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quinta-feira, 3 de junho de 2021

Apogeu e demolição da política externa: itinerários da diplomacia brasileira - Paulo Roberto de Almeida


3878. Apogeu e demolição da política externa: itinerários da diplomacia brasileira, Brasília, 26 março 2021, 322 p. Novo livro a ser publicado proximamente pela Editora Appris. 

Apogeu e demolição da política externa

 itinerários da diplomacia brasileira 

(Curitiba: Editora Appris, 2021)

 

Índice


 

 

Nota liminar

Uma história sincera do Itamaraty?

 

1. Relações internacionais do Brasil: uma síntese historiográfica

1.1. A historiografia: uma quase esquecida na história das ideias

1.2. A historiografia brasileira das relações exteriores: principais historiadores

1.3. Varnhagen, o pai da historiografia, o legitimista da corte

1.4. João Ribeiro inaugura a era dos manuais de história do Brasil

1.5. Oliveira Lima: o maior dos historiadores diplomatas

1.6. Pandiá Calógeras: o início da sistematização da história diplomática

1.7. Interregno diversificado: trabalhos da primeira metade do século XX

1.8. Os manuais didáticos de história diplomática: Vianna, Delgado e Rodrigues

1.9. O ideal desenvolvimentista: Amado Cervo e Clodoaldo Bueno

1.10. A diplomacia na construção da nação: Rubens Ricupero

1.11. A historiografia brasileira das relações internacionais: questões pendentes

 

2. As relações internacionais do Brasil em perspectiva histórica

2.1. Padrões e tendências das relações internacionais do Brasil

2.2. Etapas das relações internacionais do Brasil

       2.2.1. O Império: a construção da nação e as bases da diplomacia

       2.2.2. A Velha República: os mitos e as deficiências da política externa

       2.2.3. A era Vargas: escolhas estratégicas, a despeito de tudo

       2.2.4. O regime militar: consolidação do corporatismo diplomático

2.3. A redemocratização e as relações exteriores do Brasil

       2.3.1. Uma periodização diplomática para o período contemporâneo

       2.3.2. A restauração constitucional e os erros econômicos

       2.3.3. Os anos turbulentos das revisões radicais do momento neoliberal

       2.3.4. Estabilização macroeconômica e nova presença internacional

       2.3.5. A primeira era do Nunca Antes: a diplomacia personalista de Lula

       2.3.6. Uma transição pouco convencional: retornando a padrões anteriores

       2.3.7. Uma segunda era do Nunca Antes: a diplomacia bizarra de Bolsonaro

2.4. O que concluir de tudo isto? Que lições ficam de nossa trajetória histórica?

2.5. Nota final: reformas internas e inserção na globalização

 

3. Processos decisórios na história da política externa brasileira

3.1. O que define um processo decisório: observações preliminares

3.2. A diplomacia brasileira como instituição

3.3. A estrutura orgânica da diplomacia brasileira

3.4. Os processos decisórios na diplomacia brasileira

3.5. Virtudes e defeitos do processo decisório na diplomacia lulopetista

3.6. A degradação da cadeia de decisão no governo Bolsonaro

3.7. Conclusões: como funciona, como talvez devesse funcionar...

 

4. A política da política externa: as várias diplomacias presidenciais

4.1. Participação dos presidentes em política externa: da omissão ao ativismo

4.2. O início da liderança presidencial em política externa: a era Vargas

4.3. JK e o desenvolvimentismo: a caminho da política externa independente

4.4. O regime militar: tudo pelo “Brasil Grande Potência”

4.5. Redemocratização: crise externa e integração regional

4.6. Os anos FHC: enfim, uma diplomacia presidencial

4.7. Os anos Lula: o ativismo como norma, o personalismo como finalidade

4.8. A tímida diplomacia presidencial de Michel Temer

4.9. A antidiplomacia de Bolsonaro e dos assessores aloprados: afundamento

4.10. Conclusões: caminhos erráticos da diplomacia presidencial brasileira

 

5. O outro lado da glória: o reverso da medalha da diplomacia brasileira

5.1. Tropeços na independência e durante o império

5.2. Os fracassos da primeira diplomacia republicana

5.3. A difícil construção de uma diplomacia autônoma, e consciente de sê-la

5.4. A diplomacia profissional, como base da diplomacia presidencial

5.5. A deformação da política externa sob a diplomacia bolsolavista

 

6. Um exercício de planejamento estratégico para a diplomacia 

Introdução: demolição e reconstrução da diplomacia brasileira

6.1. A política externa e a diplomacia no desenvolvimento nacional

6.1.1. Etapas percorridas em 200 anos de história institucional

6.1.2. Os desafios: uma matriz dos recursos e das debilidades nacionais

6.2. Campos de atuação da diplomacia e da política externa 

6.2.1. Multilateralismo, regionalismo e bilateralismo como instrumentos

6.2.2. A política externa multilateral: interfaces políticas e econômicas

6.2.3. A geografia política e a geoeconomia global das relações exteriores

6.2.4. América do Sul: eixo de um espaço econômico integrado

6.2.5. O multilateralismo econômico: eixo da inserção global do país

6.2.6. Ambientalismo e sustentabilidade: eixos dos padrões produtivos
6.2.7. Direitos humanos e democracia: eixos da proposta ética do país

