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domingo, 26 de maio de 2024

Trepidações da globalização - Luiz Gonzaga Belluzzo (Carta Capital) - comentários preliminares de Paulo Roberto de Almeida

Agradeço a Mauricio David a remessa do artigo abaixo, de Luiz Gonzaga Belluzzo, que li com atenção e que mereceu as observações que transcrevo abaixo, em minha correspondência a ele dirigida.

O artigo do Belluzzo é interessante ao apontar o sucesso da China na oferta global de produtos manufaturados, algo verificável pelos números. A China já era a maior economia mundial até o século XVIII, e antes já era o país mais avançado tecnologicamente até que a Europa iniciasse a sua revolução científica no século XVII e a primeira revolução industrial no século XVIII justamente. Depois ela se atrasou, e perdeu a primeira, a segunda e a terceira revolução industrial só engatando na quarta, com Deng Xiaoping, como ele aponta corretamente.
Atualmente, ela já está na quinta, ou talvez na sexta revolução industrial. Assim como patentes e padrões industriais foram basicamente europeus no século XIX, e se converteram em padrões americanos, europeus e japoneses no século XX, os padrões e patentes no século XXI serão (já são) crescentemente chineses e a partir de agora indianos e outros asiáticos, mas isso não significa que o Ocidente (Europa, América do Norte, Japão e outros off-shots ocidentais) percam sua capacidade científica e tecnológica. Continuarão, mas a concorrência será cada vez mais acirrada.
Onde eu acho que o Belluzzo deixa a realidade e envereda pelo delírio ideológico é essa mania da esquerda de achar que tudo é culpa do neoliberalismo e do Consenso de Washington, como se alguma vez em toda a nossa história passada, presente e imediata fomos, no Brasil ou na AL, neoliberais e adeptos do Consenso de Washington, o que para ele significa a origem, a razão e a culpa do nosso atraso. Isso é uma bobagem só justificada pela sanha desses unicampistas de acharem que fomos ou somos neoliberais, daí o nosso fracasso.
O caso chinês é absolutamente único e exclusivo na história, e se os doutos unicampistas quiserem substituir, aqui, o Consenso de Washington pelo “modelo chinês” - que ninguém sabe exatamente o que é e que ninguém saberá reproduzir ou imitar, pois isso é impossível – o fracasso será também inevitável. 
Nossos males são de origem, como já adivinhava Bonfim um século atrás, e não conseguimos corrigi-los nos últimos cem anos. Continuaremos patinando na letargia econômica e no desenvolvimento social pelo futuro próximo. Só não podemos achar que trocar o “neoliberalismo” (inexistente) por um “modelo chinês” vai resolver nossos problemas.
Paulo R. de Almeida (26/05/2024)

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Trepidações da globalização


Luiz Gonzaga Belluzzo 

CartaCapital, domingo, 26 de maio de 2024

 

As novas condições econômicas foram apontadas como o rumo da eficiência, mas só incautos acreditaram

O Centre d’Études Prospectives et d’Informations Internationales (CEPII) arriscou uma investigação cuidadosa a respeito do avanço da China nos mercados globais. Vou reproduzir, com as adaptações necessárias, as observações mais pertinentes do estudo da importante instituição francesa.

Em 2019, a China detinha uma posição dominante na economia global, definida por uma participação de mais de 50% do mercado mundial de exportação de quase 600 produtos. Essa avaliação foi obtida a partir de uma investigação realizada em um universo de classificações comerciais que abrangem cerca de 5 mil produtos.

Isso significa que a China fornece pelo menos metade das importações globais desses produtos. Este número é seis vezes maior do que o número equivalente para os Estados Unidos, Japão ou qualquer outro país. Mesmo a União Europeia, considerada como um todo, não atinge metade desse nível.

O documento do CEPII observa que isso é intrigante, e tem consequências. “De fato, a estreita interdependência econômica, e as relações comerciais em particular, são cada vez mais consideradas pelas lentes da dependência, levantando assim questões de vulnerabilidade. Uma posição dominante, tal como a definimos, é significativa porque implica que os compradores de um bem nos mercados internacionais terão dificuldade em substituir o seu fornecedor por outro.”

Vou aborrecer o caro leitor de ­CartaCapital com digressões históricas que, talvez, justifiquem a preeminência chinesa conquistada desde as reformas de Deng Xiao Ping nos anos 80. Essas reformas lançaram a China à liderança industrial já nos anos 90.

Ironias da globalização: nesse período de transformações os Estados Unidos não só pressionaram os parceiros a promover a liberalização das contas de capital como também executaram políticas que favoreceram a valorização do dólar, o que reforçou o movimento de migração da grande empresa para espaços econômicos mais favoráveis à “competitividade”.

A partir daí o mundo presencia um movimento de profunda transformação na divisão internacional do trabalho. A Ásia se torna produtora e processadora de manufaturas – peças, componentes e bens finais de consumo e de capital. Conforma-se em torno da China emergente uma “mancha manufatureira”, grande importadora de matérias-primas. Com a nova divisão internacional do trabalho, a economia nacional americana amplia o seu grau de abertura comercial, passa a gerar um déficit comercial crescente para responder à expansão “mercantilista” dos países asiáticos e avançar na liderança do seu mercado financeiro e de capitais.

Nesse ambiente monetário financeiro, a China executa políticas nacionais de industrialização ajustadas ao movimento de expansão da economia “global”. As lideranças chinesas perceberam que a constituição da “nova” economia mundial passava pelo movimento da grande empresa transnacional em busca de vantagens competitivas, com implicações para a mudança de rota dos fluxos do comércio. Os chineses ajustaram sua estratégia nacional de industrialização acelerada às novas realidades da concorrência global.

A experiência chinesa combina o máximo de competição – a utilização do mercado como instrumento de desenvolvimento – e o máximo de controle. Entenderam perfeitamente que as políticas liberais recomendadas pelo Consenso de ­Washington não deveriam ser “copiadas” pelos países emergentes. Também compreenderam que a “proposta” americana para a economia global incluía oportunidades para o seu projeto nacional de desenvolvimento.

Assim controlaram as instituições centrais da economia competitiva moderna: o sistema de crédito e a política de comércio exterior, aí incluída a administração da taxa de câmbio. Os bancos públicos foram utilizados para dirigir e facilitar o investimento produtivo e em infraestrutura.

O avanço chinês desenvolveu seus propósitos ao longo das transformações estruturais da economia global. No assim chamado período neoliberal, as economias nacionais do Ocidente flutuaram ao sabor da concorrência comandada pela grande empresa submetida à poderosa lógica da finança. As enormes massas de capital lançam-se com fúria às megafusões, à conquista e à “reserva” dos mercados. Mais que nunca, a concorrência capitalista tornava efetiva a sua razão interna, engendrando o monopólio, o que significa impor barreiras à entrada de novos competidores, sejam eles empresas, sejam países.

Há simultaneamente dinamismo e estagnação, avanço vertiginoso das forças produtivas em algumas áreas e setores associados à regressão em outras partes. Há décadas, a China executa políticas nacionais de industrialização ajustadas ao movimento de expansão da economia “global”.

As lideranças chinesas perceberam que a constituição da “nova” economia mundial passava pelo movimento da grande empresa transnacional em busca de vantagens competitivas, com implicações para a mudança de rota dos fluxos do comércio. Os chineses ajustaram sua estratégia nacional de industrialização acelerada às novas realidades da concorrência global.

