A economia (in)constitucional brasileira
Paulo Roberto de Almeida
Brasília, 27 agosto 2004
Publicada, em versão resumida, na revista
Desafios do Desenvolvimento
(Brasília: IPEA-PNUD, a. 1, n. 4, nov. 2004, p. 78)
Resenha de:
Jorge Vianna Monteiro
Lições de Economia Constitucional Brasileira
Rio de Janeiro: Editora FGV, 2004, 308 p.
O conceito de “políticas públicas” apresenta diferentes acepções, segundo seu enunciador seja um tecnocrata governamental, um empresário privado, um acadêmico ou um simples cidadão “sofredor”, contribuinte compulsório das rendas federais e usuário altamente aleatório dos chamados serviços públicos, menos serviços do que públicos, sobretudo nas áreas de saúde, educação ou rodovias. O empresário rogará pragas incontáveis contra o Estado regulacionista e tributariamente insaciável, ao passo que o acadêmico formulará explicações alternativas para essa realidade, segundo ele seja partidário da intervenção necessária desse Estado ou um “neoliberal” convencido.
Jorge Vianna Monteiro tem uma vasta experiência em políticas públicas, sendo professor desde longos anos e autor de muitos livros nas áreas de economia brasileira, de planejamento estratégico e governamental e no bem mais problemático terreno das complexas interações entre o substrato econômico da sociedade e as políticas públicas desenhadas pelo Estado – ou pelos governos – para “organizar o crescimento” e “distribuir o desenvolvimento”. Como ele indica, o cidadão comum tende a ignorar a “extraordinária inovação institucional” que acompanhou a trajetória da economia brasileira nos últimos anos, representada por uma rede de controles governamentais que ameaçam de erosão as instituições do governo representativo e contribuem, de certa forma, para o atual quadro de instabilidade de regras (inclusive a partir de sua própria fonte constitucional).
Este livro resume o conhecimento teórico e prático do autor sobre o modo de funcionamento da economia brasileira ao longo das últimas décadas, oferecendo sua interpretação de um processo de erosão relativa do Estado constitucional e sua superação progressiva pelo Estado administrativo. O quadro analítico de Vianna Monteiro é baseado no trabalho teórico do prêmio Nobel de economia James Buchanan, que ele define como seu “herói intelectual”, autor, justamente, de uma obra clássica nessa área, Constitutional Political Economy (1990). O livro começa precisamente pela discussão das “escolhas públicas”, sistematizadas teoricamente por Buchanan, partidário de uma “política sem romantismo”, o que só pode ser obtido a partir de uma economia fortemente enraizada na institucionalidade. Ele se debruça, em seguida, sobre as características da própria economia política brasileira, a partir de seu ambiente institucional, não apenas pós-Constituição de 1988, mas igualmente pós-emendas e toda a parafernália de instrumentos que alimentam o que ele chama de “voracidade e caos promovidos pelo governo na área tributária” (p. 67). A despeito do apregoado “neoliberalismo” do governo nos anos 90, o que se tem, na verdade, é o “poder que cresce e cresce”. A própria “facilidade” em mexer na Constituição leva a que “o governo acaba por ser incentivado a ampliar sua influência na economia nacional” (p. 105).
O terceiro capítulo trata, precisamente, da “concentração de poder”, ou seja, a hipertrofia do poder decisório sob a forma de iniciativas legislativas do próprio poder executivo (duplicação do número de medidas provisórias sobre a produção legislativa “normal”). Esta parte também confirma o paradoxo: “o apego á ideologia econômica liberal, com as decorrentes medidas de redução do tamanho físico do Estado, não necessariamente resulta em um Estado menos intervencionista” (p. 143). Em outras palavras, o alegado neoliberalismo é uma balela. O capítulo quarto introduz a atmosfera de crise, vivida a partir das turbulências financeiras da segunda metade dos anos 90, quando, sintomaticamente, se começa a falar de uma autoridade monetária independente, ao mesmo tempo em que aumenta ainda mais a intrusão fiscal do Estado na vida dos agentes econômicos (pessoas físicas e jurídicas).
A construção da credibilidade na política econômica do governo, objeto do capítulo 5, se dá igualmente de forma contraditória, já que o crescente intervencionismo aumenta a volatilidade intrínseca do jogo econômico, mas aqui já entramos no novo governo, inaugurado em janeiro de 2003. O grande “cabo de guerra”, aqui, é a fixação da taxa de juros, obsessão constante de toda uma ala do PT e de outras forças políticas, a começar pelo vice-presidente. O “caso Anatel” (fixação de tarifas de telefonia) é outro exemplo de controvérsia política, envolvendo inclusive o Judiciário. A despeito das intenções do governo de demonstrar transparência e accountability, ele continua a promover “avassaladora regulação econômica” (p. 200). O resultado desses sinais contraditórios emitidos a cada momento pelo governo – formado por um bando de novos zealots, que são os burocratas do banco central – pode ser um “otimismo de resultados”, em confronto com o “pessimismo dos processos”.
O sexto capítulo trata dos comportamentos políticos em períodos eleitorais, quando tendem a mudar a quantidade e a qualidade das políticas públicas, ao passo que o capítulo sétimo aborda a nova fase de crises a partir de 2001 (energética, externa e institucional). A alegada “flutuação da moeda” não evita sucessivas intervenções do banco central no mercado cambial, para sustentar uma determinada cotação do dólar. Da mesma forma, a emissão do decreto 4.489, de novembro de 2002, que trata do acesso de burocratas da receita à movimentação financeira de pessoas físicas, confirma que permanece “ilimitada a capacidade do governo para gerar novas formas de incerteza” (p. 283). Em face de tantas e tão diversas exações, o autor conclui que se torna “necessário passar à etapa crítica de constitucionalizar a política econômica” (p. 292), o que pode soar irônico, em face de outras tantas e tão diversas disposições da Carta que tratam da economia e da política econômica na tradição recente do constitucionalismo brasileiro. Aparentemente, vamos continuar afogados, pelo futuro previsível, num mar de leis, decretos, MPs e outras medidas administrativas. Muitos já providenciaram suas “bóias” fiscais, pela evasão, elisão e fuga de capitais, enquanto a maioria submergiu na economia informal. Talvez ainda surja algum jurista querendo “constitucionalizar” a economia informal, decretando em seguida que a legalidade econômica foi “restaurada”. O tempora, o mores!
Paulo Roberto de Almeida
Brasília, 27 agosto 2004
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