6.2.8. Blocos e alianças estratégicas na matriz externa

6.2.9. Relações com parceiros bilaterais e regionais

6.2.10. Vantagens comparativas e exploração de novas possibilidades

6.2.11. Integração política externa e políticas de desenvolvimento

6.3. O Itamaraty como força motriz da inserção global do Brasil

6.3.1. Gestão da Casa, com base nas melhores práticas da governança

6.3.2. Responsabilização, abertura e transparência nas funções

6.3.3. Capital humano de alta qualidade: base de uma diplomacia eficaz

6.4. Planejamento estratégico como prática contínua da diplomacia 

 

Apêndice: O Estado do Brasil em 1587 e sua condição atual

  

Bibliografia e referências

Nota sobre o autor

Livros do autor

 

Uma história sincera do Itamaraty?

 

 

Entre a última década do século XX e a primeira do século XXI — quando o mundo finalmente se libertou da velha Guerra Fria geopolítica, com a implosão do socialismo e o desaparecimento da União Soviética, e adentrava, talvez, numa nova Guerra Fria econômica, com a ascensão fulgurante da China —, a política externa brasileira conheceu um possível apogeu. Simultaneamente, e daí decorrente, a diplomacia profissional desfrutava de seu maior prestígio, aliás bem merecido. 

Nos dias que correm, nos dois anos finais da segunda década deste século, ambas, a política externa e a diplomacia, enfrentam o que foi chamado de demolição, tanto no plano substantivo — o do conteúdo da política externa — quanto no plano operacional ou institucional, ou seja, o da diplomacia. O contraste não poderia ser maior, o que talvez explique que, nos dezoito primeiros anos deste milênio, eu tenha publicado cinco livros, especificamente sobre as relações internacionais e a política externa do Brasil, e que, desde o início de 2019, eu já tenha publicado quatro livros sobre o mesmo assunto (em meio a vários outros, sobre temas paralelos).

Acompanhei, algumas vezes como ator ou protagonista, outras vezes mais como observador ou espectador engajado, os principais episódios e desenvolvimentos dessas duas décadas, sobre elas oferecendo minhas análises críticas, observações, comentários, meu testemunho e minhas reflexões numa dúzia de livros, incluindo obras sobre outros temas, que não apenas política externa e diplomacia brasileira, em edições de autor e em formato digital, grande parte disponíveis nas plataformas de interação acadêmica. Todos os demais temas — isto é, integração, globalização, política econômica brasileira, história econômica, economia mundial, resenhas de livros, artigos sobre a atualidade internacional – figuram em compilações temáticas ou numa infinidade de artigos, notas e postagens – notadamente em meus blogs e ferramentas de comunicação – que cobriram, mais especialmente, minhas “afinidades eletivas”, isto é, meus campos de estudos, pesquisas, aulas e trabalho, em relações econômicas internacionais: integração regional, comércio mundial, finanças internacionais, investimentos estrangeiros, propriedade intelectual, história diplomática e as relações exteriores do Brasil. 

Posso dizer que fui feliz nas duas vertentes de minha vida adulta: a profissional, nas atividades diplomáticas, por um lado, as lides acadêmicas, por outro, estas em meio a um intenso engajamento e dedicação na primeira vertente e, portanto, com algum sacrifício pessoal e familiar na segunda, mas este plenamente assumido, com tanto prazer e satisfação intelectual logrados, quanto na dimensão profissional. Na verdade, a atividade docente precede a inclusão na carreira diplomática, acompanhou sua trajetória em quase todas as etapas – no Brasil sempre, no exterior ocasionalmente – e explica essa feliz integração entre o desempenho profissional e o exercício docente, pois uma fecunda a outra e ambas estão igualmente presentes na produção intelectual.

 

No início daquela última década do século XX, eu estava concluindo meu terceiro posto na carreira, em Genebra, o primeiro multilateral (depois de dois primeiros bilaterais, o segundo coincidindo com um doutorado), sob a chefia do embaixador Rubens Ricupero, o que representou um grande aprendizado profissional, mas também um enorme desfrute intelectual. No primeiro ano da década de 90, eu já estava indo para o quarto posto, o segundo multilateral, na delegação junto à Aladi, em Montevidéu, a convite do embaixador Rubens Barbosa, com quem havia trabalhado logo ao início da carreira, na Divisão de Europa Oriental, ou seja, o mundo do socialismo real, ainda durante a ditadura militar brasileira, cuja doutrina oficial era o anticomunismo (nessa época eu ainda conservava meu caráter de marxista “não religioso”). Foi outra grande oportunidade de aprendizado profissional, sob uma das maiores e mais competentes chefias executivas do Itamaraty, e também mais uma chance de enriquecimento intelectual: foi do trabalho em Montevidéu que retirei a matéria prima para o meu primeiro livro, sobre o Mercosul no contexto regional e internacional. A partir de então, não parei mais de preparar cada novo expediente profissional, tratar cada novo paper acadêmico, cada palestra dada, como partes substantivas de um novo livro.

