parte orçamentária. E, agora, foi prorrogada, né. O Senado já votou em definitivo. Isso foi positivo, assim como a aprovação do déficit fiscal de R$ 169 bilhões pelo Congresso. Também foi positivo aprovar a questão do escalonamento da dívida dos estados e dos municípios.
ConJur — E a Previdência?
Rubens Ricupero —
 O presidente anunciou que vai enviar essas propostas, inclusive, a reforma trabalhista. O que se pode esperar não é a grande reforma, completa, que se desejaria para a previdência social. Mesmo porque, nem Fernando Henrique em oito anos, nem Lula conseguiram isso. Houve avanços tanto com Fernando Henrique como com Lula em um ou outro aspecto, como o sistema dos funcionários públicos, mas, sempre insuficiente. Agora, provavelmente, vai ser a mesma coisa. A reforma da Previdência no mundo inteiro, onde se fez, foi feita por fatias. Foi sendo feita gradualmente.
Provavelmente, aqui, não vai ser uma exceção. E, imagina-se que alguma coisa vai avançar. A grande expectativa, e eu acho que é disso que vai depender a sorte do governo, é saber se nessa questão, e na questão da contenção dos gastos, vai se obter do Congresso um tipo de decisão que permita esperar um declínio gradual do déficit e da trajetória da dívida pública. As duas questões estão ligadas. Porque o que pressiona mais o aumento dos gastos no Brasil é a previdência. São, sobretudo, as despesas obrigatórias da previdência.
ConJur  — O que achou do impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff?
Rubens Ricupero —
 Desde o início, sabe, o Brasil se encontrava em uma situação de dilema como o dicionário define. Isto é, uma situação difícil, e em que todas as saídas são más, são ruins. Não havia uma boa saída. Basicamente, as alternativas eram apenas dua: ou a presidente ficava no cargo, ou ela seria substituída pelo vice-presidente, e pelo processo deimpeachment...
Entre essas duas, eu ainda penso que a segunda, marginalmente, é preferível, porque pela experiência de cinco anos de governo, não havia mais esperança de parte da população de uma melhora. Os agentes econômicos todos tinham perdido a esperança.
É um sentimento subjetivo. Ela não tinha mais condições de recuperar essa confiança e essa esperança. Na segunda hipótese, que é a entrada de um novo governo, existe uma expectativa que é a que acompanha sempre a mudança. Toda alteração, em geral, gera a expectativa de uma melhora. É garantido de que vai ser melhor? Não é.
Nós vamos precisar esperar para ver se, de fato, essa mudança é para melhor, para pior ou vai ficar igual. Mas, pelo menos, ela permite esperar. Enquanto que a primeira hipótese não permitia. Agora, dito isso, portanto em favor da mudança, é um dia triste, não é? Não é um dia que alegre. Porque todo impeachment é a expressão de um fracasso.
O fracasso de um governo, o fracasso de uma pessoa. Fracasso de uma proposta, de uma abordagem dos problemas. E aí ninguém pode se alegrar como um fracasso que tenha causado tanto dano, né, como causou à economia e à política do país. Portanto, é um momento bastante sombrio, né, que precisa ser superado pela ação, pelo trabalho, pela criação da confiança. Eu não me atrevo muito a fazer prognóstico porque creio que só os fatos concretos é que podem confirmar ou não a expectativa positiva.

terça-feira, 15 de novembro de 2016

Stefan Zweig no Brasil: livro sobre sua primeira viagem, em 1936

Já sob o impacto da Lei de Segurança Nacional, mas ainda antes do Estado Novo. Em todo caso, ele foi muito bem recebido, com todo o apoio do Itamaraty, como convinha ao maior escritor da época, um dos grandes intelectuais do século.
Paulo Roberto de Almeida

Versal Editores, Casa Stefan Zweig e Goethe-Institut apresentam

8O ANOS DA CHEGADA DE STEFAN ZWEIG AO BRASIL

Em 21 de agosto de 1936, o RMS Alcântara atracou no porto do Rio de Janeiro trazendo a bordo uma celebridade: o austríaco Stefan Zweig, um dos maiores sucessos literários do mundo. De passagem para uma conferência do P.E.N. Club em Buenos Aires, essa escala de pouco mais de uma semana no Rio de Janeiro foi decisiva: Zweig se encantou pelo país. Registrou suas impressões no texto que intitulou "Pequena viagem ao Brasil", precursor do famoso "Brasil, um país do futuro".

Outras duas vezes Zweig haveria de desembarcar no mesmo porto: em 1940 e em 1941, já para vir morar em Petrópolis, onde ele e sua segunda mulher, Lotte, decidiram pôr um fim à vida em fevereiro de 1942, no meio da Segunda Guerra Mundial. Como diz seu biógrafo Alberto Dines em Morte no paraíso, a tragédia de Stefan Zweig: "Morreu pouco depois de completar 60 anos. De tanto retornar, revive. Stefan Zweig matou-se, mas recusa desaparecer. Está vivo."

Para falar dos 80 anos desde que Zweig pisou pela primeira vez no Brasil, a Versal Editores e o Goethe-Institut convidam dois diretores da Casa Stefan Zweig de Petrópolis: Tobias Cepelowicz (que, garoto, testemunhou a ida de Zweig a uma escola judaica no Rio) e Kristina Michahelles, tradutora de diversas livros de sua obra.

PALESTRANTES: Kristina Michahelles (Jornalista, tradutora de diversas obras do autor e diretora da Casa Stefan Zweig) e Tobias Cepelowicz (Diretor da Casa Stefan Zweig)
DIA E HORÁRIO: 18 de novembro, das 18h30 às 19h45
LOCAL: Biblioteca do Goethe-Institut Rio de Janeiro (Rua do Passeio, 62, 2° andar - Centro)
ENTRADA FRANCA

Convite
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