Nada menos que brilhante: agradeço a Arnaldo Godoy a referência a uma das coletâneas que organizei improvisadamente sobre os trabalhos de Merquior. Abaixo, indico o link para essa brochura. PRA
DIREITO E LITERATURA: O DISCURSO DE POSSE DE JOSÉ GUILHERME MERQUIOR NA ACADEMIA BRASILEIRA DE LETRAS
Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy
José Guilherme Merquior (1941-1991) foi um intelectual, na mais precisa expressão desse termo. Escritor com visão abrangente dos problemas de seu tempo, e todos os tempos, também escrevia em língua estrangeira, a exemplo do inglês, idioma que usou no seu portentoso estudo sobre o liberalismo, livro que já resenhei nessa coluna. Nessa obra, traduzida para o português por Henrique de Araújo Mesquita, Merquior discorreu longamente sobre o tema (e o problema) do direito natural.
Graduado em Filosofia e em Direito, tratou também de vários assuntos de especulação jurídica, o que lhe vale, certamente, a posição de importante jusfilósofo. Essa classificação certamente seria por Merquior desprezada; afinal, foi um pensador acima de quaisquer tipologias e classificações. Insisto, no entanto, que há um importante legado de filosofia do direito na obra de Merquior, tema que merece estudo mais profundo. Não é o caso da presente crônica, que se ocupa do discurso de posse de Merquior na Academia Brasileira de Letras, em 11 de março de 1983.
Como se lê em Fábio Coutinho, ainda que em outro contexto, “o ingresso nas grandes academias representa, via de regra, a consagração dos homens e suas obras, culminando vidas inteiramente dedicadas ao trabalho intelectual”. É o caso, também exatamente, de José Guilherme Merquior. Um “caso único”, como lemos eminstigante ensaio de Paulo Roberto de Almeida; organizador de “José Guilherme Merquior: um intelectual brasileiro”; cujo prefácio me parece o mais completo estudo sobre o intelectual aqui estudado. O discurso de Merquior como orador da turma do Instituto Rio Branco (em 1963), que Paulo Roberto Almeida acrescenta em seu livro, já revelava a intuição racionalizadora do orador: a verdade não seria apenas “a conformidade da ideia com o ser: é antes um comportamento (...) frente ao mundo objetivo, como se ele nos fosse estranho”.
Merquior foi antecedido na Academia por Paulo Carneiro, ocupou a cadeira n. 36, e foi saudado por Josué Montello. A cadeira fora ocupada por Afonso Celso, filho do Visconde de Ouro Preto, o último chefe de gabinete do segundo reinado. Merquior enfatizou as qualidades intelectuais de Afonso Celso, a exemplo da elegância do estilo (um estilo eminentemente verbal), o que despontavaobjetividade e clareza na exposição das ideias.
Segundo Merquior, integridade e paixão marcavam Afonso Celso. Um nacionalismo que identificava como “positivo” era nítido no intelectual que homenageava, autor de um livro hoje pouco lembrado: “Por que me ufano de meu país”. Trata-se de um livro publicado em 1900, e que foi de algum modo mais tarde ridicularizado, por sua forma laudatória.
O adjetivo “positivo” que Merquior acrescentou ao substantivo “nacionalismo” talvez revele, para o leitor contemporâneo, o pensamento requintado do acadêmico que tomava posse. Merquior enfatizou a coragem política de Afonso Celso, que fez o caminho inverso de seus contemporâneos. Com a Proclamação da República, muitos monarquistas se fizeram republicanos (os republicanos arrivistas de 15 de novembro). Afonso Celso fez a rota inversa: de republicano tornou-se monarquista, talvez até como enfrentamento ao oportunismo, a par de uma inegável homenagem ao próprio pai. Essa tensão (inclusive sob uma perspectiva freudiana, é tema de um instigante livro de Luís Martins, “O patriarca e o bacharel”).
Afonso Celso fora corajoso na política e versátil nas humanidades (um polígrafo de valor). Ao lado de Eduardo Prado, Afonso Celso quixotescamente se colocou contra a República, segundo Merquior, que também lembrou que o vocábulo “brasilidade” fora por criado por Afonso Celso, que também atuou na Ação Social Nacionalista. Merquior o identificou como o “criador do ufanismo”.
