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sábado, 16 de janeiro de 2021

O movimento tradicionalista: Benjamin Teitelbaum - Carta Capital

 Santa ignorância

Revista Carta Capital | Capa
15 de janeiro de 2021



Benjamin Teitelbaum, da Universidade do Colorado, explica a interpretação tortuosa da realidade compartilhada pelo radicalismo de direita.

Especialista em radicalismo de direita, professor da Universidade do Colorado e autor do livro Guerra pela Eternidade: O retorno do tradicionalismo e a ascensão da direita populista, Benjamin Teitelbaum decifra o caráter anticientífico e negacionista dos apoiadores de Donald Trump e suas cópias mundo afora.

"A característica definidora do tradicionalismo é seu desejo abrangente de rejeitar a 'modernidade' e, com isso, a ideia de que a sociedade poderia progredir e melhorar significativamente", afirma na entrevista a Clarissa Carvalhaes.

"Isso normalmente significa rejeitar coisas como ciência moderna, universidades modernas e o Estado democrático. Também pode significar rejeitar esforços para criar sociedades mais integradas e igualitárias em termos de raça e gênero."

CartaCapital: Do ataque ao Capitólio à negação da Covid-19, como podemos identificar o tradicionalismo nesses movimentos destrutivos?

Benjamin Teitelbaum: O tradicionalismo pode inspirar os indivíduos a rejeitar as alegações de especialistas científicos durante, digamos, a pandemia. A abraçar, em vez disso, o conhecimento rejeitado pela sociedade moderna dominante como o esoterismo religioso e as teorias de conspiração. Desrespeitar o funcionamento das instituições governamentais. E opor-se aos movimentos políticos que buscam criar um mundo melhor. Assim, aqueles atraídos pelo tradicionalismo podem celebrar a dispensa em massa de perícia científica e educação formal, o mau funcionamento do governo e o colapso das agendas sociais progressistas.

CC: Como uma crise que mina a economia e colapsa o sistema de saúde global pode ser lucrativa para este grupo?

BT: Pensadores desse tipo celebraram o fato de que a pandemia, segundo eles, desacelerou a globalização. Eles acreditam que as nações que se sairão melhor são aquelas que fortalecerem suas fronteiras, ilhas literais ou figurativas. Continuar com o sonho de um mundo sem fronteiras, no qual indivíduos e bens se movem sem obstáculos, um sonho progressista que os tradicionalistas consideram com desprezo, provoca a morte na era da Covid.

CC: Qual a interpretação que eles têm de movimentos como o feminismo, a comunidade LGBT, os direitos humanos, a diversidade social e a própria democracia?

BT: Todos os movimentos que você mencionou compartilham alguns recursos. Eles podem esforçar-se para desfazer a hierarquia social na sociedade, para assegurar que ser de um determinado gênero, orientação sexual, grupo cultural ou classe não limite suas oportunidades políticas ou econômicas. Um crítico diria que eles se esforçam tanto para igualar quanto para homogeneizar, e não segundo um princípio espiritual, mas segundo uma doutrina secular universal (como a noção de direitos humanos). Então, os tradicionalistas acreditam que esses valores que você citou reinarão durante a era das trevas, uma época em que fronteiras de todos os tipos se desintegram e nos unimos em uma massa homogênea em torno dos valores humanos antiespirituais os mais baixos possíveis.

CC: O que vamos viver não será mais uma disputa entre esquerda e direita, mas um conflito entre tradicionalistas e pluralistas?

BT: O que você tende a ouvir, em vez de observadores políticos, é que a linha que define a política vai se tornar globalismo versus nacionalismo: aqueles que querem aumentar a circulação de bens, dinheiro e seres humanos em todo o mundo, e aqueles que querem diminuí-la. Outros dizem que a nova linha divisória será materialismo versus imaterialismo, políticos cuja principal preocupação é a economia (sejam eles liberais de livre-mercado ou socialistas) versus aqueles que se preocupam mais com valores políticos culturais ou espirituais, quaisquer que sejam. E os tradicionalistas poderíam encontrar um papel para si próprios em qualquer uma das variantes, especialmente em sua combinação, em causas políticas que buscam fortalecer as fronteiras e a identidade nacionais com o objetivo de estimular um renascimento espiritual. Se o passado recente for precedente, essas figuras não serão a face mais pública desses movimentos nem tentariam rotular publicamente uma causa como "tradicionalista". Em vez disso, eles operariam por trás dos líderes como figuras e gurus, como Rasputin, empurrando a causa para frente com fervor incomum e indiferença pela destruição forjada no processo.

