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domingo, 22 de outubro de 2017

Hipoteses de Politica Externa: alternativas para um governo PT (outubro 2002) - Paulo Roberto de Almeida

Entre o primeiro e o segundo turno das eleições de outubro de 2002, quando já se dava por confirmada a vitória do candidato do PT, um jornalista conhecido da Gazeta Mercantil, então o mais importante jornal de economia do Brasil, contatou-me em Washington para pedir minha opinião sobre uma série de questões relativas à política externa do futuro governo. Concordei em expressar algumas ideias desde que fosse em caráter reservado, ou seja, não identificado. Ele mandou-me as questões, eu respondi, mas ignoro se foram ou não aproveitadas em alguma matéria daquele momento.
Como o texto nunca foi divulgado, e como o assunto agora não tem muita importância -- isso em termos práticos, pois continua a ser relevante pois vários dos temas continuam pendentes -- resolvi divulgar este trabalho, no momento em que faço uma revisão de todo o meu seguimento das relações entre partidos políticos e política externa. O tom geral é bastante otimista, talvez até demais. Uma das questões tocava no problema das esquerdas, ao que eu respondi da seguinte forma: “Não teremos um governo de “esquerda partidária” no Brasil, mas um governo identificado com forças progressistas. A ideologia política não deveria influenciar a ação governamental, ainda que algumas declarações de dirigentes políticos (não necessariamente na Chancelaria) possam induzir a essa identificação com “velhas amizades” nas ONGs progressistas.” Como se vê, enganei-me completamente: o que tivemos, justamente, foi uma política externa partidária, e até secretamente sectária (o que precisa obviamente ser provado).
Paulo Roberto de Almeida 
Brasília, 22/10/2017 

 
Hipóteses de Política Externa – Novo Governo do PT

[Paulo Roberto de Almeida
NÃO CITAR SEM AUTORIZAÇÃO DO AUTOR

1) Mostrar o quadro daqui pra frente, os principais desafios. O que terá que ser enfrentado pelo PT no campo externo, a partir de novembro? Algum desafio sério?
O principal seria o eventual recrudescimento da turbulência econômica, fuga de capitais e coisas do gênero. Creio que a equipe econômica de transição, que será suficientemente confiável, tem condições de, em pleno entendimento com a equipe atual, debelar esses focos, ainda que algum rescaldo (maior desvalorização, etc) possa ocorrer.
No plano negociador externo, creio que as tomadas de posição quanto à Alca, Mercosul, relações com os EUA, serão igualmente responsáveis e profissionais, sem qualquer ameaça de derrapagens verbais ou conflitos retóricos. Não creio, pessoalmente, que grandes mudanças possam ocorrer em relação à postura já adotada pelo Itamaraty (e que corresponde à orientação de FHC) na maior parte dos temas da agenda externa. Poderá haver alguma ênfase verbal na defesa do “interesse nacional”, na busca de resultados equilibrados na Alca e nas demais negociações comerciais, mas nada que destoe excessivamente do que já vem sendo dito ou praticado atualmente.

2) Haveria uma mudança de postura ou continuidade com mudança de tom e ritmo?
Depende de quem seria o chanceler. Se for um profissional da Casa, dificilmente haveria grandes mudanças, mesmo com alguma concessão à retórica dos novos tempos. Se for um político ou personagem partidário, haveria inevitavelmente mudança de estilo e na forma de atuação, mas não acredito que possa haver alteração substancial dos métodos e formas de trabalho diplomático do Itamaraty.

3) A Alca, o TNP, negociações com UE e na OMC, aproximação com a Asia, a Africa , o projeto de integração sul-americana etc.
Tenderá o discurso a ser mais afirmado nas relações com o Sul e outros grandes países “periféricos” (onde o programa coloca além da Índia, a China e a Rússia, sic), mas creio que não se voltará atrás no TNP (o mais razoável seria deixar como está, pois qualquer mudança seria não só contraproducente, como inutilmente desgastante). Na Alca e na OMC, será a retórica desenvolvimentista, ou seja, nada de muito extraordinário em relação ao que já tivemos no passado e de certa forma ainda hoje.

4) Importante: o relacionamento com os EUA. O que podemos prever? Sabemos que a embaixadora Donna Hrinak está fazendo um trabalho bom, em Washington, para convencer diferentes atores que o Lula e o PT não são bichos-papões.
Sem dúvida, a Embaixadora desempenha um importante papel “apaziguador”, junto aliás com o RAB em Washington. São profissionais, que sabem lidar com as pequenas ou grandes dificuldades de uma relação assimétrica. As relações continuarão boas no plano político (sem o calor dos tempos FHC-Clinton, ambos da Terceira Via), e com as dificuldades conhecidas, e todas identificadas, no plano comercial, bilteral, hemisférico ou multilateral. Mas, não há porque pensar que essas dificuldades redundarão em maior tensão ou desgaste adicional. Brasil e EUA presidirão as negociações da Alca com bastante profissionalismo e sentido da importância do processo. Mas, como o processo todo é muito complexo, e dependente de soluções a serem alcançadas em Genebra, poderá haver algum atraso no calendário originalmente estabelecido para a Alca (término no final de 2004 ou começo de 2005).
Algumas inconsistências americanas terão de ser resolvidas daqui até lá, como por exemplo, a recusa em discutir determinados “temas sistêmicos” (como subsídios à agricultura) na Alca, remetendo-se acertos a Genebra, e sua insistência em discutir outros temas sistêmicos na Alca, como propriedade intelecual ou compras governamentais. Se o assunto é acesso a mercados, por exemplo, nada impediria os EUA de reduzirem as barreiras tarifárias e não tarifárias em agricultura, para nossos produtos competitivos, na Alca, e deixar o tema subsídios para a OMC. Mas se nem isso eles querem conceder, então pode ficar difícil. Creio que o Brasil pode insistir nisso.

5) Nova doutrina de segurança dos EUA, Plano Colômbia, tudo isso significa desafios novos para a diplomacia brasileira?
Não, nada de novo a rigor, ainda que a doutrina do “pre-emptive strike” seja relativamente inédita nas relações internacionais (mas a Carta da ONU reconhece o direito a auto-defesa). No caso da Colombia, o elemento importante é mais a atitude do novo governo Uribe do que propriamente a ação americana, que continua interessada na ajuda ao governo daquele país para conter o problema do narcotráfico.
Quanto ao problema da pacificação do país, o Brasil deve continuar manifestando sua boa disposição para ajudar diplomaticamente no diálogo interno entre os grupos políticos colombianos, mas não temos intenção de oferecer cooperação militar. Isso os EUA entendem muito bem.