 

Talvez aquelas duas décadas de “apogeu diplomático” – um conceito objetivo, que significa tanto fastígio, quanto excelência – possam ser concentradas num único decênio, a segunda metade dos anos noventa e o primeiro lustro do novo milênio: antes disso vivíamos a voragem inflacionária dos anos Collor e Itamar; depois de 2005, atravessamos certa húbris lulopetista, quando o excesso de autoconfiança do presidente e do seu chanceler diplomático desembocaram em certos exageros terceiro-mundistas, provavelmente motivados pela ambição megalomaníaca do presidente na eventual conquista de um Prêmio Nobel da Paz. Mesmo praticando uma diplomacia que não era, em sua essência, muito diferente da anterior, os lulopetistas insistiam em se demarcar da política externa da fase socialdemocrata, classificando todo o período precedente sob o signo “neoliberal”. Não importa muito agora, pois essas duas décadas corresponderam, de fato, ao período de maior expressão e atuação da diplomacia profissional, em toda a extensão de suas qualidades técnicas e intelectuais, com alguns aportes “externos” aqui e ali, como nos casos de chanceleres de fora da carreira: Francisco Rezek, Celso Lafer e Fernando Henrique, por exemplo; havia ainda o apparatchik do PT, também chamado de “chanceler para a América do Sul”, que atuava como conselheiro presidencial, mas que respeitava a expertise dos diplomatas profissionais. Depois de uma longa sucessão de chanceleres de carreira na fase lulopetista, dois políticos, senadores do PSDB-SP, ocuparam a chancelaria na transição entre o lulopetismo e essa coisa disforme que foi apelidada de bolsonarismo. No período final do lulopetismo, se registrou um relativo declínio da qualidade da política externa e uma perda de prestígio de sua diplomacia, durante um mandato e meio sob o comando da sucessora de Lula.

Mas já a partir do segundo mandato de Lula (2007-2010), tinha ocorrido certa exacerbação do ativismo diplomático do chefe petista, bem mais em função da sua megalomania do que a iniciativas do próprio corpo profissional. Este, em vários casos, nem tomava conhecimento de certos lances da diplomacia “paralela” (e clandestina) do assessor presidencial partidário ou do próprio chanceler: relações com os comunistas cubanos, com os aliados bolivarianos ou “paz na Palestina” e programa nuclear iraniano. Foi a partir do terceiro governo petista, com a inoperância total em diplomacia da presidente escolhida por Lula para ser uma simples boneca de ventríloquo do chefe, que as coisas começaram a se deteriorar do lado da política externa. Por alguma razão desconhecida, Dilma Rousseff tinha desprezo pelos diplomatas, e se enfastiava com a agenda diplomática, a ponto de deixar embaixadores designados aguardando numa longa fila para entregar suas credenciais: uma descortesia gratuita e danosa para o país. 

Depois que, nas eleições de 2014, os diplomatas apostaram na sua derrota, eles e a política externa se viram livres da incômoda presidente com o impeachment de 2016, produto secundário da maior recessão de nossa história, mas também por infrações à Lei de Responsabilidade Fiscal e a disposições orçamentárias. A partir daí, dois chanceleres políticos operaram um retorno da diplomacia e da política externa a padrões tradicionais e mais conformes aos métodos de trabalho do Itamaraty. Foi quando, depois de muito tempo sem qualquer cargo na Secretaria de Estado, voltei a emprestar minha força de trabalho à diplomacia brasileira, passando a chefiar, na duração do governo Temer, o Instituto de Pesquisa de Relações Internacionais, o think tank do Itamaraty.

Tão pronto ficaram claras as tendências eleitorais no início do segundo semestre de 2018, eu tinha certeza de que seria exonerado no primeiro dia do novo governo, em função das posturas adiantadas durante a campanha eleitoral e no período de transição. No final desse ano, um grupo de amadores em diplomacia se reuniu secretamente à margem da Casa para operar uma reforma completa na estrutura orgânica, nas unidades setoriais da Secretaria de Estado e nas próprias orientações fundamentais da política externa, sem que qualquer consulta ou informação fossem efetuadas junto à diplomacia profissional. Essa foi a primeira das várias violências perpetradas contra o Itamaraty. Muitas outras seriam exercidas de modo sistemático e contínuo, nos dois anos decorridos desde então, contra valores e princípios tradicionais da diplomacia, a começar por um bizarro, inaceitável e ridículo antimultilateralismo, uma cópia grotesca do “antiglobalismo” que era praticado pela diplomacia americana sob Trump, e que também se inspirava nas teorias conspiratórias da nova direita americana.

 

O conceito de apogeu, empregado para caracterizar a política externa e a diplomacia nas décadas anteriores ao presente governo – resultado da lenta acumulação de aperfeiçoamentos na substância e na forma das relações exteriores do Brasil –, pode ser considerado como pertencente ao terreno de uma avaliação objetiva, como se a condução dos processos e uma avaliação positiva das realizações alcançadas surgissem a partir de um julgamento factual. Já o conceito de demolição é um conceito ativo, digamos na primeira pessoa – inclusive dada a extrema personalização de todas as políticas públicas sob Bolsonaro –, uma vez que foi o próprio presidente e seu chanceler que declararam o muito que havia a ser “destruído” no Brasil, para adequá-lo e torná-lo conforme ao primeiro governo assumidamente de direita ou de extrema direita no país. 