CC: O Twitter e o Facebook excluíram permanentemente a conta de Donald Trump. Como decisões como essa podem afetar esse movimento?

BT: As plataformas de mídia digital desempenham um papel estratégico importante nos movimentos de extrema-direita, e claro, e acho difícil subestimar até que ponto a exclusão de Donald Trump do Twitter vai atrapalhar suas operações políticas nesses grupos. Para os tradicionalistas envolvidos com a direita, a mídia social tem um significado mais profundo além de sua aplicação estratégica: ela oferece um meio de contornar o mundo da mídia profissional convencional (uma instrução modernista projetada para criar um público mais informado) que eles presumem que está destinado a ser perverso e enganoso. Consequentemente, a perda de sua capacidade de contornar a mídia convencional pode significar mais para eles do que um mero obstáculo prático. Isso pode significar um desafio metafísico mais profundo à sua causa.

CC: Por muito tempo o tradicionalismo foi considerado um grupo "menor". O Brasil deve temer o avanço desse pensamento?

BT: O tradicionalismo não foi projetado para ser, nem acho que jamais será, um movimento de massa. E muito excêntrico, muito bizarro, muito radical em sua oposição às coisas que a maioria de nós considera senso comum. Sua recente ascensão à proeminência política, da mesma forma, não foi graças a qualquer organização, mas ao sucesso estranhamente simultâneo de indivíduos isolados que desempenharam o papel de conselheiros ou ideólogos em vários movimentos políticos populistas em todo o mundo.

CC: É possível indicar a influência desse tradicionalismo no governo Bolsonaro?

BT: Sim. O próprio Bolsonaro exibe muitas dessas tendências. Mas as figuras dentro e ao redor de seu governo que os abraçam com mais fervor e com a consciência mais ideológica são Olavo de Carvalho e Ernesto Araújo.

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"O tradicionalismo não foi projetado para ser um movimento de massa. É muito excêntrico, bizarro"

sexta-feira, 3 de julho de 2020

Rejeição da ciência na crise tem origem em doutrina tradicionalista, diz autor - Beatriz Bulla