6) Cuba: O PT deve continuar com a postura tradicional da diplomacia brasileira? Regionalmente, como seria a politica do PT (México, Argentina em especial)?
Não haverá mudanças básicas, pois a postura do Brasil sempre foi favorável ao término do isolamento diplomático de Cuba. Poderá haver alguma retórica adicional, mas nada de substantivamente diferente. Cone Sul e América do Sul serão claramente prioritários, e com o México as relações devem continuar no patamar correto em que estão hoje.

7) A esquerda mundial, em especial na Europa, representaria alguma forma de apoio adicional ao projeto do PT, ou o PT é que exerceria influência na esquerda (latino-americana em especial), com nova forma de governar e conduzir processos de mudanças? Nesse aspecto, haveria então reflexos na política externa?
Não teremos um governo de “esquerda partidária” no Brasil, mas um governo identificado com forças progressistas. A ideologia política não deveria influenciar a ação governamental, ainda que algumas declarações de dirigentes políticos (não necessariamente na Chancelaria) possam induzir a essa identificação com “velhas amizades” nas ONGs progressistas.

8) Haveria algum modelo comparativo de politica externa já adotada e a que o PT pretende realizar?
Não conheço, e duvido que o PT atue segundo modelos genéricos. A fase de governar segundo “rótulos” já passou e nem o PT pretende ser guiado por algum princípio abstrato de política externa. Pelo que se tem visto nas últimas semanas, o novo governo será bastante pragmático em matéria de política externa, o que significa que não se diferenciará muito do atual, inclusive quanto à falta de um slogan unificador (e necessariamente redutor). Salvo um vago desenvolvimentismo (expressa na diretiva do programa de campanha, segundo a qual a política externa terá papel importante no processo de desenvolvimento do País), o PT atuará segundo as linhas tradicionais da política exerna do Brasil, que já se define como uma “diplomacia do desenvolvimento”.

9) Os barbudinhos do Itamaraty estariam de volta? O que isto significa?
Não se pode dizer que haverá um “grupo” coeso de diplomatas identificados com uma determinada linha. Isso era válido na época da “nova ordem econômica internacional”, em que o Brasil tinha uma grande identidade com as reivindicações transformistas do Terceiro Mundo. Tudo isso mudou e hoje o pragmatismo impera. Não há um grupo dominante que possa ser identificado por traços ideológicos, políticos ou sequer faciais.

10) No mais, como diria o Guerreirinho, a melhor tradição do Itamaraty e saber renovar-se...Como seria esta renovação?
Uma retórica mais afirmada na defesa dos interesses nacionais, a busca de benefícios econômicos claros nas negociações comerciais, um caráter mais operacional e destacado aplicado à diplomacia econômica e a renovação, com forte ênfase, do compromisso com o Mercosul e o Cone Sul. No resto, tudo segue igual.

PRA, 23/10/2002
SEM CITAÇÃO NOMINAL.

Como vencer a transicao: Consequencias economicas da vitoria, parte 4 (4-2002) - Paulo Roberto de Almeida

Ainda fiz um último esforço para ajudar os companheiros – isso antes mesmo do segundo turno – já antecipando sobre as próximas etapas da governança: montagem do gabinete, preparação das políticas a serem implementadas, essas coisas. Pouca gente, se alguém, me leu, mas eu escrevia sobretudo para mim mesmo, para ter ideias claras sobre a governança do Brasil.
Nada do que eu prescrevi deu certo, o que era óbvio, mas nada impede que meus "ensinamentos" continuem a servir ainda hoje a novos candidatos a estadistas do Brasil. Eles não faltam mas invariavelmente falham, por mediocridade de formação, por deformação de carreira, por má influência de oportunistas e de todos os bandidos que se aproximam do poder para lucrar e enriquecer. O poder é isso mesmo: um pote de mel que atrai os mais gananciosos.
Espermos que um dia isso mude. Por isso escrevo e mantenho a esperança...
Paulo Roberto de Almeida
Brasília, 22/10/2017


Como vencer a transição:
recomendações espontâneas sobre como alcançar a vitória na subida ao poder
(da série: Consequências econômicas da vitória, parte 4)

Paulo Roberto de Almeida
(Washington, 20/10/2002)

            Dando continuidade a minha série de reflexões sobre a nova situação política criada com a mudança da maioria social de governo no Brasil – já consubstanciada em trabalhos sobre aspectos pouco usuais do pensamento mudancista – , pretendo tocar mais de perto, não nos elementos constitutivos de um “manual para a nova economia política”, que estava compondo de maneira algo improvisada, mas em uma série de pontos de caráter mais tático do que estratégico, que visam chamar a atenção para problemas do curto prazo, condizentes aliás com a transição relativamente longa que se vive no sistema político brasileiro. Esses pontos podem ser sumariados nas tarefas seguintes:

1) Unificar o discurso
2) Falar ao País, não ao partido
3) Dirigir-se ao mundo, seletivamente
4) Tranquilizar os agentes econômicos
5) Designar os principais assessores, depois negociar
6) Recompor um programa de governo
7) Atender a circunstâncias excepcionais
8) Indicar as linhas do discurso de posse
9) Estruturar as bases do apoio congressual
10) Preparar-se para o pior, manter a mensagem otimista

            Não se trata obviamente de uma lista exaustiva, ou de um “manual para a fase de transição”, mas de alguns pontos que me parecem de consideração relevante na presente conjuntura, a partir de uma observação prática de outros momentos de transição para uma nova maioria, no Brasil e no exterior. A ordem não é essencial, mas pode ser importante.

1) Unificar o discurso
            Trata-se de uma regra absoluta, válida em qualquer momento, em qualquer circunstância do jogo político, por isso vem em primeiro lugar. A liderança fala de uma voz única, ou quando ela não é única é pelo menos unificada, homogênea, concordante, sobretudo em matéria econômica, terreno no qual os perigos são maiores do que em qualquer outro, dadas suas consequências potencialmente catastróficas. Pequenos chefes e porta-vozes auto-assumidos têm de ser alertados para os efeitos nefastos da chamada “dupla linguagem” e o comando central tem de saber impor um discurso uniforme e, portanto, tranquilizador. Em operações militares não pode haver dualidade de comando, e a arte da política tem regras muito semelhantes.