A parte do “apogeu” da política externa e da diplomacia está descrita e analisada nos primeiros capítulos deste livro, que se referem à historiografia e à trajetória histórica das relações internacionais do Brasil, aos sucessivos processos decisórios da diplomacia brasileira e ao exercício da liderança presidencial nessa política setorial. A “demolição”, por sua vez, ainda em curso, foi analisada nas últimas seções dos capítulos 2 a 5, e dela trato dentro das possibilidades do momento, quando vários insucessos e frustrações já se acumularam, em decorrência de uma direção inepta (ou de uma falta completa de visão do país e do mundo), em face das incertezas que ainda podem vir pela frente. Finalmente, um último capítulo trata, de maneira preliminar, de um exercício relevante para a diplomacia, mas que se dirige, basicamente, à política externa do país, que é o planejamento estratégico, bastante usual entre os militares e nas grandes empresas, mas ainda relativamente incipiente na corporação diplomática, que pessoalmente considero de boa qualidade, mas ainda excessivamente patrimonialista, quando não “feudal”. Por fim, como sou um grande leitor de história – minha inclinação, na sociologia do desenvolvimento brasileiro, sempre comportou um importante componente de história econômica –, aproveitei uma releitura da primeira crônica sobre o “estado” do Brasil, de 1587, com a colônia já posta sob a administração espanhola da União Ibérica, para refletir sobre determinadas permanências na atualidade, ou seja, anacrônicas.

 

Minha intenção, inicialmente, seria a de oferecer uma espécie de história sincera do Itamaraty, um projeto que tenho em mente já há algum tempo. Temo, contudo, que um exercício desse tipo talvez só possa ser conduzido depois que corações e mentes, mas sobretudo a fala, sejam liberados do ambiente de intimidação que paira atualmente sobre a diplomacia profissional, na Secretaria de Estado, e em praticamente todos os postos no exterior. É conhecido, por exemplo, que a partir do marco cronológico das eleições de 2018, e sobretudo a partir de 2019, muitos colegas preferiram ser removidos para consulados, do que ter de cumprir as instruções mais estapafúrdias jamais recebidas por chefes de postos em embaixadas ou delegações junto a órgãos multilaterais (estas especialmente visadas pelos fanáticos do antiglobalismo). Alguns colegas se dobraram às loucuras do momento, outros enterraram a cabeça na areia: eles sabem do que estou falando, tanto porque intentei um exercício muito discreto de “reconstrução” pós-Bolsonaro (mas frustrado pela ausência de reações suficientes).

Esta foi a razão de eu ter eliminado, de uma primeira versão deste livro, diversos capítulos essencialmente conjunturais para reservá-los a um outro tipo de publicação, dedicado exclusivamente ao bolsolavismo diplomático, a deformação da política externa que desabou sobre o Itamaraty em 2019 e que ainda não foi corrigida em seus fundamentos e modalidades (et pour cause: seu promotor direto não é o infeliz chanceler acidental, mas o próprio presidente, estimulado por uma pequena tropa de amadores nessa área, animados pelas mais loucas teorias conspiratórias). Desde 2019, o Itamaraty e a diplomacia profissional passaram a viver sob uma espécie de “surrealismo exótico”, no qual os titulares presumidos da área se aferraram às fantasmagorias demenciais de um guru expatriado. Elementos centrais nesse coquetel destrambelhado de “teses” conspiratórias partiam de uma suposta ameaça do monstro metafísico do “globalismo”, mancomunado ao “comunismo”, junto a outras coisas bizarras como o “climatismo”, o “comercialismo” e outros “ismos”, como sendo os maiores perigos para a sobrevivência da “alma conservadora” do povo brasileiro, além de outras loucuras diplomáticas, só capazes de frequentar mentes muito doentias e desequilibradas. Infelizmente, é o que desabou sobre o Itamaraty e seus profissionais, com cenas explícitas de esquizofrenia política, inéditas em quase duzentos anos de história diplomática. Toda essa loucura merece um registro próprio e separado deste volume, que tem a pretensão de trazer ensaios menos conjunturais e mais dotados de alguma substância estrutural.

 

Como descrevi no primeiro livro dedicado aos responsáveis pela “nova política externa para o povo”, estamos em face de uma “miséria da diplomacia” (2019a), inteiramente decorrente da “destruição da inteligência no Itamaraty”: as antigas posturas fundamentadas em bases técnicas, centradas exclusivamente nos interesses nacionais, foram substituídas por uma série de irracionalidades ideológicas, identificadas com os preconceitos da nova direita, alinhadas, não aos interesses brasileiros, mas aos do governo Trump. Depois disso, o Itamaraty entrou num “labirinto de sombras” — título de meu segundo livro (2020c) — para o qual o adjetivo “sincera” não mais poderia ser aplicado, uma vez que interlocutores da diplomacia ativa passaram a enfrentar enormes dificuldades para se expressar com toda clareza e transparência sobre uma das fases mais obscuras e vergonhosas da política externa e da diplomacia. O Serviço Exterior passou a ser constrangido, e a viver encabulado no mundo, basicamente em virtude de deformações e mentiras mais abundantes do que as que existiram, comparativamente, no período da ditadura militar, quando agentes consulares eram impedidos de sequer expedir certidões, passaportes e outros documentos para os adversários exilados do regime ou a seus familiares. 