Rejeição da ciência na crise tem origem em doutrina tradicionalista, diz autor
Especialista em extrema direita diz que crise atual faz movimento - que atua nos bastidores e coloca a espiritualidade e religiosidade no centro do debate político - ganhar mais influência
Entrevista com
Benjamin Teitelbaum, autor de 'War for Eternity - Inside Bannon's Far-Right Circle of Global Power Brokers'
Beatriz Bulla / Correspondente, O Estado de S.Paulo
02 de julho de 2020 | 11h58
Desdenhar da ciência na atual pandemia é um traço comum de governos que têm, nos bastidores, pessoas ligadas a uma filosofia conhecida como tradicionalismo. É o que defende o pesquisador Benjamin Teitelbaum, autor do livro "War for Eternity - Inside Bannon's Far-Right Circle of Global Power Brokers” (em tradução livre: Guerra pela eternidade - dentro do círculo dos poderosos de direita radical de Bannon).
Teitelbaum é especialista extrema direita e professor de relações internacionais da Universidade do Colorado. Durante quase dois anos, ele acompanhou reuniões de Steve Bannon, ex-assessor do presidente americano Donald Trump, e nome considerado responsável por bandeiras que ganharam apoio em outros países como a crítica à imigração e a defesa do nacionalismo.
No livro, o americano traça a forma de ação informal de Bannon e as relações com nomes como o conselheiro de Vladimir Putin Aleksandr Dugin e o ideólogo do governo BolsonaroOlavo de Carvalho, unidos pela doutrina do tradicionalismo. Em entrevista ao Estado, Teitelbaum explica por que o tradicionalismo vê na crise atual a oportunidade para ganhar ainda mais influência. Tradicionalistas, segundo ele, atuam sempre nos bastidores e, entre outras características, colocam a espiritualidade e religiosidade no centro do debate político e social.
A crise atual pode tornar os 'tradicionalistas' mais influentes?
Há figuras no governo brasileiro que rejeitam a expertise profissional e científica. Bolsonaro, Ernesto Araújo, Olavo de Carvalho e toda essa ala do governo. As pessoas não percebem que isso pode vir das referências da ideologia tradicionalista. Há um tipo de incentivo religioso para desacreditar os conselhos de cientistas e profissionais que têm mérito oficialmente reconhecido. Isso esteve neste governo brasileiro o tempo todo.
Eles não gostam de universidades, do establishment político, da imprensa, desacreditam qualquer um que tenha credenciais oficiais. Outro aspecto visto é que pessoas como Ernesto Araújo explicitamente conectam o vírus à China e ao comunismo, de um lado, e à globalização, do outro, pelo fato de haver essa disseminação enorme do vírus pelo mundo e sua superação de fronteiras.
Há tradicionalistas que esperam que isso possa reforçar fronteiras, esse sentimento nacionalista. Há esse potencial. Não é que os tradicionalistas tentem fazer disso um caso de sucesso, é como se sentissem que não precisam fazer nada e poderão sair dessa crise com mais valor no nacionalismo. Mas, da perspectiva deles, a crise também é traiçoeira, porque há o argumento de que isto é algo que saiu da China, que tenta fazer uma espécie de um só governo mundial. 
Claramente Ernesto leu René Guénon (francês, considerado um dos precursores da doutrina tradicionalista ao lado do italiano Julius Evola) e Dugin. Olavo também. Acho que é relevante o fato de que essas pessoas, com um fervor suplementar, estão dispensando conhecimento científico. Todos os governos populistas de direita pelo mundo tiveram reações variadas sobre a pandemia. Muitos têm líderes anti-establishment. Mas há uma intensidade maior com essa dimensão espiritual, de uma forma que acho que é importante que brasileiros entendam.
O Brasil está em posição diferente de outros países na crise atual?
Com Trump (EUA), você vê Anthony Fauci e a força-tarefa (de combate ao coronavírus) conseguindo conduzir um pouco a situação. Quando você olha internacionalmente vê Rússia, Brasil, EUA e Índia neste cenário. Em termos de países que rejeitaram medidas protetivas contra o vírus, temos visto dois tipos diferentes de ideologia de direita. Uma, com os liberais pró-mercado e capitalistas, que que querem priorizar a economia.
O Brasil tem isso no ministro da Economia. Do outro lado, você tem os populistas de direita com conspirações, que podem ou ir para a direção do alarmismo e defender o isolamento do país ou acusar uma suposta conspiração produzida pelo establishment. No Brasil, há esta última opção. Há no Brasil o capitalista de mercado livre e também a atitude desdenhosa, conspiratória, juntos em um só governo. Isso é bem incomum, vejo o Brasil como um caso único. 
O fato de os tradicionalistas rejeitarem a ciência, em um momento em que só a ciência consegue nos guiar, não pode gerar forte reação contra governos que seguem essa linha?
Pode haver uma repreensão poderosa, realmente. Em várias partes do mundo, a rejeição da ciência e da experiência é motivada e alimentada por alguns ideólogos de governos que acham que o conhecimento científico é uma piada completa, isso pode provocar um desprezo em relação a esses governos em alguns países e aos influenciadores ideológicos que vivem neles. Absolutamente.