Nessa etapa globalista, as circunstâncias foram desfavoráveis para os sistemas empresariais das regiões que se entregaram a um ajustamento passivo às novas condições econômicas e sociais. Isso foi apresentado aos incautos da Terra de Santa Cruz como o resultado natural e benéfico de uma convergência ideológica, política e econômica na direção dos ganhos de eficiência e de produtividade.

No Brasil, os avatares da globalização revigoraram o pensamento liberal e tornaram predominante o cosmopolitismo liberal que se empenha a fundo nos misteres de borrar as diferenças entre as situações nacionais. Trata-se de ocultar e negar a existência de hierarquias e dominação nas relações internacionais e de exaltar as virtudes regeneradoras da concorrência.

Daí a insistência nos apelos à abertura comercial, ao estímulo à privatização e para combater a “deplorável” ineficiência da indústria nacional, que deve ser disciplinada mediante a maior exposição à concorrência externa.

Tenho a impressão que o presidente americano Biden não concorda. Despejou tarifas pesadas sobre a importação de produtos chineses. 

Publicado na edição n° 1312 de CartaCapital, em 29 de maio de 2024.

 

sexta-feira, 11 de novembro de 2022

As missões da diplomacia de Lula a partir de sua ‘reestreia’ na COP - Victor Ohana (Carta Capital)

 As missões da diplomacia de Lula a partir de sua ‘reestreia’ na COP


O presidente eleito precisa retomar agendas abandonadas por Bolsonaro e calcular gestos diante de novos conflitos

POR VICTOR OHANA 
Carta Capital, 11.11.2022

Ao pisar no Egito, para a Conferência das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas, a COP27, o presidente eleito Luiz Inácio Lula da Silva (PT) dará a largada para a reestreia da sua política externa, desta vez em uma conjuntura bem diferente da que encontrou em 2003.

No evento, o petista deve dar o tom da sua gestão ambiental e marcar sua diferença com o presidente Jair Bolsonaro (PL). Na campanha, ele prometeu reduzir o desmatamento e zerar o garimpo ilegal, entre outras bandeiras.

A expectativa é de que Lula se encontre com o secretário-geral da ONU, António Guterres, além de realizar reuniões bilaterais. Há, ainda, um convite do primeiro-ministro de Portugal, António Costa, para que visite Lisboa na volta.

A questão climática está em consonância com a preocupação de expoentes da União Europeia, como o chanceler alemão, Olaf Scholz, e o presidente da França, Emmanuel Macron, dois líderes que não esconderam suas preferências a Lula e chegaram a recebê-lo com honras de chefe de Estado antes da eleição.

Apesar de Lula receber a confiança de grandes políticos globais no tema, a COP27 deve mostrar que o percurso não será um passeio. A conjuntura é de missões não cumpridas, por fatores como a falta de recursos doados por países ricos, a deflagração de uma crise energética e o aumento de conflitos diplomáticos.

No ritmo atual, as perspectivas são catastróficas e apontam para um aquecimento de 2,8º graus em 80 anos.

A pauta certamente será uma das mais destacadas entre Lula e líderes europeus, mas ainda há outras conversas relevantes, como o andamento do acordo comercial entre a União Europeia e o Mercosul.

Depois de 20 anos na gaveta, o tratado foi firmado por Bolsonaro no primeiro ano de mandato. O presidente voltou festejando um possível incremento no PIB de até 125 bilhões de dólares, mas diversos especialistas avaliaram que a parceria poderia colocar o Brasil em uma condição submissa na cadeia global.

Isso porque, embora houvesse uma expectativa de eliminar tarifas sobre exportações brasileiras à Europa, como frutas e café solúvel, os itens industrializados do continente também teriam redução de preço aqui no Brasil, o que poderia afetar a competitividade da indústria brasileira.

Lula mesmo já defendeu a reformulação do acordo, com o argumento de que a União Europeia deveria compreender a necessidade de que países latino-americanos também possam comercializar produtos com valor agregado.

Outra questão com a Europa deve ser o posicionamento que Lula adotará em relação à Rússia.

Com a esperada retomada da agenda do petista em fortalecer os Brics, líderes acompanham com atenção qual será o nível de aproximação do governo brasileiro com Vladimir Putin, devido à guerra da Ucrânia.

Para Silvia Capanema, historiadora e professora da Universidade de Paris 13-Nord, Lulanão demonstra tendência de concordar com a invasão russa, mas também deve apresentar uma postura crítica à expansão da Organização do Tratado do Atlântico Norte, a Otan.

O alastramento do bloco militar liderado pelos Estados Unidos – e com forte participação europeia – irritou a Rússia e foi usado como justificativa para a operação na Ucrânia, país que ensaia há tempos a sua entrada no grupo.

A relação com Lula é mais sensível, porém, para Macron, que vê importância nesse diálogo para reposicionar a sua influência no globo e chegar à América Latina, destaca Capanema. A França, hoje, é presidente do Conselho da União Europeia, mas a Alemanha segue como a principal liderança do continente.

Além disso, Macron teve problemas pessoais com Bolsonaro e chegou a responder ofensas do presidente brasileiro à própria primeira dama francesa. O entusiasmo do presidente da França ficou evidente com o telefonema a Lula, para parabenizá-lo e confirmar o seu interesse em estabelecer um contato próximo.

“Macron quer se colocar como adversário da extrema-direita na França”, avalia Capanema. “Outra questão é que Macron é ausente na América Latina. Ele não fez o mesmo gesto nas eleições de outros países. Agora, ele se coloca dessa forma porque quer se reposicionar com um diálogo à América Latina, e o Brasil é o principal país.”

Lula anima a China e preocupa os EUA
Lula também volta ao xadrez internacional no meio de uma rivalidade ampliada entre a China e os Estados Unidos.

Os chineses estão animados. Com Bolsonaro, as relações comerciais não foram rompidas, mas houve insatisfações diplomáticas em série, por declarações de membros do governo que incitavam o preconceito contra o país.

O presidente da China, Xi Jinping, saudou Lula após a eleição e mencionou a perspectiva de “um novo patamar” para a “parceria estratégica” entre os dois países.

Conforme mostrou CartaCapital, o governo chinês tem interesse especial no Maranhão, onde já iniciou diálogos para estabelecer um novo ponto para a Rota da Seda, ambicioso projeto econômico do país asiático.

A China busca diversificar a sua fonte de minério de ferro e amenizar a dependência da Austrália, país com o qual tem passado por atritos diplomáticos. Além disso, quer aumentar a importação de outros itens do Brasil.

Em julho, um dos formuladores do mega projeto logístico chinês esteve em São Luís do Maranhão com autoridades do estado e defendeu a importância da parceria. Em 3 de novembro, houve um fórum virtual sobre o tema.

Agora, com a vitória de Lula no Planalto e de Carlos Brandão (PSB) no governo, a perspectiva é positiva.

Brandão esteve sete vezes na China, quando era vice-governador de Flávio Dino, e enaltece abertamente os laços com Pequim: “Podemos oferecer de forma vantajosa rotas de comércio exterior para o sul da África, sul da Ásia e para a China”, reforçou o atual governador, em vídeo divulgado na semana passada.