Finalmente, meu terceiro livro dedicado ao trabalho de “demolição” revelou uma “certa ideia do Itamaraty” (2020b), no qual eu também tratei dos possíveis caminhos para a “reconstrução da política externa e a restauração da diplomacia”. Não é uma tarefa fácil, tantas são as incongruências, o desprestígio, o isolamento regional e internacional aos quais o Brasil e sua diplomacia foram relegados em dois anos de desmantelamento promovido pelo próprio governo, contra uma de suas instituições mais renomadas. Vários ex-chanceleres estão ativos nessa reconstrução, ao divulgar, em 8 de maio de 2020, um “manifesto” – anexo a esse terceiro livro do ciclo – apontando diversas inconstitucionalidades presentes na atual antidiplomacia e apresentando os fundamentos conceituais e os elementos práticos desse trabalho de restauração de uma política externa nacional.

 

O objetivo do presente livro, retomando alguns dos temas e escritos de obras anteriores, é o de relatar, na maior extensão possível, a grande marcha do itinerário diplomático brasileiro e o desenvolvimento de sua política externa, com um foco mais detido nas últimas décadas, saindo do que chamei – com certa tolerância semântica – de “apogeu” (o que pode ser conceitualmente e substantivamente contestado) para um inédito projeto e trabalho sistemático de “demolição”, este sim conduzido com a sanha dos novos crentes. O lado sincero da presente obra poderia ser confirmado pelo primeiro subtítulo escolhido para ela, representado pela informação de que seu conteúdo consistia num conjunto de “reflexões”, assim como pela auto designação sequencial de que elas seriam de um “diplomata não convencional”. Poderiam ser, ainda mais sinceramente, as reflexões de um “anarco-diplomata” – do grego an arkhé, sem comando –, que consiste em minha disposição de falar abertamente sobre minha corporação e sobre as prioridades que orientam o seu trabalho. Mas, preferi adotar um subtítulo mais neutro: itinerários da diplomacia brasileira, dado seu forte conteúdo histórico.

O ex-chanceler Azeredo da Silveira costumava dizer que a melhor qualidade do Itamaraty é saber renovar-se. Nunca apreciei especialmente essa frase – ademais daquela outra, sobre a suposta “excelência” do Itamaraty –, pois que ela revela, de certa forma, uma satisfação gratuita com nosso trabalho, como se ele fosse sempre perfeito, podendo dispensar críticas internas e pouco tolerante com contrarianistas como este que aqui escreve. Temo que a tal tarefa, da próxima vez, será muito mais complicada do que uma simples renovação superficial. O trabalho consistirá em reconstruir os fundamentos conceituais da política externa e as bases operacionais de sua diplomacia, bastante abalados pelos golpes de borduna dos novos bárbaros, pelos tacapes da ignorância dessa franja lunática que assaltou o poder com todo o furor dos verdadeiros crentes. 

Será preciso uma reconstrução conceitual e uma restauração de métodos e procedimentos que não mais reproduzirão o que tínhamos num passado parcialmente “feudal”. Nada que o corpo profissional não consiga fazer, desde que disponha de liberdade para mudar a maior parte, senão tudo, do que foi feito sob a infeliz gestão dos fanáticos da bolsodiplomacia. Os ex-chanceleres já prepararam o “menu” dessa obra de reconstrução, mas será a nova geração, os jovens frustrados com o balde de água fria que receberam, ao tomarem conhecimento da nova condição de “párias” que os aloprados assumem como normal, são eles que terão de arregaçar as mangas, limpar os escombros e restaurar as linhas suaves do Palácio dos Arcos, o nome do edifício onde está, em Brasília, o Itamaraty. Continuarei acompanhando esses embates, seja na frente de batalha, seja no meu quilombo de resistência intelectual, o blog Diplomatizzando.

 

Brasília, 29 de março de 2021

 

O Itamaraty Sequestrado: a destruição da diplomacia pelo bolsolavismo, 2018-2021 - Paulo Roberto de Almeida

 


 1399. O Itamaraty Sequestrado: a destruição da diplomacia pelo bolsolavismo, 2018-2021 (Brasília, 13 maio 2021, 114 p.; ISBN: 978-65-00-22215-9; Formato Kindle, ASIN: B094V28NGD; 927 KB). 

Divulgado no blog Diplomatizzando, com sumário, dedicatória e prefácio (8/05/2021; link: https://diplomatizzando.blogspot.com/2021/05/o-itamaraty-sob-ataque-2018-2021.html); disponível na Amazon.com.br (link: https://www.amazon.com/-/pt/dp/B094V28NGD/ref=sr_1_1?dchild=1&keywords=O+Itamaraty+Sequestrado%3A+a+destrui%C3%A7%C3%A3o+da+diplomacia+pelo+bolsolavismo%2C+2018-2021+%28Bolsolavismo+diplom%C3%A1tico+Livro+1%29&qid=1621002681&s=digital-text&sr=1-1). Relação de Originais n. 3904.