2) Falar ao País, não ao partido
            Quaisquer que sejam os resultados de 27 de outubro, o corpo eleitoral e, mais importante, a Nação permanecerão divididos, independentemente do que diga ou faça o vencedor. A desconfiança em relação ao novo centro de poder é obviamente muito maior no caso de uma mudança importante no centro de gravidade política como a que acaba de ocorrer, com temores infundados e animosidades involuntárias aflorando mesmo na ausência de motivos objetivos para tal estado de espírito. Trata-se de um sentimento talvez exagerado mas não de todo inesperado, dada a situação de incerteza que reina no País sobre diversos aspectos da nova realidade política.
            Contado o resultado do pleito de 27, o vencedor não pertence mais a um partido ou a uma coalizão, mas trata-se de um líder nacional. Por isso, a primeira palavra não deve ser aos seus seguidores mas à Nação, ainda que esse pronunciamento contenha palavras de agradecimento a todos aqueles que tornaram possível a vitória. Esta contudo já pertence ao passado e à História e o que conta doravante é a construção de algo novo, que não será a realização pura e simples da agenda partidária – a Nação ainda está dividida, lembre-se – mas a busca de um novo consenso em favor do conjunto da coletividade. Esqueça por um momento os grupos sociais e os problemas locais, com exceção de uma menção ampla aos excluídos e marginalizados, pois que os interesses começam justamente a divergir quando se mencionam categorias específicas da população. O discurso ao País deve ser unificador e consensualizador, e todas as referências partidárias – de fato todas as vinculações – devem ficar para trás ou em segundo plano. O tom elevado deve ser mantido durante todo o exercício.

3) Dirigir-se ao mundo, seletivamente
            Não cabe ao eleito dirigir mensagens a quem quer que seja, e sim recebê-las e depois respondê-las, em tom formal, cerimonioso, anódino, pois ninguém faz política externa em mensagens de cumprimentos e agradecimentos, salvo algumas referências óbvias à importância e relevância das relações bilaterais e do direito internacional. Cabe, sim, cuidadosamente, planejar eventual viagem pré-posse, já que a teia da globalização e os compromissos em curso não permitem uma espera passiva pela chegada da agenda externa à sua mesa.
            Não será possível cobrir todos os pontos de interesse, ou mesmo aqueles ditos principais, colocados burocraticamente no capítulo de relações exteriores do programa, mas seria preciso ter uma visão clara de onde estão as prioridades na frente externa, que não são necessariamente os pontos que oferecem soluções aos problemas, mas podem ser aqueles que representam a própria fonte desses problemas, ou pelo menos onde um início de solução pode ser encontrado e encaminhado.
            De modo geral, contudo, a raiz de nossos principais problemas encontra-se aqui mesmo no País, são mazelas “Brazil-made” e auto-infligidas, estando sua solução inteiramente sob nosso controle e responsabilidade, sendo não apenas derrisório como francamente inútil buscar suas causas no estrangeiro. O mundo vai aceitar o Brasil como uma grande democracia consolidada, que está justamente dando enormes passos no sentido de resolver internamente seus piores problemas de injustiça social e de miséria residual, de corrupção latente e de desigualdades gritantes no exercício e no gozo dos mais elementares direitos da cidadania. Se nos dedicarmos a isso de forma consequente, com ou sem a cooperação internacional – pois que esta eventualmente está voltada para os ainda mais carentes do que nós – teremos o respeito e a consideração da comunidade internacional. Todo o resto é secundário, inclusive a política externa, que deve ser vista como o prolongamento da política interna por outros meios. Nosso principal problema é o de assegurar uma educação de qualidade a todos os brasileiros? Que seja! Este deve ser também o objetivo da política externa. O prestígio externo será o resultado de termos alcançado aquele objetivo na frente interna, não a consequência de qualquer novo ativismo no plano externo.

4) Tranquilizar os agentes econômicos
            Não se pode negar um ambiente de turbulência na frente econômica, o que é próprio de todas as fases de transição, sobretudo as de nítido sentido paradigmático como a que agora se empreende. Por isso caberia fazer o máximo para restabelecer a confiança dos agentes sociais, pois são eles que garantem, em última instância, o comportamento da conjuntura econômica. Por agentes deve-se entender todo mundo, não apenas o banqueiro e o industrial, eventualmente o investidor estrangeiro, mas também o assalariado e a dona de casa, que se preocupa com sua poupança duramente adquirida, a única garantia de uma velhice um pouco menos sofrida.
            Provavelmente mais da metade da economia é feita de uma mercadoria básica que se chama confiança – na moeda, na capacidade de compra dos salários, no retorno dos investimentos, mesmo aqueles mais arriscados ou especulativos – e a confiança é um elemento terrivelmente difícil de se adquirir e muito fácil de se perder. A componente psicológica de qualquer programa econômica é provavelmente maior do que a de seus elementos matemáticos mais consistentemente lógicos, e de fato não há muita lógica na reação dos agentes econômicos a qualquer fato ou dito no terreno econômico. Cabe inteiramente aos dirigentes econômicos e, em última instância, à liderança política inspirar confiança nos cidadãos enquanto agentes econômicos.
Essa confiança não cresce apenas com a abertura ao diálogo, mas sobretudo com a capacidade demonstrada de tomada de decisão. Há um momento, portanto, em que as consultas precisam ser interrompidas e a decisão anunciada. Ela não vai, não pode, satisfazer a todos ao mesmo tempo, e de fato alguns serão mais sacrificados do que outros. Mas a liderança se afirma, justamente, no momento de explicar claramente a natureza do problema e o sentido da decisão tomada, como sendo a de menor custo social possível, da maneira mais transparente e compreensível a todos os agentes econômicos, mesmo os mais humildes.

5) Designar os principais assessores, depois negociar
            Trata-se de uma derivação da regra anterior, especificamente voltada para a área econômica, pois que uma máquina governamental não pode, pela sua complexidade, emergir pronta de um embate eleitoral. Sua construção é por vezes lenta e penosa, o que justamente alimenta os focos de turbulência econômica, que caberia extinguir em seu início. De todo modo, trata-se do núcleo central de comando, que deve não só dispor da, como corresponder à, confiança total do novo líder, sendo junto a ele responsável, à exclusão de qualquer jogo partidário ou congressual. Por isso caberia designar a equipe econômica que vai começar a trabalhar na primeira fase da transição, dando-lhe inteiro respaldo e preservando-a das inevitáveis barganhas das demais escolhas.
            Uma vez feito isso, pode-se sentar para ouvir velhos aliados e novos amigos, antigos militantes e apoiadores de última hora, sem negociar o que é essencial, isto é, a capacidade governativa no núcleo central. Há que preservar uma certa coerência na máquina governamental, mas algumas concessões terão de ser feitas à esquerda e à direita (sem esquecer o centro), literalmente. Ainda que a montagem seja política, a competência técnica deveria prevalecer sobre indicações meramente partidárias, uma vez que a responsabilidade final sempre incumbe ao presidente, não aos partidos da base aliada.