O estado já tem a autorização para instituir uma Zona de Processamento de Exportação, quer expandir a sua malha ferroviária e rodoviária e espera inaugurar um gasoduto de 200 quilômetros até 2025.

A partir do novo governo, o Maranhão está otimista com a atração de investimentos chineses para expandir a sua infraestrutura, conforme indica o presidente da estatal maranhense Gasmar, Allan Kardec Duailibe.

“Com Bolsonaro, era bem complicado o diálogo com a China. Agora, fica mais fácil de negociar diretamente e trazer esses investimentos. O ganho é extraordinário com a eleição do presidente Lula”, disse Duailibe à CartaCapital.

Apesar das boas previsões com a Nova Rota da Seda, o Brasil precisa analisar a parceria com a China de forma cuidadosa para ter ganhos reais, segundo análise da coordenadora do Brics Policy Center, Ana Saggioro Garcia.

A pesquisadora diz que o projeto pode vir como uma oportunidade, mas alerta que a relação entre credor e devedor pode se tornar desigual caso os termos dos acordos não sejam muito bem examinados.

Além disso, o Itamaraty sob Lula terá de ter cautela para manter as relações saudáveis com os Estados Unidos.

Na observação da professora, Biden demonstra preocupação com a aproximação de Lula com Xi Jinping e logo se inclinou ao petista. Na quinta-feira 10, o presidente dos Estados Unidos disse que quer se encontrar pessoalmente com o homólogo brasileiro em breve.

“Os Estados Unidos não podem perder mais nenhuma face de influência”, analisa a especialista. “Já perderam o Afeganistão, perderam um espaço na África. A América Latina ficou entre as últimas fronteiras. Eles lançaram, ainda com o Trump, um programa de investimentos em infraestrutura, tentando contrapor à possibilidade de os latinoamericanos aderirem à Belt and Road. Biden deve fazer de tudo para manter Lula ao lado dele.”

Novo governo deverá integrar países latinos
Conforme o próprio Lula já antecipou em seus discursos de campanha, o seu desafio na América Latina será impulsionar a integração regional. O cenário é favorável, com países governados por por presidentes que se identificam com a esquerda: Argentina, Colômbia, Chile, Bolívia, Peru, Venezuela, Cuba e México.

Para Hugo Ramos, doutor em Relações Internacionais e professor da Universidade
Nacional do Litoral, da Argentina, uma das iniciativas mais esperadas é a reedição da União de Nações Sul-Americanas, a Unasul, ou a instituição de um espaço similar que permita a coordenação das políticas no continente no cenário internacional. O bloco havia sido criado por Lula em 2008 e foi abandonado por Bolsonaro em 2019 junto a outros líderes de direita.

Ramos também destaca a possível volta do Brasil à Comunidade de Estados LatinoAmericanos e Caribenhos, a Celac, também deixada por Bolsonaro, no início de 2020, e
o fortalecimento do Mercosul. Segundo ele, uma ideia difícil de ser implementada que ganha peso favorável com Lula é a criação de uma moeda comum.

O especialista menciona, ainda, a influência que a vitória do presidente brasileiro pode ter na eleição da Argentina, prevista para outubro de 2023. O kirchnerismo, que deve tentar a reeleição, não necessariamente ganharia votos com o apoio de Lula, mas é provável que a derrota de Bolsonaro prejudique candidaturas da extrema direita argentina, sobretudo a de Javier Milei.

Além disso, Ramos lembra a proposta apresentada a Lula e a Bolsonaro pelo embaixador da Argentina, Daniel Scioli, que envolve um plano de “integração profunda” entre os dois países, como uma política de Estado em áreas como infraestrutura, mineração e energia. Para o professor, essa cooperação deve avançar com o petista no Planalto.

“Para a Argentina, independentemente do presidente, o Brasil é um país muito relevante, quiçá o país mais relevante em sua política para o exterior”, avalia o estudioso, que é especialista em integração regional.

Outra expectativa é o nível de relação que o Brasil deverá adotar com a Venezuela.

Para Ramos, o aprofundamento de um vínculo de Lula ao governo de Nicolás Maduro pode resultar num rechaço ainda mais forte dentro do Brasil do que ocorreria na década de 2000, devido à ascensão do bolsonarismo.

O que se pode esperar, segundo ele, é que o Brasil não reproduza gestos agressivos como os praticados pelo Grupo de Lima, que excluiu a Venezuela dos campos de discussão no continente. Também é possível que Lula tenha um olhar mais compreensivo aos processos políticos venezuelanos e pregue a autodeterminação dos povos.

Mas também é esperado que Lula reconheça Maduro como o presidente legítimo da Venezuela, segundo o professor de Relações Internacionais Ricardo Fagundes Leães, da ESPM. Ele ressalta que a reaproximação com governo chavista foi um dos primeiros atos de Gustavo Petro na Colômbia.

Na opinião do pesquisador, o petista tem uma margem de manobra maior na política internacional para aplicar o seu projeto político e a sua visão de mundo.

Além do reconhecimento de Maduro como presidente, a quem o petista já enviou saudações e disse ser filho de Bolívar, Leães também diz esperar que o petista ajude a Bolívia a se integrar com o Mercosul. O país, governado por Luis Arce, é um estado associado ao bloco, mas ainda não foi formalizado como membro.

“A arena internacional sempre foi um campo onde Lula gostou de se destacar”, salienta Leães. “Mesmo no contexto de 2003, em que o governo fazia ajuste fiscal com [Antônio] Palocci no Ministério da Fazenda e [Henrique] Meirelles no Banco Central, ele já buscou colocar seus valores em prática na área internacional, e eu acredito que isso vá acontecer de novo.”


sábado, 12 de março de 2022

Lições monetárias da Primeira Guerra Mundial - Luiz Gonzaga Belluzzo (Carta Capital)

Ontem e hoje
Lições monetárias da Primeira Guerra Mundial

Luiz Gonzaga Belluzzo

 01:15:11 | 11/03/2022 | Economia | Revista Carta Capital 


A maioria dos países saiu do primeiro conflito mundial com as finanças públicas destroçadas pelo financiamento das despesas militares, realizado basicamente por meio do endividamento e da emissão de papel-moeda inconversível. As dívidas de guerra e as reparações exigiram um esforço adicional de obtenção de recursos fiscais que as populações - principalmente as classes abastadas - não estavam dispostas a conceder aos governos.

Esmagada pelas reparações de guerra que lhe foram impostas pelo Tratado de Versalhes, a economia alemã sucumbiu à impossibilidade de gerar as divisas necessárias para servir o que lhe fora imposto. A fuga sistemática do marco para o dólar e a libra, as moedas-reservas do Gold Exchange Standard, disparou a hiperinflação e a necessidade de emissões monetárias do Reichsbank para "cobrir" a fuga desesperada da moeda nacional.

Em sua ressurreição, sob a forma do Gold Exchange Standard, o padrão-ouro foi incapaz de reanimar as convenções e de reproduzir os processos de ajustamento e as formas de coordenação responsáveis pelo desempenho anterior. O último país a declarar oficialmente sua adesão ao padrão-ouro foi a França, em 1928. Antes dela, entre 1923 e 1925, retornaram a Alemanha e seus companheiros de hiperinflação, Áustria, Hungria e Polônia. Esses náufragos da moeda destroçada foram socorridos pelos empréstimos de estabilização, concedidos, sobretudo, pelos bancos norte-americanos.