O que será determinante na reação à crise? O que pode enfraquecer essa doutrina ou fortalecê-la nos próximos meses? 
Se a média das pessoas relacionar o fechamento de fronteiras com um grande ganho em termos de saúde, isso pode produzir o ressurgimento do tradicionalismo. Será um passo em direção à segurança, a uma sociedade mais fechada, essencialmente em um momento em que as pessoas têm medo e também sentem que o mundo exterior é uma ameaça para elas.
Do outro lado, os governos inspirados por tradicionalistas podem ignorar todas as indicações ou conselhos de especialistas médicos e colocar em risco suas populações. O complicado aqui é que o tradicionalismo atua nos bastidores, não é conhecido pelas pessoas comuns. Não é como se houvesse um partido político tradicionalista tentando ganhar votos. É bom ter isso em mente. Mas, para responder à sua pergunta, acredito que será uma questão de ter as fronteiras mostradas como proteção versus a responsabilização pela morte e destruição como causa da rejeição à ciência.
Decisões de fechamento de fronteiras estão sendo tomadas no mundo todo. Em um governo com tendências nacionalistas e avesso à imigração, como o de Trump, é possível dizer se medidas de suspensão de entrada de estrangeiros são influência tradicionalista ou parte da conjuntura mundial?
Eu não acho que seja ou um ou outro. Ambos são verdadeiros. Vamos pegar o papel do tradicionalismo no governo Trump. Havia alguém com uma energia fanática, Steve Bannon, que via algo que já existia em Trump. Trump não é um tradicionalista, ele não iria ler nenhum desses livros. Mas Trump é nacionalista, instintivamente gosta de fronteiras, controle e ordem, enquanto Bannon tinha uma devoção espiritual mais religiosa a essas ideias e estava extremamente empenhado em vincular Trump a elas, fazer Trump se mostrar como alguém que apoiava fronteiras rígidas. 
Controlar as fronteiras faz sentido da perspectiva de quando você está pensando na pandemia, mas também pode se tornar um mecanismo para motivações ideológicas que já estavam presentes. Aleksandr Dugin acredita que o que está acontecendo é uma punição divina pelo globalismo e que nossa única esperança é parar com a ideia de que haja uma única comunidade mundial. Esse é a nova lógica que está emergindo deles.
Há reportagens recentes sobre a reaproximação de Bannon com integrantes da Casa Branca. Ele está se reaproximando de Trump no período eleitoral?
Sou cético sobre essas reportagens, porque seria muito difícil politicamente para Trump trazer Bannon formalmente de volta ao seu entorno. O que não duvido, no entanto, é que pessoas que trabalham na Casa Branca e provavelmente uma massa crítica de pessoas estejam consultando Bannon. E, na verdade, isso vem acontecendo há um bom tempo, mas só recentemente recebeu atenção da mídia.
O círculo de pessoas que o consultam é extremamente grande. O poder formal dele pode não estar mudando tanto, mas o poder informal já existia e pode crescer. Mark Meadows, chefe de gabinete da Casa Branca, é próximo dele e isso não é segredo.
O real poder de influência de Bannon é questionado, com muitas de suas iniciativas sem sucesso na Europa. Ele é superestimado?
Há quem diga que ele é superestimado e quem pense que ele é um mestre secreto por trás de fantoches. Não é que a verdade esteja entre essas duas avaliações, mas sim que esteja nas duas extremidades ao mesmo tempo. Ele tem muitos projetos que fracassam, mas, ao mesmo tempo, tem momentos e canais que realmente funcionam e projetos que são bem-sucedidos.
O segredo dele é que tem tantos projetos em andamento, tantas iniciativas, que você pode olhar para sua carreira e ver todo o fracasso e não entender que um em cada 20 projetos do Bannon se torna incrivelmente influente. A Europa pode ter sido um fracasso para ele, assim como outros projetos. E, no entanto, ele provavelmente vai continuar por ali e seguir em frente. É muito revelador para mim que as pessoas estão há três anos dizendo que ele é irrelevante e ele continua aí, agindo.
Olavo de Carvalho já criticou seu livro e disse que não pode ser enquadrado no tradicionalismo.
Ele não quer ser associado a nada além de si mesmo. Ele é certamente um híbrido, um tipo de tradicionalista muito complicado. Vejo muito em seu pensamento inspirado por essa escola. Isso não significa que ele não o modificou, mas quase todo mundo que se identifica com o tradicionalismo o modifica de alguma maneira, portanto esse é o padrão e não exceção.
No caso dele, é presente a rejeição dos especialistas, a vontade de ver a leitura do mundo como sendo definida por, digamos, líderes espirituais, líderes militares. É esse arcabouço conceitual que deriva do tradicionalismo, a crença de que o que realmente importa na política e na sociedade é cultivar e semear uma espécie de espiritualidade. Há também referências explícitas a René Guénon e, no passado, Olavo teve uma passagem por uma tariqa e há documentos sugerindo que ele se converteu ao Islã. Isso tudo está descrito no livro.