6) Recompor um programa de governo
            Não se pode pensar que o calhamaço de propostas contidas no programa de campanha (metade do qual era aliás composto de críticas à situação corrente) constitua uma base credível de ação governativa, ainda que as sugestões ali contidas sejam um indicador razoável da filosofia geral pela qual vai se pautar a nova maioria. Mas cabe agora preparar um novo documento de diretrizes executivas, nas quais ficam excluídas todas as considerações (mais ou menos impressionistas) sobre o quão deletéria era a situação anterior. Algumas críticas nesses sentido são até aceitáveis, inclusive como forma de transferir responsabilidade pelas dificuldades encontradas no momento mesmo da transição (“a herança recebida é pior do que se esperava”, etc.), mas a ideia é que se tenha agora não um manual completo de governo, mas uma agenda de ações prioritárias para os primeiros seis meses de governo, enquanto se faz o “balanço acurado” da situação e se procede a elaborar um novo orçamento, levando em conta essas novas prioridades, que não são necessariamente as mesmas que as da fase mais imediata de governo.
O programa de governo é o que poderá ser levado adiante com a nova maioria congressual, o que vai ficar claro já nas primeiras conversações para a formação da primeira equipe de governo – estaremos vivendo uma situação semi-parlamentarista – e ele será necessariamente menos ambicioso do que as grandes mudanças prometidas no programa de campanha, sendo sobretudo despojado do tom grandiloquente – ainda que possa continuar sendo tão vago quanto – que marcava aquele documento. De preferência será curto, preciso, objetivo, sem adjetivos, indicando claramente para onde vai dirigir-se a ação governamental, numa primeira fase pelo menos. Lembre-se de que não será possível contentar a todos e assim certos problemas não serão necessariamente tocados. Isso não deve ser motivo de angústia, pois ninguém espera, sobretudo os mais esclarecidos, que a nova situação resolva tudo em seis meses.
O essencial seria preservar a estabilidade econômica – sem a qual a situação dos mais pobres estará imediatamente comprometida – e iniciar um processo de “reversão de expectativas” que confirme que, por uma vez, o bem estar dos mais humildes será, sim, a preocupação principal da nova maioria política. Não vai aqui nenhuma recomendação em favor do assistencialismo, muito pelo contrário, pois que medidas de cunho social podem ser mobilizadas mediante políticas universalistas de investimentos nos setores mais suscetíveis de alcançar a maioria da população: educação, saúde, infraestrutura social, capacitação profissional, segurança pública. O emprego será uma decorrência disso, não do favorecimento de grupos de interesse mediante políticas ativas nos setores industrial ou comercial.
Falou-se em “recompor”, não rescrever um programa de governo, o que indica que sua essência virá daquele primeiro documento, ainda que revisto por uma maioria que não será mais exclusivamente partidária, ou aliancista. Ainda assim, caberia rever certos cacoetes de linguagem que se acumulam em longos anos de autismo militante.

7) Atender a circunstâncias excepcionais
            Não se pode negar que o Brasil vive circunstâncias excepcionais, não apenas pela mudança política em curso, mas também pelo nível anormalmente alto de turbulência econômica, real e percebida, justamente motivada em grande medida pelo caráter inédito da transição na área política. Não apenas se deve evitar que a situação se deteriore ainda mais na fase de transição como caberia buscar ações conjuntas para restabelecer o precário equilíbrio anteriormente prevalecente, antes de se pensar em fatores mais permanentes de estabilidade macroeconômica.
            O papel da liderança política e o do discurso unificado são aqui essenciais, mas caberia encerrar a “muralha da China” que até agora dividiu “nós e eles” na área da administração econômica e passar a trabalhar conjuntamente na solução de um problema que é nacional, não político ou partidário. Determinados bens públicos devem ser preservados além e acima das querelas ideológicas e a situação econômica é um deles. Eventualmente, medidas excepcionais serão necessárias, antes mesmo da assunção ao poder, o que exige, antes de mais nada, o abandono da postura do “eu não disse?” em favor da adoção de uma atitude de responsabilidade compartilhada no acolhimento dos custos – inclusive políticos – derivados de medidas restritivas ou de ajuste emergencial.
            A liderança política se fortalece em situações de comoção nacional, mas a margem de manobra é muito estreita no terreno econômico, o que recomenda uma avaliação cuidadosa das opções disponíveis e uma corajosa defesa da decisão tomada nessas circunstâncias excepcionais.

8) Indicar as linhas do discurso de posse
            As incertezas tendem a ocupar o espaço político – e estender-se ao terreno econômico – por isso seria recomendável não esperar até o dia da posse para revelar algumas das grandes linhas de atuação da futura administração. Isso ocupa os jornalistas e movimenta as colunas de comentaristas, mas esta não deve ser a principal motivação da nova liderança, e sim o próprio fato de avançar para a sociedade alguns elementos da ação governativa que estará sendo implementada no momento devido. Essas indicações não precisam ser na linha das “rupturas” e “continuidades”, mas podem retomar os pontos principais do novo programa de governo, o que significaria portanto destacar mais os elementos afirmativos da futura ação governamental do que as críticas à herança recebida (ainda que algum “exagero” seja aqui compreensível).
            Uma coisa é certa: deve-se terminar de uma vez por todas com aquelas entrevistas de porta de carro ou de descida de avião, pois microfones agressivos e perguntas confusas raramente resultam em boas exposições de ideias. Não há mais improvisação possível e toda declaração tem uma “massa atômica” específica e um peso político próprio. Por isso, as poucas declarações gerais dadas em caráter coletivo antes da posse deverão aproximar-se o mais possível do próprio discurso de posse, para diminuir as tensões naturais que emergem a partir das grandes transições. Uma vez definida as linhas do novo tipo de consenso tranquilo, deve-se ater a esses elementos conceituais na fase de transição.

9) Estruturar as bases do apoio congressual
            Tarefa gigantesca, por certo, mas não tão difícil quanto parece, pois parece haver um natural adesismo – mais do que oposicionismo de princípio – por parte de toda nova legislatura em situação de inauguração presidencial. As ofertas de colaboração virão dos redutos mais inesperados – alguns até suspeitos, e que caberia descartar sem parecer grosseiro – e o esforço deveria ser feito na direção da preservação da plataforma de ação, mais do que na manutenção das velhas trocas de favores da antiga situação política.
            Ainda aqui caberia ter presente de que o melhor para o Brasil seria não se ter um governo de um partido, ou de uma coalizão, mas um governo nacional que procuraria atuar a partir de suas bases naturais de apoio no Congresso, com ampla latitude de meios e muito pragmatismo, em função mais de resultados efetivos do que de velhas bandeiras ideológicas. Afinal, o novo governo, no executivo ou no legislativo, deve estar primariamente interessado na eficácia de suas ações, não na sua conformidade a qualquer cartilha política do passado. A clareza de propósitos deve servir como elemento de pressão do ponto de vista da opinião pública, que por uma vez estará satisfeita de saber que velhas práticas clientelísticas e fisiológicas da situação anterior não estariam sendo herdadas – ou em todo caso não serão privilegiadas – na nova situação.
            Não custa nada lembrar que teremos um presidencialismo congressual – falou-se anteriormente em semi-parlamentarismo – ou pelo menos uma situação na qual os dois poderes terão de trabalhar conjuntamente, provavelmente mais do que em qualquer outra época da história política brasileira, salvo na do próprio regime parlamentarista de 1961-63 (mas se tratava de uma construção artificial e de mero expediente). Essa situação não é intrinsecamente perversa do ponto de vista da ação administrativa, mas exigirá o abandono de alguns cacoetes do passado, como aquelas situações em que o presidente se dirige “diretamente ao povo”, passando por cima das prerrogativas congressuais.  Melhor ter essa situação muito clara desde o início, inclusive porque o Brasil ganharia em evoluir para um tipo de regime no qual as maiorias presidenciais deixem de se chocar com as maiorias congressuais (uma das maiores fontes de instabilidade política em nossa história).