A volta mais aguardada era a da Inglaterra. Isso ocorreu em 1925, de forma inadequada. O estabelecimento da paridade da libra com o ouro no mesmo nível que prevalecia antes da guerra foi a causa de muitos dos problemas de coordenação que se apresentaram durante os conturbados anos 1920 e 1930.

Sob a forma modificada do Gold Exchange Standard, que permitia - diante da escassez de ouro - a acumulação de reservas em moeda "forte" (basicamente o dólar e a libra), esse arranjo monetário provocou assimetrias no ajustamento dos balanços de pagamentos e desatou, frequentemente, uma especulação causadora de instabilidade nos mercados financeiros. A decisão da Inglaterra, tomada em 1925, de voltar à paridade do período anterior à guerra, era claramente incompatível com o novo nível de preços interno e tampouco reconhecia o declínio de seu poderio econômico e financeiro.

Os Estados Unidos saíram do conflito com créditos acumulados contra os países europeus e fortalecidos economicamente diante de competidores que tiveram suas economias destroçadas. A "sobrevalorização" da libra e a "subvalorização" de outras moedas, principalmente do franco, causaram, ao longo do tempo, o aprofundamento dos desequilíbrios do balanço de pagamentos e pressões continuadas sobre a moeda inglesa. As perspectivas dos mercados quanto à sustentação da paridade eram pessimistas e os ajustamentos entre países superavitários e deficitários não ocorriam.

Os déficits e os superávits tendiam a se tornar crônicos, em boa medida porque os países superavitários tratavam de trocar seus haveres em "moeda forte" por ouro. Os Estados Unidos, a França e a Alemanha acabaram por concentrar uma fração substancial das reservas em ouro, contribuindo para confirmar as expectativas negativas quanto ao futuro da libra.

Os capitais privados, principalmente de origem norte-americana, entre 1925 e 1928, estimulados pelos diferenciais de juros (e ativos baratos) nos países de moeda recém-estabilizada, em particular na Alemanha, formaram bolhas especulativas, ávidos em colher as oportunidades de ganhos de capital. O ciclo de "inflação de ativos" estrangeiros foi concomitante à rápida valorização das ações da Bolsa de Valores norte-americana. Essa onda de especulação altista, como não poderia deixar de ser, foi alimentada pela expansão do crédito nos Estados Unidos, onde as taxas de desconto ainda foram reduzidas, em 1927, para aliviar as pressões exercidas contra a libra.

O desastre que se seguiu foi consequência da mudança de sinal da política monetária dos EUA, em meados de 1928.0 Federal Reserve, preocupado com o aquecimento da economia e com a febre dos mercados financeiros, subiu a taxa de desconto, provocando o "estouro" da bolha especulativa em outubro de 1929. Os "grilhões dourados" do regime monetário tiveram grande responsabilidade na imobilização das políticas econômicas, determinando uma quase completa incapacidade de resposta e de coordenação dos governos da Europa e, ao menos até 1933, dos Estados Unidos.

Antes da eclosão da guerra Rússia-Ucrânia, o Federal Reserve, pressionado pela inflação norte-americana, prometia a elevação da policy rate e a redução dos estímulos monetários. Vai cumprir a promessa? A história não se repete, mas rima, já dizia MarkTwain. 

quarta-feira, 3 de março de 2021

Ciclo de debates formará programa para política externa pós Bolsonaro - Antonio Cottas Freitas (Carta Capital)

 Ciclo de debates formará programa para política externa pós Bolsonaro

Iniciativa leva o nome de 'Renascença' e é descrita como 'inédita' na diplomacia brasileira

Carta Capital | 2/3/2021, 15h20

Mais de uma centena de encontros devem ser realizados até setembro deste ano para discutir a construção de um programa público para a política externa brasileira, sob a organização de servidores do Itamaraty e com a participação de acadêmicos e ativistas. A iniciativa, descrita como inédita no campo da diplomacia do país, leva o nome de “Renascença: construção coletiva de uma política externa pós-bolsonarista”.

O ciclo de debates teve início em 2020 e é exibido no canal do Instituto Diplomacia para Democracia, no YouTube e no Facebook. Estiveram no debate inaugural o ex-chanceler Celso Amorim e o ex-embaixador Rubens Ricupero. Entre os assuntos já tratados até agora, estiveram a redução de desigualdades, os direitos humanos e os desafios da diplomacia brasileira nesta década.

O próximo debate, marcado para 4 de março, às 19 horas, tratará do tema “Do Black Lives Matter nos EUA ao ativismo negro no Brasil: lições do antirracismo nas Américas”. Participarão do evento os professores Flávio Thales Ribeiro e Edilza Sotero, com mediação do professor Marcio André.

O projeto foi criado pelo diplomata Antonio Cotta de Jesus Freitas, responsável pelo espaço cultural Tapera Taperá, em São Paulo, que também funciona como uma plataforma de cursos. O idealizador atuou na formulação do programa de relações internacionais da candidatura de Guilherme Boulos (PSOL) à presidência em 2018.

Segundo Cotta de Jesus Freitas, a ideia partiu da constatação de que a diplomacia do governo do presidente Jair Bolsonaro é “uma antipolítica externa”, descolada das melhores tradições do Itamaraty, dos princípios constitucionais e de noções básicas de decoro. Depois de Bolsonaro, será preciso refundar as bases da chancelaria brasileira, diz ele, em temas como pobreza, violência, mudanças climáticas e busca pela paz.

“Vai haver a necessidade de reconstruir um projeto nacional mais amplo”, afirma. “Isso demanda refletir o que constitui o Brasil, qual a nossa identidade, que país nós queremos e qual a inserção internacional teremos.”

“Os atuais comandantes da política externa promovem um período de obscurantismo, de terra arrasada. Involuntariamente, eles nos estimulam a nos engajarmos por um amanhã diferente”, diz o idealizador.

https://www.cartacapital.com.br/mundo/ciclo-de-debates-formara-programa-para-politica-externa-pos-bolsonaro/


segunda-feira, 15 de fevereiro de 2021

Esquerda E direita estão paralisadas frente a Bolsonaro: Marcos Nobre (Carta Capital)

 Normalmente, eu não costumo separar os políticos em esquerda e direita, pois ambas são oportunistas e integradas por políticos patrimonialistas. Mas é assim que o jornalismo e os próprios partidos se classificam, o que deve ser tomado com muitas toneladas de sal...

Esquerda e direita mostram imensa fragilidade diante de Bolsonaro, diz Marcos Nobre

Em entrevista a CartaCapital, filósofo analisa os riscos e ameças no cenário político brasileiro. 'O desafio não é só vencer Bolsonaro'

Foto: EVARISTO SA / AFP

As eleições de 2022 despontam no horizonte da democracia brasileira e os desafios da oposição a Jair Bolsonaro são maiores do que vencê-lo nas urnas. A avaliação é do filósofo Marcos Nobre, professor da Unicamp e presidente do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap).

Para ele, o próximo pleito será uma oportunidade para que o País construa “um novo conjunto de regras de convivência política, que é algo que foi destruído nos últimos seis ou sete anos”.

Para evitar o que chama de “um cenário de altíssima incerteza e de perigo para o Brasil”, Nobre aponta para a necessidade de formação de uma frente ampla entre os opositores do presidente.