terça-feira, 16 de junho de 2020

Tradicionalismo: a extrema direita no poder - Venício A. de Lima (Carta Maior)

Tradicionalismo: a extrema direita no poder

Por Venício A. de Lima 

Carta Maior, 15/06/2020 
 
Valor Econômico noticiou no início de junho que Gerald Brant, executivo do mercado financeiro e diretor de uma empresa de investimentos nos Estados Unidos, deverá ser nomeado para assessor especial no Ministério das Relações Exteriores, uma espécie de conselheiro, ligado diretamente ao gabinete do chanceler Ernesto Araújo. (Cf. Daniel Rittner, “Amigo de Bannon, Gerald Brant pode quebrar tabu e ter cargo no Itamaraty”, 5/6/2020). A notícia causou estranheza, dentre outras razões, porque o indicado não é da carreira diplomática. Uma das reações indignadas veio do ex-ministro Celso Amorim. Se confirmada esta nomeação, afirmou, representaria “um estupro” na diplomacia brasileira; “uma coisa inexplicável, uma violência sem tamanho. Um tiro final no Itamaraty” (Cf. “Amorim: nomear aliado de Bannon no Itamaraty é um estupro” in https://www.brasil247.com/mundo/amorim-nomear-aliado-de-bannon-no-itamaraty-e-um-estupro ).

Quais são as credenciais de Gerald Brant e o que ele representa? Para simplificar a resposta, recorro a um episódio relatado pelo professor da University of Colorado Boulder, Benjamin Teitelbaum em seu recente War for Eternity – Inside Bannon’s Far-Right Circle of Global Power Brokers (Guerra pela Eternidade – Dentro do círculo de extrema direita dos poderosos globais de Bannon, Dey St./HarperCollins, 2020). 

Em janeiro de 2019, Teitelbaum foi convidado para um jantar na casa de Steve Bannon – ex-CEO do portal de extrema direita Breitbart News, ex vice-presidente da Cambridge Analytica, ex-coordenador da campanha de Donald Trump e ex-estrategista chefe na Casa Branca. O evento celebrava o encontro do anfitrião com Olavo de Carvalho, referência doutrinária do recém-eleito governo de Jair Bolsonaro no Brasil. Entre os seletos convidados americanos e brasileiros estava Gerald Brant. Depois do “Pai Nosso” de agradecimento pela refeição, o investidor propôs um brinde e saudou: “Isto é um sonho se realizando. Trump na Casa Branca, Bolsonaro em Brasília. E aqui em Washington, Bannon e Olavo de Carvalho, face-a-face. Este é um novo mundo, amigos” (pp. 164-165). Ao longo do jantar os presentes descreveram as perspectivas do governo Bolsonaro e, em resposta a uma pergunta de Bannon sobre qual a posição de seus partidários, declararam unânimes: “alinhamento com o Ocidente Judeu-Cristão”. (pp. 167).

Para os que já conhecem as relações entre a família Bolsonaro, Olavo de Carvalho, Ernesto Araújo e Steve Bannon, a eventual nomeação de Gerald Brant certamente não causaria qualquer estranheza. O que os une é a adesão a uma doutrina chamada Tradicionalismo.