10) Preparar-se para o pior, manter a mensagem otimista
            Não seria conveniente agitar de público a gravidade da situação econômica, mas o Brasil parece estar atravessando uma dessas conjunturas de turbulência – típicas num passado não tão remoto – nas quais a mudança política e as incertezas administrativas associadas a maiorias divergentes no executivo e no legislativo podem afetar a estabilidade econômica. Em todo caso, qualquer mudança tem um custo, ainda que ele seja simplesmente o da substituição de pessoas e o da descontinuidade temporária da maior parte das atividades administrativas.
            Neste caso específico, a sociedade pretendeu a uma mudança de maior magnitude e ela tem de saber que isso também tem um custo maior, o que geralmente se traduz pela retração geral das atividades econômicas e do investimento produtivo, quando não ocorre o fenômeno do “desinvestimento” e o da fuga de capitais, ainda que para “dentro” do País (mas para fora do sistema bancário oficial). A desconfiança no valor da moeda é o sinal mais claro desse desconforto com a mudança, que não resulta necessariamente da obra de “especuladores” ou outros conspiradores externos. Tudo isso precisa ficar claro para a nova maioria, que não pode perder o sangue frio e sair buscando “bodes expiatórios” e culpados de ocasião. A instabilidade é intrínseca à mudança, não um dado externo importado involuntariamente.
Por isso caberia preparar-se para o pior, isto é, para uma deterioração ainda maior da situação econômica nos próximos meses, ainda que mantendo um discurso otimista – ou moderadamente realista – sobre a superação da presente fase de turbulências. Seria preciso estar pronto a adotar com coragem um conjunto de medidas de distribuição de sacrifícios – pois que é disso que se trata – que será inevitável implementar caso essa hipótese pessimista se confirme. Mais uma vez, unificação do discurso e capacidade de tomada de decisões são os elementos-chave para a superação das turbulências, além, é claro, de se ter uma ideia clara do que se pretende resguardar: se a estabilidade econômica ou se a passagem a um “novo modelo econômico”, que resta largamente indefinido em seus contornos básicos.
            Os verdadeiros líderes se formam na hora da borrasca, não em situações de mares tranquilos, e eles são capazes de infundir tranquilidade em seus liderados mesmo nas horas mais sombrias do panorama político ou econômico de um país. O Brasil não tem nenhuma grande tragédia nacional, graves fontes de instabilidade econômica ou algum manancial de constantes terremotos políticos, mas ele tem uma miríade de pequenas-grandes tragédias sociais que podem ser agravadas em caso de rompimento de alguns consensos básicos. Mais uma vez se adverte: o sentido da ação é nacional, não partidário ou setorial.
            A nova maioria tem todas as condições de realizar uma transição bem sucedida para uma situação de mudanças incrementais em favor de uma nova agenda social, desde que ela não contribua para a erosão da situação econômica ou pretenda modificar por fora e por cima o tecido social. Ações voltadas para os excluídos permitirão construir de modo imperceptível as bases da mudança desejada, mais do que grandes discursos contra os incluídos (aqui compreendidos não só banqueiros e industriais, mas sindicalistas, funcionários públicos e universitários em geral).
As maiores rupturas, na verdade, não são aquelas contra a “velha ordem” – em grande medida já vencida ou pelo menos acomodada à nova situação –, mas contra as antigas formas de pensar e de conceber políticas, que por vezes impedem a incorporação da imaginação criadora ao novo modo de fazer política que agora se pensa implementar.

Paulo Roberto de Almeida
Washington, 969
Esquema: 16 de outubro de 2002
Desenvolvimento: 20/10/2002


Ver os outros trabalhos desta série nas postagens precedentes.

1. Companheiros, muita calma: trata-se agora de não errar!: As consequências econômicas da vitória (ou: manual de economia política para momentos de transição); 22 de setembro de 2002;
2. Administrando as relações econômicas internacionais do Brasil: As consequências econômicas da vitória, 2ª parte; 29 de setembro de 2002;
3. Preparado para o poder?: pense duas vezes antes de agir: As consequências econômicas da vitória, parte 3; 8 de outubro de 2002.

Preparado para o poder?: pense duas vezes antes de agir (3-2002) - Paulo Roberto de Almeida

Terceira parte de minhas recomendações pré-eleitorais. Vejam bem, eu escrevi em 8 de outubro, entre o primeiro e o segundo turno das eleições, e já dava por favas contadas que os companheiros iriam ganhar as eleições. Eles até que começaram bem, mas logo em seguida começaram a roubar desbragadamente, e depois puseram tudo a perder. Não quiseram me ouvir...
Paulo Roberto de Almeida
Brasília, 22/10/2017



Preparado para o poder?: pense duas vezes antes de agir
As conseqüências econômicas da vitória, parte 3
(da série: manual de nova economia política para a fase de transição)

Paulo Roberto de Almeida
(Washington, 8 de outubro de 2002)