“Frente ampla não significa uma candidatura única. A frente ampla é, em primeiro lugar, afastar democraticamente o atual presidente.”

No entanto, dada a fragmentação da oposição, o risco de se repetir a situação de 2018 não é descartado.

“O que me chama atenção é que muitas pessoas dizem que a situação é muito grave. Mas eu não consigo ver as pessoas tomando as atitudes correspondentes a essa gravidade”, lamenta. “Muitos acham que quem chegar contra o Bolsonaro no segundo turno ganha – e todo partido acha que vai chegar. Esse é raciocínio demonstra total deslocamento da realidade, pois Bolsonaro é o candidato mais forte”.

Nobre conversou com CartaCapital nesta semana. Confira, a seguir, os destaques da entrevista.

CartaCapital: O contexto da eleição do Lira para presidente da Câmara antecipa algo sobre 2022?

Marcos Nobre: Muito. Para começar, o resultado antecipou a largada das eleições de 2022. Basta a gente ver o movimento do governador João Doria no seu partido e na tentativa de trazer o DEM. Já o Lula anunciou o [Fernando] Haddad como candidato. Ou seja, houve uma antecipação por causa da eleição na Câmara.

Tivemos uma candidatura [Baleia Rossi com apoio de Rodrigo Maia] que se apresentou como oposição a Bolsonaro e que era um ensaio de frente ampla que foi derrotada. O resultado do processo é um estado de fragilidade muito grande dos partidos que estão na oposição ao presidente, tanto à direita quanto à esquerda.

CC: Foi, sobretudo, uma vitória do Bolsonaro?

MN: Sem dúvida, pois ele conseguiu convencer uma parte significativa do sistema político de que ele é a candidatura mais forte para 2022 e, de fato, é. Isso não significa que a relação de Bolsonaro com esses partidos vá ser tranquila. Pelo contrário, será tumultuada, mas de qualquer maneira é uma grande vitória.

As pessoas dizem: ‘o Bolsonaro ganhou, mas a pandemia vai piorar, a crise econômica virá, o Centrão vai cobrá-lo’. O fato é que esse ‘mas’ ainda não chegou.

Na oposição, até agora, todo mundo acha que consegue resolver individualmente, como se uma força política sozinha fosse capaz de derrotar o Bolsonaro.

CC: Uma solução seria sair com uma frente ampla já no primeiro turno em 2022?

MN: É importante fazer uma distinção, pois frente ampla não significa uma candidatura única. A frente ampla é, em primeiro lugar, afastar democraticamente o atual presidente, seja por meio do impeachment ainda em 2021 ou derrotá-lo em 2022.

Derrotar eleitoralmente o Bolsonaro em 2022 significa que a frente ampla vai ser capaz de reestabelecer uma repactuação da democracia brasileira, no sentido de construir um novo conjunto de regras de convivência política, que é algo que foi destruído nos últimos seis ou sete anos.

O efeito eleitoral dessa repactuação deve ser: quem quer que concorra contra Bolsonaro no segundo turno em 2022 deve receber o apoio de todas as demais forças do campo democrático. Esta é a ideia de frente ampla.

CC: Há o risco de em 2022 se repetir o que ocorreu em 2018?

MN: A lição de 2018 é: não se formando a frente ampla antes do segundo turno, ela não se formará no segundo turno. Então, precisa haver conversas e pactos anteriores a 2022, se não cada um vai para um lado.

As pessoas dizem: ‘o Bolsonaro ganhou, mas a pandemia vai piorar, a crise econômica virá, o Centrão vai cobrá-lo’. O fato é que esse ‘mas’ ainda não chegou.

CC: O senhor acha que o impeachment do Bolsonaro ficou mais distante com a eleição de Arthur Lira para presidente da Câmara?

MN: A vitória do Lira diminuiu a chance do recebimento de um pedido de impeachment, mas se houver mobilização social e uma rejeição próxima de 2/3 do eleitorado, a pressão pode ser de tal ordem que mesmo um deputado como Lira pode aceitar o pedido.

Não sendo assim, o Lira vai segurar. O limite para a abertura do impeachment é 2021, pois no ano seguinte tem eleição.

CC: Com a eleição do Lira, após o apoio explícito do governo, como o senhor acha que o presidente se portará, já que foi um candidato antissistema?

MN: O discurso não vai mudar muito, porque os candidatos antissistema, quando chegam ao poder, continuam se comportando como candidatos. Quando olhamos a base de apoio do Bolsonaro, que gira em torno de 1/3 do eleitorado, está com ele aconteça o que acontecer, mesmo ele expulsando o Moro do governo e fazendo acordos com Centrão.

A questão é quanto ele consegue além disso. O eleitorado lavajatista abandonou em grande medida essa base de apoio e foi substituído pelo efeito do auxílio emergencial.

Tem uma outra parte formada bolsonaristas que são simpatizantes de causa. Esses são os mais difíceis de se manter. Por isso, ele precisa reforçar as pautas conservadoras no Congresso e, para isso, a eleição do Lira e a indicação da Bia Kicis para a CCJ são fundamentais.

Se ele não conseguir aprovar nenhuma das pautas de costume, vai reforçar o discurso de luta contra o sistema e, portanto, ele precisa se reeleger para ficar mais forte para dobrar o sistema, que é implantar o autoritarismo no Brasil.

CC: Ele teria força para dobrar o sistema no segundo mandato?

MN: Ele já está destruindo o País, vidas, a Amazônia e as instituições democráticas por dentro ao aparelhar órgãos de segurança, de controle e parte do Judiciário, além de ocupar espaços do estado com a ideologia de extrema-direita. E são coisas que não são muitas vezes visíveis.

Se o Bolsonaro se reeleger, cai o discurso de que a eleição dele foi um acaso e portanto ele se fortalece para redobrar a aposta na destruição das instituições democráticas por dentro.


Para Nobre, não se formando a frente ampla antes do segundo turno, ela não se formará com ele em disputa (Foto: Agência Pública) 

CC: Caso ele perca em 2022, haverá tentativa de golpe?

MN: Sem dúvida. O que aconteceu nos EUA após a derrota de Trump é apenas um pequeno aviso do que acontecerá no Brasil caso o Bolsonaro seja derrotado, pois ele não vai aceitar o resultado. É um cenário de altíssima incerteza e de perigo para o País. O golpe que ele encenou em abril e maio de 2020 será mais grave em 2022. Se ele será bem sucedido é outra questão.

No entanto, para que alguém ganhe, todos os demais adversários precisam aceitar perder, não só o Bolsonaro, que não vai aceitar. Dentro do campo democrático, é preciso que as outras forças políticas aceitem a vitória de um outro candidato. E para elas aceitarem é preciso ter uma repactuação da democracia, porque não adianta ganhar a eleição se você não consegue governar.

Essa repactuação não é apenas para derrotar Bolsonaro, tem que ser também para salvar a democracia brasileira. Só afastar Bolsonaro não resolve o problema que ele representa, de uma democracia fragilizada em que um sentimento anti-sistema se confunde com um sentimento anti-democratico. E é essa conjunção que é tarefa do campo democrático desfazer.

CC: O que ficou da esquerda nesta conjuntura?

