Agradeço a Mauricio David a remessa do artigo abaixo, de Luiz Gonzaga Belluzzo, que li com atenção e que mereceu as observações que transcrevo abaixo, em minha correspondência a ele dirigida.
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Trepidações da globalização
Luiz Gonzaga Belluzzo
CartaCapital, domingo, 26 de maio de 2024
As novas condições econômicas foram apontadas como o rumo da eficiência, mas só incautos acreditaram
O Centre d’Études Prospectives et d’Informations Internationales (CEPII) arriscou uma investigação cuidadosa a respeito do avanço da China nos mercados globais. Vou reproduzir, com as adaptações necessárias, as observações mais pertinentes do estudo da importante instituição francesa.
Em 2019, a China detinha uma posição dominante na economia global, definida por uma participação de mais de 50% do mercado mundial de exportação de quase 600 produtos. Essa avaliação foi obtida a partir de uma investigação realizada em um universo de classificações comerciais que abrangem cerca de 5 mil produtos.
Isso significa que a China fornece pelo menos metade das importações globais desses produtos. Este número é seis vezes maior do que o número equivalente para os Estados Unidos, Japão ou qualquer outro país. Mesmo a União Europeia, considerada como um todo, não atinge metade desse nível.
O documento do CEPII observa que isso é intrigante, e tem consequências. “De fato, a estreita interdependência econômica, e as relações comerciais em particular, são cada vez mais consideradas pelas lentes da dependência, levantando assim questões de vulnerabilidade. Uma posição dominante, tal como a definimos, é significativa porque implica que os compradores de um bem nos mercados internacionais terão dificuldade em substituir o seu fornecedor por outro.”
Vou aborrecer o caro leitor de CartaCapital com digressões históricas que, talvez, justifiquem a preeminência chinesa conquistada desde as reformas de Deng Xiao Ping nos anos 80. Essas reformas lançaram a China à liderança industrial já nos anos 90.
Ironias da globalização: nesse período de transformações os Estados Unidos não só pressionaram os parceiros a promover a liberalização das contas de capital como também executaram políticas que favoreceram a valorização do dólar, o que reforçou o movimento de migração da grande empresa para espaços econômicos mais favoráveis à “competitividade”.
A partir daí o mundo presencia um movimento de profunda transformação na divisão internacional do trabalho. A Ásia se torna produtora e processadora de manufaturas – peças, componentes e bens finais de consumo e de capital. Conforma-se em torno da China emergente uma “mancha manufatureira”, grande importadora de matérias-primas. Com a nova divisão internacional do trabalho, a economia nacional americana amplia o seu grau de abertura comercial, passa a gerar um déficit comercial crescente para responder à expansão “mercantilista” dos países asiáticos e avançar na liderança do seu mercado financeiro e de capitais.
Nesse ambiente monetário financeiro, a China executa políticas nacionais de industrialização ajustadas ao movimento de expansão da economia “global”. As lideranças chinesas perceberam que a constituição da “nova” economia mundial passava pelo movimento da grande empresa transnacional em busca de vantagens competitivas, com implicações para a mudança de rota dos fluxos do comércio. Os chineses ajustaram sua estratégia nacional de industrialização acelerada às novas realidades da concorrência global.
A experiência chinesa combina o máximo de competição – a utilização do mercado como instrumento de desenvolvimento – e o máximo de controle. Entenderam perfeitamente que as políticas liberais recomendadas pelo Consenso de Washington não deveriam ser “copiadas” pelos países emergentes. Também compreenderam que a “proposta” americana para a economia global incluía oportunidades para o seu projeto nacional de desenvolvimento.
Assim controlaram as instituições centrais da economia competitiva moderna: o sistema de crédito e a política de comércio exterior, aí incluída a administração da taxa de câmbio. Os bancos públicos foram utilizados para dirigir e facilitar o investimento produtivo e em infraestrutura.
O avanço chinês desenvolveu seus propósitos ao longo das transformações estruturais da economia global. No assim chamado período neoliberal, as economias nacionais do Ocidente flutuaram ao sabor da concorrência comandada pela grande empresa submetida à poderosa lógica da finança. As enormes massas de capital lançam-se com fúria às megafusões, à conquista e à “reserva” dos mercados. Mais que nunca, a concorrência capitalista tornava efetiva a sua razão interna, engendrando o monopólio, o que significa impor barreiras à entrada de novos competidores, sejam eles empresas, sejam países.
Há simultaneamente dinamismo e estagnação, avanço vertiginoso das forças produtivas em algumas áreas e setores associados à regressão em outras partes. Há décadas, a China executa políticas nacionais de industrialização ajustadas ao movimento de expansão da economia “global”.
As lideranças chinesas perceberam que a constituição da “nova” economia mundial passava pelo movimento da grande empresa transnacional em busca de vantagens competitivas, com implicações para a mudança de rota dos fluxos do comércio. Os chineses ajustaram sua estratégia nacional de industrialização acelerada às novas realidades da concorrência global.
Nessa etapa globalista, as circunstâncias foram desfavoráveis para os sistemas empresariais das regiões que se entregaram a um ajustamento passivo às novas condições econômicas e sociais. Isso foi apresentado aos incautos da Terra de Santa Cruz como o resultado natural e benéfico de uma convergência ideológica, política e econômica na direção dos ganhos de eficiência e de produtividade.
No Brasil, os avatares da globalização revigoraram o pensamento liberal e tornaram predominante o cosmopolitismo liberal que se empenha a fundo nos misteres de borrar as diferenças entre as situações nacionais. Trata-se de ocultar e negar a existência de hierarquias e dominação nas relações internacionais e de exaltar as virtudes regeneradoras da concorrência.
Daí a insistência nos apelos à abertura comercial, ao estímulo à privatização e para combater a “deplorável” ineficiência da indústria nacional, que deve ser disciplinada mediante a maior exposição à concorrência externa.
Tenho a impressão que o presidente americano Biden não concorda. Despejou tarifas pesadas sobre a importação de produtos chineses.
Publicado na edição n° 1312 de CartaCapital, em 29 de maio de 2024.
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