Nunca é demais lembrar uma frase sábia de um desses – mil perdões, mas o nome me escapa agora – técnicos de futebol, mais experientes do que diplomados, que não cansava de repetir a seus pupilos: “treino é treino, jogo é jogo”. Pois bem, isso se aplica, mutatis mutandis, à presente conjuntura de transição política, na qual uma velha maioria começa a ser substituída por uma nova, colocando a representação eleita da população em compasso mais afirmado com sua verdadeira maioria sociológica.
O exercício do poder, seja no Executivo, seja na Legislatura ou mesmo nas muitas instâncias estaduais e locais que passaram pelo terremoto da mudança paradigmática, exige uma série de qualidades administrativas que vão além da retórica eleitoral e muito além, isso também parece claro, das simulações mais ou menos impressionistas que são feitas nos programas de campanha e mesmo nas diretrizes programáticas para “uma nova realidade”. Como deve ser evidente a qualquer pessoa medianamente instruída, não basta proclamar que “um outro mundo é possível”, que “uma outra América idem” ou que “as mudanças estão ao alcance da mão”, para que esse mesmo mundo, como num passe de mágica, bata à porta no dia seguinte ao da posse. O papel aceita tudo, microfones idem, mas a realidade, esta é um pouquinho mais teimosa e renitente em se dobrar à nova vontade de poder das maiorias recém assumidas.
Em primeiro lugar, existe a inércia natural dos grandes corpos paquidérmicos, como podem ser as burocracias estatais e suas legiões de funcionários e suas selvas de regulamentos – e leis, não esquecer – que tornam difícil implementar, num estalar de dedos, a famosa ruptura prometida. Geralmente se tem de avançar aos poucos, segundo o ritmo da representação parlamentar, que ainda permanece a instância regulatória por excelência em democracias.
Em segundo lugar, surge como obstáculo a proverbial falta de meios, uma vez que orçamentos são limitados e as necessidades são incomensuráveis, sobretudo em direção daqueles que mais necessitam. Aqui também os grandes projetos e os brilhantes ideais têm de se ajustar à realidade dos números, a menos que se queira financiar o programa anunciado pela via inflacionária, o que é sempre possível mas não recomendável, em vista da experiência histórica brasileira e seus efeitos sobre aqueles, justamente, que se pensa poupar dos aspectos mais dolorosos do novo “ajuste social e político”.
Em terceiro e mais importante lugar, se situa, não algum problema operacional qualquer, mas mais propriamente uma atitude, uma visão do mundo, uma determinada concepção de como devem ser conduzidos os “negócios públicos”, que um filósofo da USP chamaria de Weltanschauung da nova maioria. Creio, pessoalmente, que esta dimensão é mais importante até do que as duas primeiras, que parecem ser meramente instrumentais, ou pelo menos dependentes de “arranjos técnicos” na máquina do Estado, seja no plano institucional-burocrático, seja no dos recursos financeiros. Antes de transformar o mundo, como proclama, de maneira otimista, a décima-primeira tese sobre Feuerbach, seria preciso, pelo menos, interpretá-lo corretamente, o que nem sempre está garantido nos velhos manuais de economia política.
Por isso, tenho esforçado-me, nesta série sobre as “conseqüências econômicas da vitória” – ver as duas anteriores em minha página, acima indicada, a partir de “Trabalhos Originais”, ou outros textos do mesmo tipo, como “Dez coisas…” e “Carta aberta…” –, por chamar a atenção para aspectos não convencionais do pensamento econômico tido como mainstream na oposição de esquerda (agora bem menos oposição e menos ainda de esquerda, mas isso não importa agora). O manual para uma nova economia política deveria, a partir de agora, cobrir aspectos da “economia doméstica” – depois das considerações sobre a dimensão internacional ou macroeconômica da nova realidade, mas talvez seja o caso, antes de focar a problemática social, de deter-se um pouco na questão da “visão do mundo” da nova maioria, pois ela pode ser reveladora de uma maneira de pensar cujas conseqüências “governativas” devem ser avaliadas com calma e lucidez, para evitar surpresas mais adiante.
Como a luta política – de forma algo similar à estratégia militar – se organiza usualmente em termos de aliados e opositores, de amigos e inimigos, e como a passagem de uma situação de oposição à condição de Poder implica uma mudança fundamental na forma de organização dessas alianças – algumas táticas, outras estratégicas –, caberia agora pensar nessas relações de amizade e tratar de distinguir, um pouco mais claramente o que, efetivamente, conta para um bem sucedido exercício desse poder e o que pode acarretar impasses institucionais, econômicos ou diplomáticos.
Como os velhos hábitos são duros na queda, a única recomendação de caráter geral que eu faria seria essa que figura no título: “pense duas vezes antes de agir”, pois velhos aliados e antigas inimizades podem revelar qualidades surpreendentes, no sentido exatamente oposto ao que se pensava antes de assumir o poder. No mais, vou alinhar sem ordem de prioridade alguns desses surpreendentes novos amigos e velhos inimigos, ou vice versa, num exercício de puro “contrarianismo”. Assumo toda responsabilidade pela heterodoxia, mas ela é feita em toda boa fé, pensando no melhor desempenho possível na nova situação de poder.

1) O sindicalista amigo: salário e empregos na corda bamba
Do setor privado ou do público –aqui com maior estridência –, a função legítima do dirigente sindical é defender os interesses dos seus liderados, a começar pela manutenção e recomposição do poder de compra dos salários da categoria. Por isso não há surpresa em constatar que representantes do funcionalismo público federal já estão reivindicando do novo poder a reposição das “perdas salariais” – por eles avaliadas em 89% – acumuladas no regime do neoliberalismo. Como advertido por um desses amigos do movimento sindical, “não haverá pacto de tolerância”. A solução está posta: “Ele (o novo presidente) vai ter que optar. Há recursos, é só não acatar a política do FMI e parar de pagar a dívida externa”.
Simples não? Antigas amizades às vezes custam caro para manter, como alguns casamentos de fachada, preservados com presentes caros e sorrisos amarelos. Mas, isto é apenas no plano puramente salarial. Existe ainda a questão vastamente mais complexa da criação de novos empregos e da preservação dos antigos, com ou sem subsídios para criar ou reconverter empregos eliminados pela destruição criadora da modernização capitalista. Como todos sabem, até os próprios interessados, os sindicatos não são feitos para criar empregos (salvo alguns poucos na própria sede), mas para preservar os existentes, ou seja, eles atuam em direção dos já incluídos, não em favor dos milhões de excluídos que constituem o problema mais gritante do Brasil atual. As normas demandadas pelos sindicatos redundam, em grande medida, na diminuição das chances de empregabilidade dos excluídos, que não conseguem encontrar pessoas ou empresas dispostas a contratá-los nas condições fixadas pelos já incluídos. Já não é tão simples, não é mesmo? Por isso, da próxima vez que encontrar um sindicalista amigo, lembre-se: pense duas vezes!