MN: A esquerda mostrou uma imensa fragilidade, fragmentação, falta de coordenação e de orientação. O exemplo flagrante disso é que o PT e o PDT apoiaram uma candidatura contra Bolsonaro na Câmara e uma a favor de Bolsonaro no Senado. Mas a fragilidade não é só da esquerda, mas também da direita tradicional.

O que me chama atenção é que muitas pessoas dizem que a situação é muito grave, mas eu não consigo ver as pessoas tomando as atitudes correspondentes a essa gravidade. Muitos acham que quem chegar contra o Bolsonaro no segundo turno ganha e todo partido acha que vai chegar. Esse é o raciocínio que demonstra total deslocamento da realidade, pois Bolsonaro é o candidato mais forte. Não adianta só ganhar, tem que repactuar para conseguir governar. O cenário mostra uma impotência da oposição, pois não há nenhuma força que sozinha possa vencer.


quarta-feira, 20 de janeiro de 2021

Antidiplomacia bolsonarista deve ser responsabilizada pelo atraso nas vacinas, avalia embaixador (Paulo R. Almeida) - Giovanni Galvani (Carta Capital)

Antidiplomacia bolsonarista deve ser responsabilizada pelo atraso nas vacinas, avalia embaixador

Com Índia, a questão é diplomática. E com a China, política. Em ambos os casos, o governo Bolsonaro deve ser considerado culpado

Giovanna Galvani

Carta Capital, 20/01/2021

https://www.cartacapital.com.br/mundo/antidiplomacia-bolsonarista-deve-ser-responsabilizada-pelo-atraso-nas-vacinas-avalia-ex-embaixador/

A viabilidade de uma ampla campanha de vacinação contra a Covid-19 no Brasil passou a depender de uma das mais problemáticas agendas do governo de Jair Bolsonaro: as relações exteriores.

China e a Índia, duas potências orientais com relacionamentos diferentes com o governo brasileiro, mantêm sob custódia, respectivamente, os insumos para a produção das duas vacinas aprovadas para uso emergencial no Brasil e 2 milhões de doses do imunizante da AstraZeneca, que já deveriam estar em solo nacional se não fosse o fracasso da operação coordenada pelo chanceler Ernesto Araújo.

Na análise do diplomata Paulo Roberto de Almeida, os dois países devem colaborar, em breve, para que o prosseguimento da vacinação seja viável no Brasil. No entanto, fica um recado vindo especialmente da China, alvo preferido da bravata ideológica de Araújo em seus alinhamentos com a extrema-direita mundial: as relações estão estremecidas, e os chineses sabem bem qual é o lado mais forte da balança.

Almeida, que se considera um “dissidente” do Itamaraty, foi demitido, em 2019, da diretoria do Instituto de Pesquisa de Relações Internacionais (Ipri), integrado ao Ministério, por publicar textos críticos em seu blog pessoal. Hoje, atua também como professor de Economia Política na pós-graduação de Direito do Centro Universitário de Brasília (Uniceub).

Na terça-feira 19, a Índia indicou países vizinhos prioritários para a exportação de vacinas produzidas em seu território – uma das maiores plantas farmacêuticas do mundo – e não citou o Brasil. Na lista, estão países vizinhos e aliados estratégicos do país.

Almeida afirma que a diplomacia indiana foi educada no trato com o Brasil, e que quaisquer ilusões de Bolsonaro com o primeiro-ministro Narendra Modi, também de direita, deveriam considerar o nacionalismo indiano. A vacinação no país asiático – que tem mais de 1,3 bilhão de habitantes – acabou de começar. Exportar doses para o Brasil, portanto, não seria bem visto entre os indianos.

“O chanceler indiano sinalizou por três vezes que havia dificuldades em exportar a vacina. Ele foi muito diplomático, pois isso causaria um enorme problema para Modi no plano interno. O Modi recebeu Bolsonaro no dia da Independência indiana com todas as honras, mas ele é um nacionalista ao velho estilo. Não tem nada a ver com ‘anti-globalismo’ de Araújo”, afirma o diplomata.

Com a China, o buraco é mais embaixo. Almeida lembra que, desde a campanha presidencial de 2018, ao visitar Taiwan – uma “província rebelde” aos olhos do Partido Comunista Chinês -, o presidente manda mensagens de afronta ao maior parceiro comercial do País. 

“O caso da China é mais político, e o da Índia é uma inconveniência diplomática cometida pelo chanceler e pelo Bolsonaro. Com certeza, isso causou um imenso mal-estar na Índia que não se manifestou porque eles são grandes diplomatas e não cometeriam uma grosseria.”, diz Almeida. “Eles não são o Bolsonaro, que já brigou com o Macron, a mulher do Macron, o [presidente da Argentina] Alberto Fernández, o Evo Morales, Deus e o mundo”, analisa.

Nas ofensas a China, tem protagonismo Eduardo Bolsonaro (PSL-SP), que já brigou publicamente com o embaixador chinês no Brasil, Yang Wanming, pelas redes sociais.

Eduardo repetiu que o coronavírus era um “vírus chinês” e fez campanha contra o leilão do 5G com a participação da Huawei, empresa chinesa estratégica no setor. Em ambos os casos, Ernesto Araújo endossou o discurso do filho do presidente.

“A China atua politicamente em resposta. Até agora, foi muito leniente com o Brasil até pelas brigas comerciais que estava travando com os Estados Unidos”, diz o diplomata. A China separa a questão política da comercial, mas eles estão fazendo corpo mole para sinalizar ao Brasil que, se continuar assim, o País talvez sofra.”

Para ele, o grande divisor de águas” nas relações sino-brasileiras seria a proibição à participação da Huawei no leilão do 5G. Mas as críticas preconceituosas de Bolsonaro à “vacina chinesa” também provocaram forte repúdio das autoridades chinesas, afirma.

Almeida avalia ainda que, caso haja caos pela falta das doses da vacina contra a Covid, a “antidiplomacia” bolsonarista será diretamente responsável.

“Todo mundo importa ou toma remédio da Índia e da China. Precisou um inepto total como o Bolsonaro para causar um enorme preconceito contra os produtos chineses”, ressalta.

“A China vai acabar fornecendo [os insumos], mas talvez demore mais um pouco para deixar os Bolsonaro desesperados. Quando acabar o estoque, pode haver cenas dramáticas dos hospitais. Houve um enorme fracasso diplomático que não é limitado ao contexto atual da pandemia, da vacina, é um fracasso diplomático desde o começo.”

Além das relações bilaterais estremecidas, há ainda a falta de coordenação com outros órgãos multilaterais que poderiam ter ajudado o Brasil em “inteligência sanitária e de saúde”, diz o ex-embaixador, referindo-se ao atraso do Ministério da Saúde em adquirir insumos como seringas e agulhas à tempo da vacinação.

Correção de rumos

Para corrigir os problemas, Bolsonaro aposta nas boas relações que o vice-presidente Hamilton Mourão tem com autoridades chinesas, afirmaram aliados do governo à jornalista Andreia Sadi, da Rede Globo.

O general faz parte da Comissão Sino-Brasileira de Alto Nível de Concertação e Cooperação, a Cosban, e deve ser encarregado de “salvar a pátria” porque os “chineses não falam com o Araújo”, analisa o diplomata. “O governo de Bolsonaro faz tudo errado e, então, apela para soluções de expediente”.