Índice

 

 

Prefácio  9

 

1. Ascensão e queda do bolsolavismo diplomático, 2018-2021   14

1.1. O assalto dos novos bárbaros ao Itamaraty    14

1.2. Novamente no limbo, analisando o bolsolavismo diplomático   18

1.3. A patética carta de demissão do chanceler acidental  20

 

2. Degradação democrática e demolição diplomática   22

2.1. O destino da nação: declínio ou renovação da democracia brasileira 22 

2.2. A História não se repete, nem mesmo como farsa  24

2.3. O que fazer na ausência de um estadista circunstancial?    25

2.4. Uma inédita ruptura nos padrões tradicionais da política externa 26

2.5. O alinhamento automático ao presidente Trump: um escândalo temporário    27

2.6. A hostilidade em relação à China como critério da identidade comum   28

2.7. O isolamento na esfera internacional e no contexto regional 29

2.8. O caso da tecnologia 5G: prejuízos reais em qualquer hipótese 30

2.9. O caso da Amazônia: uma extraordinária vocação para o erro 31

2.10. A postura no caso da pandemia da COVID: negacionismo em toda a linha   31

2.11. Uma nova Idade das Trevas?  32

 

3. Submissão ao Império e relações com os vizinhos regionais 34

3.1. A importância da descontinuidade, em circunstâncias inéditas  34

3.2. A importância histórica das relações regionais e hemisféricas 34

3.3. Da aliança não escrita aos impasses políticos e econômicos  35

3.4. Bolsonaro e uma inédita relação de alinhamento sem barganha 36

3.5. A desintegração regional e o desalinhamento com os vizinhos 39

3.6. Qual o futuro da integração, do Mercosul, da política externa brasileira?    40

 

4. Um novo animal na paisagem: o globalismo e os seus descontentes      42

4.1. O espectro do globalismo: a emergência da irracionalidade oficial 42

4.2. Dos antiglobalizadores aos antiglobalistas? 43

4.3. À la recherche du globalisme perdu   44

4.4. Os nacionalismos canhestros: genitores do antiglobalismo irracional 48

 

5. Um “balanço” desequilibrado: a despedida do chanceler acidental      50

5.1. Ascensão e queda de um capacho exemplar 50

5.2. O “balanço” e o seu oposto: mentiras, falácias e falcatruas 51

5.3. A justificativa prolixa e a declaração de política objetiva 75

 

6. Quo vadis, Brasil? 76

6.1. Estaríamos enfrentando uma fase tendencial de declínio?  76

6.2. O que é verdadeiramente estratégico na vida da nação?  77

6.3. Quão baixo, quão fundo, uma sociedade pode descer? 78

6.4. Um “exército de ocupação” interno?  81

6.5. Sobre os descaminhos do Brasil atual 83

 


Apêndices 84

 

Sumários dos livros do ciclo do bolsolavismo diplomático 84

(1) Miséria da diplomacia: a destruição da inteligência no Itamaraty 84

(2) O Itamaraty num labirinto de sombras: ensaios de política externa e de diplomacia brasileira    85

(3) Uma certa ideia do Itamaraty: a reconstrução da política externa e a restauração da diplomacia brasileira      85

(4) O Itamaraty Sequestrado: a destruição da diplomacia pelo bolsolavismo, 2018-2021       88

(5) Apogeu e demolição da política externa: itinerários da diplomacia brasileira 89

 

Livros publicados pelo autor 91

Nota sobre o autor   95

 

 

 Navegar é preciso, como prescreve a conhecida frase vinda da Antiguidade clássica.

Correto, em sua singela atitude, mas não basta meramente seguir adiante, em meio à borrasca, ou contemplando a violência arrogante que se abate sobre nós.

Resistir também é necessário, em face do arbítrio, do desgoverno, da mentira, da fraude, da sordidez, da desumanidade, da ignorância, da perversidade, do sectarismo, do fundamentalismo, da intolerância, da burrice e, sobretudo, da prepotência e da estupidez.

É preciso não só resistir, mas antepor a tudo isso o diagnóstico correto, assim como prescrever o tratamento adequado, segundo os melhores valores da ética pública, acompanhada de sólidos princípios morais, fundamentados na razão e derivados do conhecimento.

Tal é o sentido de minhas reflexões e tais são as motivações de minha postura, de meus escritos, de minhas ações.

Refletir, resistir, navegar...

 

Paulo Roberto de Almeida

Brasília, 30 de abril de 2021

 

 

 

Este livro é dedicado aos meus colegas do corpo da diplomacia profissional do Serviço Exterior brasileiro, que tiveram de suportar, durante dois anos e alguns meses, a mais esquizofrênica das diplomacias imagináveis, seja na já longa trajetória da política externa brasileira, desde a Independência, seja no plano da diplomacia mundial, absolutamente sem precedentes em nossa história (e, espera-se, sem sucedâneas), ou na comparação com qualquer outra diplomacia nacional, no contexto regional ou em âmbito mundial. 

A todos os colegas, de todas as classes, condições e opiniões que possam ter sobre a substância do que deveria ser a política externa brasileira, meus cumprimentos pela resiliência, pela persistência e pela resistência, ainda que de maneira silenciosa e discreta. Creio ter interpretado o sentimento da maioria, mesmo quando alguns discordaram de minha postura e de meu posicionamento em face da miséria diplomática e da destruição da inteligência que vivemos desde o final de 2018 até o início de 2021.