O Tradicionalismo
War for Eternity é, de certa forma, uma introdução ao Tradicionalismo, com “T” maiúsculo para se diferenciar do simples tradicionalismo (conservadorismo), crítico do novo por acreditar que a vida era melhor no passado. Pesquisado e escrito, nas palavras do próprio autor, no espaço cinzento entre a etnografia e o jornalismo investigativo, o livro resulta de mais de 20 horas de entrevistas gravadas com Steve Bannon e muitas horas com outros adeptos do Tradicionalismo, direta ou indiretamente, a ele relacionados: extremistas radicais da AltRight, nacionalistas brancos (White Nationalists), membros da Ku Klux Klan e neonazistas. Gente como Daniel Friberg (Suécia) e Richard Spencer (EUA); Michael Bagley, Jason Reza Jorjani e John B. Morgan (EUA); Tibor Baranyi e Gabor Vona (Hungria). Somos também introduzidos a figuras como o místico armênio George Gurdjieff (1866-1949), o filósofo esotérico sufista suíço Frithjof Schouon (1907-1998) e a francesa defensora do nazismo Savitri Devi (1905-1982). Entre os mais proeminentes entrevistados, o russo Aleksandr Dugin e o brasileiro Olavo de Carvalho. O conjunto doutrinário que resulta e articula toda essa gente é, para dizer o mínimo, assustador. 

Não há no livro uma resposta organizada para a pergunta “o que é o Tradicionalismo? ”. Escrito primariamente para o público leitor estadunidense, War for Eternity está centrado em Steve Bannon, não só pelas posições que já ocupou no governo Trump, mas, sobretudo, pelo papel de articulador dos Tradicionalistas que busca exercer em nível mundial. O leitor (a) terá que garimpar os elementos que vão surgindo na narrativa para construir uma visão de conjunto desta bizarra forma de pensar. O que se segue é uma breve tentativa de síntese, parcial e seletiva, privilegiando o que se relaciona ao Brasil de Bolsonaro.

Embora haja importantes diferenças entre eles, os pais fundadores do Tradicionalismo são dois pensadores da primeira metade do século XX: o francês René Guénon (1886-1951) e o italiano Julius Evola (1898-1974). O primeiro, ex-católico, ex-maçom, convertido ao islamismo sufista. O segundo, racista, misógino e ligado ao fascismo de Mussolini. Teitelbaum registra: “René Guénon morreu paranoico e envolvido em conflitos com seus ex-seguidores em 1951, e Julius Evola passou seus últimos anos encafurnado no seu apartamento em Roma com um pequeno grupo de seguidores excepcionalmente radicais e perigosos – alguns deles, simples terroristas – e desprezado por muitos Tradicionalistas” (p. 133).

O Tradicionalismo é um “esoterismo religioso” que se “opõe à modernidade Ocidental e à ciência” (p.137). Uma de suas características básicas é a crença – que tem sua origem no Hinduísmo – de que o tempo histórico se desenvolve em ciclos: as idades de ouro, de prata, de bronze e das trevas. Cada um desses ciclos é representado por diferentes tipos de castas, ordenadas por uma hierarquia descendente: os padres, os guerreiros, os mercadores e os escravos. É uma visão fatalista e pessimista, de vez que esses ciclos se repetirão independentemente da agência humana. Apesar disso, Tradicionalistas militam para acelerar a passagem de um ciclo para outro. Eles acreditam que estamos vivendo uma era das trevas que deve ser implodida para que se retorne ao ciclo inicial, à idade de ouro. Nela viveremos numa sociedade não massificada, não homogeneizada materialmente, onde não existem valores universais – como democracia, comunismo e direitos humanos – mas sim diferentes espiritualidades sob a tutela de uma teocracia hierárquica. 

A modernidade é o oposto do Tradicionalismo. É ela que caracteriza a era das trevas. Ela promove o enfraquecimento da religião em favor da razão (Iluminismo), o declínio do que não pode ser quantificado matematicamente – espírito, emoções, o supranatural – em favor do que é material. A modernidade também envolve a organização de grandes massas de pessoas com fins políticos ou de consumo. Disso resulta a padronização e a homogeneização da vida social. A modernidade acredita no progresso, na criatividade humana que pode nos conduzir a um mundo melhor do que esse no qual vivemos. Tradicionalistas aspiram a tudo que a modernidade não é. Eles acreditam em verdades eternas, transcendentes e estilos de vida, não na busca do progresso.

A hierarquia é um dos sinais da sociedade sadia. Os inimigos da diferença são os universalismos, valores ou sistemas considerados verdadeiros para toda a humanidade e não para grupos específicos. Na modernidade, a democracia é frequentemente compreendida nestes termos, tratada até mesmo em documentos fundadores de estados-nações liberais como parte de um conjunto auto evidente de direitos emanados de Deus, simultâneos ao conceito de uma igualdade universal. 