Com a pandemia ainda crescente e uma longa campanha de vacinação pela frente, Paulo Roberto sugere que o Brasil reavalie suas posições com a China – apesar do novo governo dos Estados Unidos, comandado agora pelo democrata Joe Biden, que deve tentar conter a influência da China sobre as Américas.

“O que vai sobrar para o Biden da política externa de Trump é o mercantilismo americano, que responde a uma frustração dos órfãos da globalização, dos desempregados, ao sentimento de que a China não joga conforme as regras”, analisa. “O Biden foi acusado pelo Trump de ser aliado da China, e ele tem que provar que não é soft com eles.”

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sábado, 16 de janeiro de 2021

O movimento tradicionalista: Benjamin Teitelbaum - Carta Capital

 Santa ignorância

Revista Carta Capital | Capa
15 de janeiro de 2021



Benjamin Teitelbaum, da Universidade do Colorado, explica a interpretação tortuosa da realidade compartilhada pelo radicalismo de direita.

Especialista em radicalismo de direita, professor da Universidade do Colorado e autor do livro Guerra pela Eternidade: O retorno do tradicionalismo e a ascensão da direita populista, Benjamin Teitelbaum decifra o caráter anticientífico e negacionista dos apoiadores de Donald Trump e suas cópias mundo afora.

"A característica definidora do tradicionalismo é seu desejo abrangente de rejeitar a 'modernidade' e, com isso, a ideia de que a sociedade poderia progredir e melhorar significativamente", afirma na entrevista a Clarissa Carvalhaes.

"Isso normalmente significa rejeitar coisas como ciência moderna, universidades modernas e o Estado democrático. Também pode significar rejeitar esforços para criar sociedades mais integradas e igualitárias em termos de raça e gênero."

CartaCapital: Do ataque ao Capitólio à negação da Covid-19, como podemos identificar o tradicionalismo nesses movimentos destrutivos?

Benjamin Teitelbaum: O tradicionalismo pode inspirar os indivíduos a rejeitar as alegações de especialistas científicos durante, digamos, a pandemia. A abraçar, em vez disso, o conhecimento rejeitado pela sociedade moderna dominante como o esoterismo religioso e as teorias de conspiração. Desrespeitar o funcionamento das instituições governamentais. E opor-se aos movimentos políticos que buscam criar um mundo melhor. Assim, aqueles atraídos pelo tradicionalismo podem celebrar a dispensa em massa de perícia científica e educação formal, o mau funcionamento do governo e o colapso das agendas sociais progressistas.

CC: Como uma crise que mina a economia e colapsa o sistema de saúde global pode ser lucrativa para este grupo?

BT: Pensadores desse tipo celebraram o fato de que a pandemia, segundo eles, desacelerou a globalização. Eles acreditam que as nações que se sairão melhor são aquelas que fortalecerem suas fronteiras, ilhas literais ou figurativas. Continuar com o sonho de um mundo sem fronteiras, no qual indivíduos e bens se movem sem obstáculos, um sonho progressista que os tradicionalistas consideram com desprezo, provoca a morte na era da Covid.

CC: Qual a interpretação que eles têm de movimentos como o feminismo, a comunidade LGBT, os direitos humanos, a diversidade social e a própria democracia?

BT: Todos os movimentos que você mencionou compartilham alguns recursos. Eles podem esforçar-se para desfazer a hierarquia social na sociedade, para assegurar que ser de um determinado gênero, orientação sexual, grupo cultural ou classe não limite suas oportunidades políticas ou econômicas. Um crítico diria que eles se esforçam tanto para igualar quanto para homogeneizar, e não segundo um princípio espiritual, mas segundo uma doutrina secular universal (como a noção de direitos humanos). Então, os tradicionalistas acreditam que esses valores que você citou reinarão durante a era das trevas, uma época em que fronteiras de todos os tipos se desintegram e nos unimos em uma massa homogênea em torno dos valores humanos antiespirituais os mais baixos possíveis.

CC: O que vamos viver não será mais uma disputa entre esquerda e direita, mas um conflito entre tradicionalistas e pluralistas?

BT: O que você tende a ouvir, em vez de observadores políticos, é que a linha que define a política vai se tornar globalismo versus nacionalismo: aqueles que querem aumentar a circulação de bens, dinheiro e seres humanos em todo o mundo, e aqueles que querem diminuí-la. Outros dizem que a nova linha divisória será materialismo versus imaterialismo, políticos cuja principal preocupação é a economia (sejam eles liberais de livre-mercado ou socialistas) versus aqueles que se preocupam mais com valores políticos culturais ou espirituais, quaisquer que sejam. E os tradicionalistas poderíam encontrar um papel para si próprios em qualquer uma das variantes, especialmente em sua combinação, em causas políticas que buscam fortalecer as fronteiras e a identidade nacionais com o objetivo de estimular um renascimento espiritual. Se o passado recente for precedente, essas figuras não serão a face mais pública desses movimentos nem tentariam rotular publicamente uma causa como "tradicionalista". Em vez disso, eles operariam por trás dos líderes como figuras e gurus, como Rasputin, empurrando a causa para frente com fervor incomum e indiferença pela destruição forjada no processo.

CC: O Twitter e o Facebook excluíram permanentemente a conta de Donald Trump. Como decisões como essa podem afetar esse movimento?

BT: As plataformas de mídia digital desempenham um papel estratégico importante nos movimentos de extrema-direita, e claro, e acho difícil subestimar até que ponto a exclusão de Donald Trump do Twitter vai atrapalhar suas operações políticas nesses grupos. Para os tradicionalistas envolvidos com a direita, a mídia social tem um significado mais profundo além de sua aplicação estratégica: ela oferece um meio de contornar o mundo da mídia profissional convencional (uma instrução modernista projetada para criar um público mais informado) que eles presumem que está destinado a ser perverso e enganoso. Consequentemente, a perda de sua capacidade de contornar a mídia convencional pode significar mais para eles do que um mero obstáculo prático. Isso pode significar um desafio metafísico mais profundo à sua causa.

CC: Por muito tempo o tradicionalismo foi considerado um grupo "menor". O Brasil deve temer o avanço desse pensamento?

BT: O tradicionalismo não foi projetado para ser, nem acho que jamais será, um movimento de massa. E muito excêntrico, muito bizarro, muito radical em sua oposição às coisas que a maioria de nós considera senso comum. Sua recente ascensão à proeminência política, da mesma forma, não foi graças a qualquer organização, mas ao sucesso estranhamente simultâneo de indivíduos isolados que desempenharam o papel de conselheiros ou ideólogos em vários movimentos políticos populistas em todo o mundo.

CC: É possível indicar a influência desse tradicionalismo no governo Bolsonaro?

BT: Sim. O próprio Bolsonaro exibe muitas dessas tendências. Mas as figuras dentro e ao redor de seu governo que os abraçam com mais fervor e com a consciência mais ideológica são Olavo de Carvalho e Ernesto Araújo.