 

 

Prefácio

 

 

Pretendo que este seja o meu “último” livro, não absolutamente, mas relativamente, e isto a dois títulos: ele pretende circunscrever um período determinado da trajetória do Itamaraty contemporâneo, tal como evidenciado nos anos extremos de seu subtítulo, e tem, sobretudo, o objetivo de concluir a série dos livros de debate, ou de “combate”, do ciclo que chamei de “diplomacia bolsolavista”, iniciada de maneira improvisada e que assim continuou por mais quatro exemplares da série, agora aparentemente vindo a termo. Espero não ter de voltar mais ao período que se encerrou em março de 2021 – salvo algum novo “acidente de percurso” – e voltar a dedicar-me a trabalhos de pesquisa menos marcados por aspectos conjunturais como os que aqui são enfocados, em especial aposentando definitivamente esse adjetivo pouco recomendável que marcou a diplomacia “bolsolavista” do Brasil nesses anos.

Na verdade, este livro estava destinado a ser apenas a “segunda parte” de uma obra bem mais alentada, voltada para uma exposição e análise de um período mais amplo da política externa e da diplomacia do Brasil, mas que terminou dividida em dois volumes, por razões de ordem prática e também por decisões de natureza conceitual: por um lado, a obra projetada, e em larga medida elaborada nos últimos anos, revelou-se de dimensões maiores do que o normalmente imaginado para um volume impresso, como era a intenção original, dada essa minha incômoda peculiaridade de “escrevinhador”, bem mais do que simplesmente escritor; por outro lado, ela comportava, justamente, ensaios de natureza mais historiográfica e “estrutural”, além de uma série de artigos e comentários de características conjunturais, vinculados estreitamente ao período recente, e excepcional, do itinerário do Brasil nas relações internacionais contemporâneas. Daí a decisão de fracioná-la entre um volume impresso a ser ainda publicado e este destinado a sair mais rapidamente como e-book.

Muito do que figura em um e outro volume já se encontrava preparado ao final do mês de novembro de 2020, logo após as eleições americanas, que levaram à derrota do candidato preferido pelos bolsonaristas brasileiros, seu líder e modelo Donald Trump, saindo vitorioso em seu lugar o democrata Joe Biden, mesmo se o processo de verificação tenha se arrastado irritantemente até o mês de janeiro seguinte, inclusive com cenas explícitas de contestação ilegal dos resultados obtidos nas urnas (o que foi inclusive apoiado pelo presidente brasileiro, assim como pelo seu chanceler depois afastado). Ao final do ano decidi retirar a parte conjuntural para torná-la esta obra independente, deixando para o livro a ser publicado em formato impresso os ensaios de natureza mais conceitual, ou estrutural.

O caráter “terminal” deste livro, agora publicado em formato digital, também segue a tendência adotada pelas demais obras deste ciclo “que não deveria existir”, cujos sumários figuram no apêndice. Explico rapidamente o que já está exposto no primeiro capítulo desta obra, que retraça a própria trajetória do bolsolavismo diplomático, um experimento alucinante e alucinado de bizarrices no âmbito da política externa, e que durou do início do governo Bolsonaro, em janeiro de 2019, até o mês de março de 2021, quando o chanceler acidental é levado a se demitir, por absoluta falta de condições políticas para continuar no cargo, mesmo dispondo de todo o apoio do presidente (e contra a sua vontade): o que ocorreu, de fato, foi um veto praticamente unânime dos senadores à sua continuidade na função, sob ameaça de paralisia dos trâmites legislativos interessando ao Itamaraty.

Na verdade, esse período pode se estendido para trás e para frente, no seguinte sentido: os preparativos para “revolucionar” a diplomacia e a política externa do Brasil começaram bem antes, em articulações no seio de um grupo restrito de amadores (de fato, ineptos completos) em temas de política externa, de relações exteriores do Brasil e de política internacional, em geral, que tinham a real intenção de alterar as bases fundamentais de atuação das relações externas do Brasil com base em concepções simplórias, em teorias conspiratórias, em ideologias de extrema-direita, ou mais propriamente reacionárias, que se vinculavam à visão do mundo de ultra conservadores dos Estados Unidos e, mais especialmente, ao anticomunismo primário e exacerbado do polemista que passa por guru presidencial, Olavo de Carvalho.

Esse pretenso intelectual cercou-se de um pequeno grupo de fiéis devotos, alguns até fanáticos de seu anticomunismo fundamentalista, passando eles a preparar o que eu chamei de “assalto ao Itamaraty” desde 2016. Pouco depois eles ganharam a adesão de um solitário diplomata profissional, com articulações mais efetivas estabelecidas no decorrer de 2018, quando esse adesista oportunista passou a trabalhar intensamente, ainda que de modo clandestino, em prol do candidato que se apresentou nas eleições daquele ano. Imediatamente após a vitória do candidato de extrema-direita, o chanceler designado passou a atacar de forma vergonhosa o Itamaraty e os diplomatas profissionais, como se todos eles tivessem sido coniventes com o “marxismo cultural”, com o lulopetismo e outros desvios esquerdistas, ou até progressistas, na visão dos alucinados engajados em sua errática campanha.