Os Tradicionalistas adotam o que René Guénon chamou de “teoria da inversão” que é uma das características da era das trevas. “Tudo que você pensa que é bom, é ruim. Toda mudança que você considera progresso, na verdade, é regressão. Toda instância aparente de justiça, na verdade, é opressão” (p. 78). O sistema de valores do mundo moderno é, portanto, o oposto da verdade.

A este amplo quadro de crenças, se acrescentam, de acordo com diferentes matizes do Tradicionalismo, o racismo – a superioridade ariana – e a misogenia – os homens arianos constituem  a casta dominante da idade de ouro.

Os Tradicionalistas atuam através do que chamam de metapolitica, vale dizer, privilegiam o ativismo através da cultura – artes, entretenimento, espaços intelectuais, religião, educação – e não necessariamente através de instituições políticas tradicionais. “Se você consegue alterar a cultura de uma sociedade, você terá criado uma oportunidade política para você mesmo. Fracasse em conseguir isto e você não terá qualquer chance” (p. 61). 

Uma das manifestações concretas do Tradicionalismo – embora, por óbvio, ele não constitua sua única causa explicativa – é a ascenção ao poder de grupos políticos de extrema direita em diferentes partes do mundo, sobretudo a partir da eleição de Donald Trump nos Estados Unidos, em 2016.

O leitor (a) deve estar se perguntando: de onde sai o dinheiro? quem financia os Tradicionalistas? Teitelbaum não está exatamente preocupado em esclarecer esta questão. Todavia, pelo menos no caso de Steve Bannon, a fonte é publica e conhecida. Nos meses em que o livro estava sendo escrito ele recebia 1 milhão de dólares/ano do bilionário dissidente e exilado chinês, Guo Wengui (p. 94).

O guru Tradicionalista brasileiro
Em pelo menos quatro dos 22 capítulos do War for Eternity (10, 13,14 e 20), Olavo de Carvalho é o personagem principal ou merece destaque. Estudioso da extrema direita, Teitelbaum se interessou por ele quando, na primeira manifestação pública do presidente eleito Jair Bolsonaro, através de uma “live” caseira, viu que haviam quatro livros estrategicamente colocados na mesa à sua frente: a Bíblia, a Constituição Brasileira de 1988, Memórias da Segunda Guerra Mundial de Winston Churchill e O Mínimo que você precisa saber para não ser um idiota de Olavo de Carvalho. O vínculo com Olavo de Carvalho foi confirmado publicamente quando, em 1º de maio de 2019, o governo Bolsonaro concedeu-lhe o mais alto grau da Ordem de Rio Branco, criada para "distinguir serviços meritórios e virtudes cívicas, estimular a prática de ações e feitos dignos de honrosa menção” (Cf. https://www1.folha.uol.com.br/poder/2019/05/bolsonaro-concede-a-olavo-de-carvalho-condecoracao-igual-a-de-mourao-e-moro.shtml ).

Comunista nos tempos de estudante, passou a se interessar por alquimia e astrologia, frequentando círculos ocultistas em São Paulo. Para a revista Planeta, “entrevistou extraterrestres e pessoas mortas” (p.129). Nesta época deu aulas de astrologia em livrarias e na PUC-SP. “Esoterismo era sua grande paixão” (p. 129). Desde a década de 70 ele tem contato com a obra de René Guénon, a quem considera “crazy”, mas julga que “escreveu muita coisa verdadeira” (p.169). Nos anos 80 esteve envolvido numa estranhíssima celebração Maryamiyya tariqa (uma ordem sufista), liderada por Frithjof Schuon que se considerava o herdeiro de René Guenon (pp. 129-136), em Bloomington, Indiana. Nesta época havia se convertido ao sufismo e se tornou muqaddam (facilitador) de uma tariqa em São Paulo. 