2) José Bové e outros socialistas bovinos de la campagne française: gordos subsídios
Você sabia que as vacas européias têm uma renda per capita superior à renda média dos brasileiros? Você sabia que, no mesmo continente, existem porcos milionários, com contas em banco, ficha de identidade e cartão de crédito? Você sabia que tomates podem ser lavados com champagne, tão ricos são os fluxos de subsídios que fluem como cornucópia, literalmente, para os bolsos desses paysans bigodudos que vêm nos dar lições sobre como melhor organizar nossa agricultura e lutar contra as sementes geneticamente modificadas das multinacionais americanas? Se não sabia, você ainda não conhece nada da “Loucura Agrícola Européia”, a política comum que resulta em gordos subsídios para um punhado de privilegiados e concorrência desleal para os pobres agricultores do Terceiro Mundo. Por isso, quando receber novamente essa personagem inusitada – talvez para a cerimônia de posse – pense duas vezes: evite tapinhas nas costas e sobretudo não combine ações conjuntas contra os subvencionistas americanos.
Esqueça aquela coisa antiga de que subsídio interno, à produção, é permitido ou mesmo recomendável, e que os únicos prejudiciais aos interesses dos exportadores não subvencionistas são as subvenções às exportações. Exatamente o contrário: o apoio às exportações é o aspecto menos importante, e menos danoso, das tremendas distorções que caracterizam hoje os mercados agrícolas mundiais. O que faz mal mesmo aos nossos agricultores são as medidas de apoio interno, pois elas vêm acopladas a restrições de todo tipo – protecionismo tarifário e não tarifário – e provocam depressão nos preços mundiais e acumulação de estoques que depois serão “descarregados” nos países pobres, tornando inviável qualquer progresso econômico e anulando completamente a famosa ajuda ao desenvolvimento que esses “humanistas” pretendem ostentar hipocritamente.
Não precisa pensar duas vezes, aliás: o agricultor europeu e os subvencionistas de todo tipo no hemisfério setentrional são inimigos absolutos dos agricultores brasileiros, em primeiro lugar dos pequenos agricultores familiares preferidos da nova maioria.

3) Consenso de Washington, imposições do FMI e Wall Street: distância deles?
Certamente, mas não pelas razões que usualmente são aventadas em determinados arraiais. Nunca é bom depender do dinheiro dos outros, sobretudo quando esse dinheiro vem com condições estritas de utilização e com uma “receita médica” que faz do regime de emagrecimento condição indispensável para a retomada da saúde econômica. Mas, pense duas vezes: você teve de ir ao FMI por causa do “consenso de Washington” ou por que dependeu demais dos “rapazes de Wall Street”? Já pensou que as regras do famoso “consenso de Washington” não são exatamente um conjunto de prescrições de política econômica “normal” mas, bem mais simplesmente, uma série de medidas que devem ser consideradas apenas como receitas para um ajuste bem-sucedido, depois de alguns anos de embriaguez econômica? Pois foi exatamente com esse espírito que essas regras foram concebidas pelo seu autor – aliás um amigo do Brasil, embora ele estivesse pensando mais no Chile e no México –, mais como instrumentos de política, do que como um conjunto de objetivos ou resultados que devam ser elevados à categoria de dogma.
Por isso, esqueça todas as bobagens que você ouviu sobre o famoso – e muito mal conhecido – consenso e estude rigorosamente (se possível sem paixão) suas prescrições, pois elas podem ser úteis para a continuidade do processo de ajuste de que certamente necessita a economia brasileira. Se isto não fosse verdade, por que, justamente, temos de fazer tanto apelo ao dinheiro de Wall Street e depois buscar socorro nos pacotes de ajuda financeira do FMI? Já pensou que o FMI pode ser o seu amigo das horas amargas? E que os inimigos podem ser aqueles que recomendam “ruptura com o sistema financeiro internacional” em nome de não se sabe qual alternativa de financiamento duradouro?
Sabe qual é a alternativa à imposição de regras vindas de fora? A auto-assunção de regras de boa gestão macroeconômica no plano doméstico, tornar-se independente da poupança externa – o que significa o aumento da poupança interna – e o rompimento com as práticas nefastas dos desequilíbrios orçamentários, dos déficits fiscais e de balanço de transações correntes. Mais fácil dizer do que fazer, não é mesmo? Mas o consenso de Washington foi feito para isso mesmo: para oferecer um guia simples e prático de regras claras e diretas em favor da responsabilidade administrativa na gestão da “coisa pública” em sua vertente econômica. Os verdadeiros inimigos são os opositores dessas regras.

4) Anti-naftalinos, anti-alcalinos e anti-globalizadores em geral: muy amigos?
Lembra-se de quando os anti-naftalinos, em suas ruidosas manifestações de dez anos atrás, prometiam as piores catástrofes econômicas a partir da implantação do acordo de livre-comércio da América do Norte, com uma sucessão inevitável de desastres sociais só comparável às sete pragas do antigo Egito? Pois bem: o que houve depois disso? Nada, rigorosamente nada. Ou melhor: os efeitos para a economia dos EUA não foram aquele imenso “sorvedouro de empregos” antecipado por Ross Perot, se tanto um crescimento modesto das ocupações associadas ao Nafta e um aumento significativo das exportações desse país para o México. O Canadá também se deu muito bem, com um aumento ainda maior dos volumes de comércio global com seus dois parceiros meridionais e uma ligeira diminuição da dependência exclusiva do Big Brother.
E o México, sobreviveu ao novo colonialismo comercial? Bem, logo depois de aprovado o acordo ele entrou em crise, teve sua moeda desvalorizada em quase 100%, foi socorrido por um pacote de 48 bilhões de dólares liderado pelos EUA, seus nacionais tiveram uma redução brutal no seu poder de compra e outras conseqüências igualmente indesejáveis, mas nada disso tem algo a ver com o Nafta, muito pelo contrário. O Nafta foi, no cômputo global, bastante positivo para o México, com um aumento da oferta de empregos – e o aumento de renda associado –, a expansão exponencial do investimento direto estrangeiro e o crescimento ainda maior das exportações (ainda que aumentando a dependência do Big Brother). Com uma economia que, em termos reais, é inferior em 10 a 15% à economia brasileira, o México exporta três vezes mais, o que faz muito bem à sua saúde econômica, e à de seu balanço de pagamentos. Os desastres anunciados por sindicalistas, ecologistas, zapatistas e outros “istas” mais bizarros não ocorreram, ou então seus efeitos sociais foram minimizados pelo aumento geral do nível de atividades econômicas permitido pelo Nafta. Não acredita?: pergunte a algum economista mexicano não comprometido com qualquer um daqueles grupos anti-naftalinos (por ideologia, pois eles não podiam ter estudos de impacto quando começaram a se mobilizar, ainda numa fase precoce, contra o acordo).
Depois da luta contra o Nafta, e dos protestos contra o MAI-OCDE (cujas negociações esses grupos até hoje acreditam que conseguiram “interromper”, esquecendo o oportunismo francês na questão da “exceção cultural” e outras desavenças entre os próprios países membros), a ênfase se deslocou para a taxação contra os movimentos financeiros internacionais, com os mesmos grupos criando uma singular ação em favor da “Tobin Tax” que o próprio economista patronímico teve de recusar como representando suas idéias ou motivações originais. A intenção em todo caso era a de colocar um “grão de areia” na engrenagem dos capitais voláteis, acusados dos piores desastres financeiros dos anos 90 (e além), o que por acaso materializou-se em vários grãos de areia, não contra os capitais voláteis, mas contra todas as reuniões dos organismos econômicos internacionais desde então.
A promessa de modelos alternativos conduzindo a “um outro mundo possível” revelou-se até agora impossível, e de fato ainda não se materializaram políticas de ruptura em relação ao capitalismo realmente existente, razão pela qual ocorreu uma reciclagem permanente desses grupos em manifestações de protesto que trouxeram mais transpiração do que inspiração, apesar da criação de uma nova instância de reflexão – o Foro Social Mundial – que fez mais pelo turismo alternativo do que pelo esclarecimento de questões reais da economia mundial.
A pergunta relevante é, contudo, esta aqui: as ações e políticas propostas pelos militantes da ATTAC e por suas várias derivações anti-alcalinas e anti-globalizadoras são benéficas à economia brasileira e correspondem aos interesses do País? Ou, na nossa terminologia maniqueista, eles são amigos ou inimigos das causas nacionais? Visto pelo lado da Tobin Tax, por exemplo, sua introdução seria claramente contrária às atuais necessidades de capitais, voláteis ou não, que o Brasil se vê, voluntariamente ou não, obrigado a buscar no exterior. Seu efeito mais visível seria o de aumentar o custo desses empréstimos, sem outros resultados positivos para a economia nacional.
No plano mais geral do comércio internacional, ou no da formação de um bloco hemisférico de liberalização comercial, a ação desses movimentos se ajusta perfeitamente à estratégia dos sindicalistas do Norte de bloquear o processo de deslocalização produtiva que seria operado pelas multinacionais desses países em direção das regiões a baixos salários, entre as quais se encontra supostamente o Brasil. O que se vê, portanto, são sindicalistas do Sul, e outros militantes ingênuos, fazendo o trabalho “sujo” para seus colegas do Norte no sentido de impedir que a transferência de empregos se faça. Muy amigos, pois não? Pense três vezes da próxima vez que encontrar um anti-alcalino.