Merquior seguiu a tradição dos empossados, e proferiu discurso centrado na figura de seus antecessores, acentuando o pensamento humanista que os marcava, fixando pontos de conexão histórica que implicavam no papel do intelectual na sociedade. Insistiu na necessidade de engajamento social do intelectual, tema recorrente nas reflexões sobre as relações entre os intelectuais e o poder, tema de um dos livros de Norberto Bobbio, “Os intelectuais e o poder”.
Merquior acentuou uma continuidade entre os ocupantes da cadeira n. 36, o que de alguma forma explicitava sua profissão de fé, simbolicamente, no sentido teológico de afirmação de posicionamento em relação aos dilemas da vida. Merquior havia discutido com profundidade a responsabilidade social do artista, em ensaio de 1963, publicado nessa obra prima de crítica e estética, que é a “Razão do Poema”, recentemente republicado em coleção coordenada por João Cezar de Castro Rocha. Nesse texto de crítica, Merquior sublinhou que “qualquer ideia acerca da responsabilidade social do artista tem de incorporar essa crença na arte como função cognitiva, porque, sob pena de andarmos em nuvens, não há outro meio de se exigir do artista uma determinada atitude a não ser reconhecendo nele um instrumento de visão”.
O patrono da cadeira n. 36 foi Teófilo Dias (o poeta das Fanfarras). Merquior lembrou que Teófilo Dias fora um protoparnasiano. Teófilo Dias era sobrinho de Gonçalves Dias, cuja “Canção do Exílio” Merquior analisou em “Poema do lá”, um dos mais conhecidos estudos de crítica literária que conhecemos, também republicado em “Razão do Poema”.
Certamente, Merquior é o intelectual brasileiro mais autorizado a falar sobre a relação entre os intelectuais e o poder, isto é, sobre a relação entre o pensador e a ação política. Celso Lafer, outro intelectual de importância superlativa, também da Academia Brasileira de Letras, afirmou em um documentário que Merquior fora o mais importante intelectual de sua geração.
A propósito desse papel (e dessa função, pensador e política) Merquior exemplificou a complexidade da tarefa, tratando de dois outros antecessores da cadeira n. 36: Clementino Fraga (médico, que trabalhou com Oswaldo Cruz) e Paulo Carneiro (que foi embaixador, para quem “saber é saber o quanto se ignora”, e que conviveu com Guimarães Rosa e Sousa Dantas no fim da segunda guerra mundial). Merquior tratava de um “humanismo inclusivo”, metáfora que bem mostrava uma disposição para aproximar a academia da vida real, mediando cultura e emancipação.
Ao tratar de Paulo Carneiro (que Merquior reputou como o último dos apóstolos de Augusto Comte no Brasil) o empossado fixou para o leitor atual as características dessa doutrina, distinguindo as diferenças entre positivismo-clima e positivismo-seita, fazendo-o inclusive com humor e graça, lembrando e contando uma anedota de Josué Montello.
Não nos esqueçamos, Merquior era um liberal (na tradição de Isaiah Berlin), no sentido de enfatizar liberdade e autonomia no fortalecimento do indivíduo em face do Estado. Foi um defensor da democracia liberal e da economia de mercado, pontos que o aproximavam de Roberto Campos, outro expoente máximo da história do pensamento brasileiro. A ação prática é necessária, e sem essa, não se pode pensar em mudança social significativa. Qual a função do acadêmico na sociedade? A pergunta, parece-me o ponto central desse discurso memorável, que é um manifesto sobre a posição dos intelectuais na sociedade.
Merquior encerrou sua fala lembrando que “mesmo na eventual divergência”, era a “via régia do conhecer e da paixão’ que o animava: “a paixão de compreender”. Essa orientação ao mesmo tempo prática e especulativa, a “paixão de compreender”, penso, seja o maior legado de José Guilherme Merquior, ainda que em forma de permanente inspiração.
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3894. José Guilherme Merquior: um intelectual brasileiro, Brasília, 19 abril 2021, 322 p. Coletânea de textos de e sobre o grande intelectual diplomata, com exceção do prefácio, agregado posteriormente. Em revisão para tornar o volume menos pesado. Versão abreviada, com links remetendo a pdfs em Academia.edu, 187 p. Postado na plataforma Academia.edu (link: https://www.academia.edu/46954903/Jose_Guilherme_Merquior_um_Intelectual_Brasileiro_2021_); divulgado no blog Diplomatizzando (20/04/2021; link: https://diplomatizzando.blogspot.com/2021/04/jose-guilherme-merquior-uma-homenagem.html).
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