Olavo de Carvalho é um Tradicionalista “excêntrico” (p.128) à sua própria maneira, embora compartilhe pontos fundamentais com os pilares da doutrina. “Despreza a mídia e as universidades” (p.128). Acredita que “esquerdistas se infiltraram no sistema educacional brasileiro em preparação para uma revolução comunista” (p.168). Afirma literalmente: “se eu fosse mostrar a você fotografias das universidades brasileiras, você veria somente pessoas nus fazendo sexo. Eles vão para a universidade para fazer sexo e se você tenta pará-los eles se revoltam, começam a chorar, te veem como um opressor” (pp. 254-255). 

Ele se alinha totalmente com Steve Bannon “na condenação da China e na urgência de resistir à sua influência global” (p.166). Perguntado se temia a China ou o Islã, respondeu: “Eu acredito que a China é mais perigosa. Eles não têm um senso real de humanidade. Eles pensam que pessoas são coisas (...). Eles pensam que você pode substituir uma pessoa por outra. Eles não são boas pessoas” (p. 257).

Ao concluir sua análise sobre o debate público que Olavo de Carvalho travou com o Tradicionalista russo Aleksandr Dugin em 2011, Teitelbaum afirma: “O que, afinal, Olavo apoia? Primeiro e acima de tudo, cristãos de todos os países, Israel e nacionalistas conservadores americanos. Os hábitos sociais rurais dos americanos, em particular, parecem capturar alguma coisa sacrossanta para ele. Ele viu coesão crescente, caridade e voluntarismo quando o Estado se retirou da sociedade americana” (p. 182).

Desde 2005 morando numa zona rural do estado de Virgínia, nos Estados Unidos, agora católico – uma forma de intensificar sua oposição ao comunismo (p. 176) – Olavo de Carvalho passou a oferecer cursos pela internet (Youtube, Facebook) e pelo rádio. Obteve sucesso e “formou” vários quadros que hoje ocupam posições fundamentais no governo de Jair Bolsonaro: Ernesto Araújo (Relações Exteriores) e Abraham Weintraub (Educação) são apenas os mais conhecidos.

Tradicionalismo no Brasil
No capítulo final de War for Eternity, Teitelbaum observa: “Tradicionalismo em sua forma original não estimula preocupações com desigualdades e injustiças. Quando seu comando de arregimentar populações em torno de uma essência espiritual arcaica é combinado com uma ideologia que preserva sua própria versão apocalíptica – como o messianismo de cristãos evangélicos com a crença adicional de que a destruição terrena é necessária para uma utopia terrena, e não celestial – pode existir razão para alarme. Na verdade, para vários dos Tradicionalistas, esta filosofia oferece o pretexto não para a apatia (...) mas para seu exato oposto: a ação transformadora temerária na crença de que o mundo está prestes a mudar e, portanto, medidas audaciosas são justificadas. Tradicionalismo não vê razão para se subordinar à política” (pp. 280-281).
É neste contexto que se deve buscar a compreensão do que ocorre no Brasil de Bolsonaro. No caso específico da nomeação de Gerald Brant – empresário americano de extrema direita ligado a Steve Bannon – para conselheiro da política externa brasileira, há de se lembrar que o chanceler Ernesto Araujo discute Guénon e Evola fluentemente e que “mais do que o próprio Olavo, é um Tradicionalista” (p.165). No seu blog “Metapolítica 17 – Contra o Globalismo” (Cf. https://www.metapoliticabrasil.com/blog/ ) ele se apresenta: “Sou Ernesto Araújo. Tenho 28 anos de serviço público e sou também escritor. Quero ajudar o Brasil e o mundo a se libertarem da ideologia globalista. Globalismo é a globalização econômica que passou a ser pilotada pelo marxismo cultural. Essencialmente é um sistema anti-humano e anti-cristão. A fé em Cristo significa, hoje, lutar contra o globalismo, cujo objetivo último é romper a conexão entre Deus e o homem, tornado o homem escravo e Deus irrelevante. O projeto metapolítico significa, essencialmente, abrir-se para a presença de Deus na política e na história”

O Tradicionalismo, vale dizer, a extrema direita, assumiu o poder no Brasil.

[Brasília, 15 de junho de 2020]
Venício A. de Lima é Professor Emérito da UnB e Pesquisador Sênior do CEBRAP-UFMG