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"O tradicionalismo não foi projetado para ser um movimento de massa. É muito excêntrico, bizarro"

domingo, 6 de outubro de 2019

Nunca Antes na diplomacia: o discurso de Bolsonaro na ONU - Celso Amorim

Nunca Antes na Diplomacia é o título de meu livro de 2014, no qual eu fazia uma crítica severa da política externa lulopetista, marcada pelos arroubos megalomaníacos do chefe da tropa corrupta do PT e pelos trinados “megalonanicos” do chefe de sua diplomacia, o único diplomata profissional (que se conhece) a ter aderido a um partido em pleno exercício da carreira na condição de chanceler.
Pois é com esse título algo irônico que o “megalonanico” em questão começa sua peroração contra o lamentável e medíocre discurso do chefe de Estado — na verdade, chefe de um clã tribal — na abertura dos trabalhos da AGNU, uma crítica bem merecida, na qual eu descontaria os arroubos pro domo sua, se derramando em elogios ao “nunca antes” do lulopetismo diplomático.
Sem qualquer problema de consciência ou censura indevida, o que nunca foi minha atitude, transcrevo aqui esse artigo, com minha aprovação a 90% de seu conteúdo.
O bolsonarismo tem essa “qualidade”: ele é tão ruim, tão medíocre, tão sectário, que ele tem o dom de unir antigos adversários políticos.
Paulo Roberto de Almeida
Pirenópolis, 6/10/2019


Nunca antes na história deste País a diplomacia atingiu ponto tão baixo
Celso Amorim
Carta Capital, 4/10/2019

O discurso equivocado, arrogante e agressivo na ONU sela o isolamento do Brasil no cenário internacional

“Nunca antes na história deste País…” A maneira como Lula começava muitas de suas declarações, frequentemente recebidas com injustificada ironia pela mídia, pode aplicar-se, com sinal trocado, ao discurso do presidente Jair Messias Bolsonaro perante a Assembleia-Geral das Nações Unidas. Com efeito, “nunca antes” a diplomacia brasileira havia atingido um ponto tão baixo, tão mesquinho e tão distante da realidade, despertando reações que variaram entre a perplexidade e a chacota, além de justificada preocupação.

Nunca um discurso conceitualmente tão equivocado foi proferido com um tom tão arrogante e agressivo. As frases entrecortadas, lidas com ênfases incompreensivelmente mal colocadas, soavam como disparos de fuzil, como os que vitimaram Marielle Franco, Ágatha e tantos outros inocentes. Entre os equívocos, talvez o maior seja a noção distorcida de soberania, entendida como uma espécie de “licença para matar” em um determinado território. 

No ordenamento político-jurídico moderno, marcado pela interdependência e a busca, a soberania não pode ser vista de forma independente da responsabilidade para com o próprio povo e para com a humanidade. Pactos como os de direitos humanos ou sobre meio ambiente têm alcance universal, não apenas por representarem a consagração de valores civilizatórios, mas por expressarem a consciência de que o destino dos seres humanos é, ao fim e ao cabo, um só. 

A capacidade de apreender, como poucas outras nações podem fazê-lo, por contingências históricas, essa importante realidade está na raiz da aceitação tácita de uma tradição que faz com que o nosso país seja o primeiro a tomar a palavra no debate geral que abre, do ponto de vista político, esse grande conclave dos povos.

Ao longo dos últimos 70 e poucos anos, ministros e presidentes – e, por vezes, embaixadores especialmente designados – subiram ao pódio da ONU para levar mensagens de paz e conciliação permeadas de propostas sobre desenvolvimento econômico e social, comércio, meio ambiente, desarmamento e tantos outros temas.

Crises financeiras, disputas diplomáticas ou movimentos positivos, como a integração, bem como tensões e mesmo guerras, foram tratados pelos oradores – ultimamente, em geral, os líderes máximos – de um ponto de vista amplo, compatível com o privilégio do primeiro a falar. Mesmo quando foi necessário referir uma situação conflitiva do nosso país com outra nação – o que ocorreu muito raramente e cada vez menos na história recente –, foi feito de forma elegante e sem expressões desnecessariamente agressivas.

O que se viu na terça-feira 24 de setembro foi um personagem obcecado por ameaças inexistentes, deblaterando contra um pretenso globalismo que afrontaria a nossa soberania. Sim, é nossa responsabilidade soberana tratar da Amazônia. E não abdicaremos dela, como não deveríamos abdicar do nosso petróleo e da nossa tecnologia aeroespacial. Mas, sim, o que ocorre nessa importante região do mundo interessa a todo o planeta.

Ao se colocar contra o consenso praticamente universal sobre a importância da floresta como sumidouro de carbono (fator fundamental nas alterações climáticas), o presidente brasileiro revelou desconhecimento de fatos científicos comprovados. Da mesma forma, ao atacar o socialismo e a ideologia de gênero, demonstrou ser uma espécie de “Dom Quixote do mal” (perdão, Cervantes!), investindo contra moinhos de vento, com sua sanha destruidora. 

Nos quase 60 anos em que, como estudante interessado em política internacional, como diplomata profissional ou como ministro de Estado, acompanhei nossa atuação (com a provável exceção dos “anos de chumbo”), o Brasil procurou transmitir ao mundo a imagem de um país plural, tolerante, que buscava a paz e o desenvolvimento solidário das nações, mesmo quando a persistência de problemas internos (sobretudo a brutal desigualdade da nossa sociedade) poderia pôr em dúvida alguns desses propósitos. É que uma das características da política externa é justamente espelhar não só a realidade atual, mas aquela que projetamos para o nosso país e para o mundo.

Permito-me dizer que, nos anos em que servi no governo do presidente Lula, essa imagem se viu reforçada de forma inédita. A melhor síntese desse fato foi uma frase que entreouvi de um diálogo entre dois jovens diplomatas franceses ao entrarem no salão do Conselho Econômico e Social, onde se realizaria uma Cúpula sobre o Combate à Fome e à Pobreza, com a participação do presidente francês Jacques Chirac e o apoio do secretário-geral da ONU, Kofi Annan. Ao observar o recinto repleto de chefes de Estado, reunidos por uma convocação do presidente brasileiro sobre temas tão relevantes, um dos diplomatas expressou sua admiração ao colega: “O Brasil abraça o mundo”.

Que contraste com a imagem do lobo solitário a atacar líderes de países amigos e valores abraçados pelo conjunto da humanidade, sem uma palavra sobre os Objetivos de Desenvolvimento Sus-tentável (Agenda 2030), uma espécie de bússola para o futuro próximo, aprovada pelos chefes de governo dos 193 integrantes da ONU. Naquele momento, senti pena dos meus colegas mais novos, muitos deles idealistas – ainda que sem perder o sentido realista inerente à diplomacia –, obrigados, por profissão, a servir a um governo que pode ter muitas caras, mas certamente não a do povo brasileiro.

Não vou me estender sobre os prejuízos econômicos que essa submissão servil à ideologia trumpista (sem os pressupostos econômicos e militares que sustentariam a posição do seu modelo norte-americano) causará inevitavelmente ao Brasil, em particular a setores como o agronegócio, que apoiaram a eleição de Bolsonaro, ou a incoerência entre a saudação ao acordo de livre-comércio com a União Europeia e os ataques a um dos principais líderes do bloco.

Para um diplomata de carreira como eu, que tive, inclusive, o privilégio de subir àquela tribuna, em substituição ocasional aos presidentes sob os quais servi, o que mais dói é ver nosso país ridicularizado e relegado à condição de Estado-pária, que, diferentemente de outros que ganharam, justa ou injustamente, esse qualificativo, foi depositário de tanta confiança e esperança. Que este tempo de trevas passe rápido e que o Brasil se reencontre consigo próprio é tudo o que podemos esperar.