5) A boa e velha burguesia nacional: aliada contra o imperialismo?
Nos tempos do Partidão, a burguesia nacional era um aliado indispensável na luta contra o latifúndio e o imperialismo, mas o incômodo da história era o fato de que ela nunca se conformou a essa papel progressista e nunca soube desempenhar a contento sua “missão histórica” de criar um sistema capitalista nacional em bases autônomas, livre da dominação imperialista e não subordinado às velhas oligarquias políticas. Que aliada mais traidora e relapsa em relação aos “verdadeiros interesses nacionais”!
Depois disso tivemos golpes militares, alinhamentos ao poder imperial, caminhos alternativos de desenvolvimento – com “planejamento industrial” – e um grau razoável de promiscuidade entre a burguesia, o capital estrangeiro e o Estado “empreendedor”. Sem dúvida o Brasil criou uma base industrial respeitável na comparação com qualquer outro país emergente – ainda que tenha persistido na dependência tecnológica – mas ele não conseguiu resolver os mais comezinhos problemas de integração social dos estratos mais humildes da população ou equacionar a iniquidade “africana” da distribuição da renda. Alguma relação entre esse estilo de desenvolvimento e o modelo concentrador? Aparentemente sim, pois a situação apenas se alterou, ligeiramente, quando o Estado deixou de ser tão “empreendedor” e a burguesia gozou de menor proteção tarifária e vitaminas fiscais como tinha ocorrido na fase do “milagre econômico” e depois.
Hoje em dia, novas propostas de “política industrial” são formuladas para serem postas em vigor com a nova maioria, geralmente baseadas nos estímulos fiscais, em algum grau de proteção “seletiva” e vários incentivos para investimento em “ciência e tecnologia”. Pensando ainda em termos de amigos-inimigos: a burguesia aprova sua filosofia de governo ou é apenas amiga dos seus recursos orçamentários, o seu, o meu, o nosso dinheiro? Pense duas vezes antes de responder a esta questão e pergunte uma vez mais se sua intenção é realmente a de distribuir dinheiro para quem já é rico.
Se for para lutar contra a Alca, alguns setores dessa burguesia vão efetivamente se mobilizar, mas não pensando necessariamente no interesse nacional como um todo, mas em seu próprio desejo setorial de escapar à concorrência menos que perfeita de empresas estrangeiras mais agressivas. Será bom para o País construir, uma vez mais, fortalezas tarifárias e muralhas protecionistas para não ter de enfrentar a realidade da globalização?

Estes constituem apenas cinco pontos neste exercício de “think again”, que podem ser relevantes para a construção de uma “economia política” da nova maioria, lembrando que existem vários outros pontos que confrontam a lógica convencional dos esquemas dicotômicos amigos-inimigos, que nem sempre estão do lado em que se pensa poder encontrá-los. Este é um dado imanente às realidades complexas de nossa época, que faz com que “tudo o que era sólido se desmanche no ar” e que antigas posições progressistas se convertam rapidamente em combates de retaguarda, quando não em defesa reacionária de velhas posições ultrapassadas pelas novas tendências da economia global.
Construir uma defesa consistente dos interesses sociais da maioria da população nem sempre significa aplicar as receitas de uma outra época, quando “forças produtivas” e “relações de produção” pareciam apontar numa determinada direção: dirigista, estatal, protecionista, nacionalizante (no sentido estreito), ou simplesmente intervencionista. Pode também querer dizer integração produtiva, concorrência ampliada, investimento sobretudo em educação universal de crianças pobres, antes do que em “indústrias estratégicas” ou transferência de renda para elites universitárias. Podendo dar para todo mundo, excelente. Não podendo, selecione cuidadosamente os beneficiários de suas políticas de transferência de renda. Na dúvida, pense duas vezes.

Paulo Roberto de Almeida

Washington, 957: 8 de outubro de 2002

P.S.: Nada a ver aqui com a vertente econômica deste manual, mas apenas uma derivação do princípio das alianças com os “inimigos do meu inimigo” para fins de vitória eleitoral. A nova maioria chegou a ser o que é inclusive, e talvez principalmente, pela aplicação de um conjunto de regras éticas que sempre a diferenciaram dos tradicionais participantes do jogo político, e muito menos pela eficiência econômica (altamente discutível) de suas propostas políticas. Pense nisso também na hora de fazer novas alianças.

Ver os dois artigos anteriores desta série:
1) “Companheiros, muita calma: trata-se agora de não errar!: As conseqüências econômicas da vitória (ou: manual de economia política para momentos de transição)”, Washington, 22 setembro 2002, 11 pp. Disponível no blog Diplomatizzando: https://diplomatizzando.blogspot.com.br/2017/10/companheiros-muita-calma-trata-se-agora.html
2) “Administrando as relações econômicas internacionais do Brasil: As conseqüências econômicas da vitória, 2ª parte (da série: manual de economia política para momentos de transição)”, Washington, 29 setembro 2002, 11 pp. Disponível no link: https://diplomatizzando.blogspot.com.br/2017/10/consequencias-economicas-da-vitoria-do.html.