Mas o período também pode ser estendido para a frente, ou seja, sem esse corte definitivo na demissão do chanceler acidental, em 29 de março de 2021, na medida em que os responsáveis pelo “furacão” iniciado em 2018 continuam de certo modo no comando da política externa, detendo talvez algumas alavancas de atuação no próprio Itamaraty, o que assegura a sobrevivência, pelo menos parcial, de algumas das concepções olavistas ou “bolsonaristas” (as aspas se justificam pelo fato de que o próprio presidente tem demonstrado uma incapacidade notória para compreender o mundo exterior e de situar o Brasil nesse contexto). Trata-se de um quadro ainda preocupante, ainda que as “alucinações exteriores” do chanceler acidental não mais disponham da base operacional que lhe foi atribuída desde novembro de 2018. O personagem em questão pretende ainda continuar influenciado, senão a política externa, pelo menos um número indeterminado de seguidores, com o objetivo de manter o Brasil vinculado à visão do mundo ultraconservadora de líderes estrangeiros.

Confirmo que este livro e todos os demais do ciclo impropriamente chamado de “bolsolavismo diplomático” não deveriam existir pelo fato de que eles nunca integraram meus projetos definidos de trabalho; eles estão, de alguma forma, afastados de minhas concepções relativamente bem organizadas de produção intelectual: pesquisa cuidados, leitura atenta e extensa da documentação e da literatura secundária, planejamento e inserção num campo definido de elaboração especializada, redação sistemática de acordo a um esquema ou plano previamente estabelecido, culminando numa eventual publicação, se por acaso o resultado final encontra alguma editora complacente (embora muitos deles tenham adotado a via mais fácil e acessível do e-book). Em todo caso, os produtos deste ciclo não planejado surgiram sempre como reação momentânea à obra de destruição que estava sendo perpetrada não só no Itamaraty, mas contra o próprio Brasil, representada pela deformação completa de nossas tradições diplomáticas, assim como da própria política externa, com efeitos prejudiciais aos interesses nacionais, pois que respondendo unicamente às concepções equivocadas sobre o mundo e o Brasil, sob a influência de ideologias esquizofrênicas.

Foi assim que surgiu o primeiro do ciclo, Miséria da diplomacia: a destruição da inteligência no Itamaraty, em meados de 2019, praticamente de improviso, feito com base em notas e comentários que passei a fazer ao contemplar – já “liberado” de qualquer função na Secretaria de Estado desde o início daquele ano – as várias loucuras que vinham sendo perpetradas na (e contra uma) instituição das mais respeitadas na burocracia federal e até admirada por vizinhos e outros parceiros externos, dada a qualidade de seu capital humano. Para ser mais preciso, o que mais me angustiava não era tanto os muitos ataques ao Itamaraty – um verdadeiro sequestro da instituição, como adotado no título deste quarto livro do ciclo –, uma vez que considero a diplomacia profissional perfeitamente capaz de recuperar sua alta qualidade no desempenho das funções corriqueiras, uma vez libertada dos “novos bárbaros” que a dominaram temporariamente. O mais preocupante foi constatar o prejuízo real, ou potencial, aos interesses nacionais, em decorrência das ações, omissões e deformações que estavam sendo infringidas às políticas setoriais vinculadas à interface externa da ação do Estado (em comércio, em meio ambiente, em direitos humanos, em integração, enfim, um pouco em todas as vertentes da ação internacional do país).

Ao início, se tinha a esperança de que pressões de militares, de representantes do agronegócio, dos interesses econômicos em geral, assim como da própria classe política, seriam capazes de corrigir, coagir, restringir, fazer retroceder as alucinações exteriores mais estapafúrdias, mas não foi o que ocorreu; ao contrário, recalcitrantes ou divergentes do governo foram sendo eliminados ou afastados e o Brasil parecia navegar satisfeito numa aliança com um punhado diminuto de “aliados” da direita conservadora, em especial, numa submissão vergonhosa ao dirigente bizarro do principal parceiro hemisférico. Estabeleceu-se uma virtual unanimidade na opinião pública contra uma política externa esquizofrênica, o que me levou a prosseguir no meu combate solitário contra a diplomacia “bolsolavista”. Na verdade, esse conceito define muito mal o verdadeiro caos que passou a vigorar na política externa brasileira e na ação de uma diplomacia isolada do mundo, dos interesses nacionais do Brasil e do próprio corpo profissional do Itamaraty.

Dei prosseguimento, portanto, ao segundo volume do ciclo, O Itamaraty num labirinto de sombras (2020), quando já estávamos numa espécie de “revolução cultural” dentro do Itamaraty, ao se confirmar a emergência da irracionalidade oficial, em grande medida identificada com o espectro do globalismo maléfico aos interesses nacionais, ao que respondi com o meu “manifesto globalista”. Como se acentuassem os comportamentos mais esquizofrênicos do chanceler acidental, manifestamente submisso a chefes notoriamente ineptos na condução das relações exteriores do país, empreendi pouco depois o terceiro volume do ciclo, Uma certa ideia do Itamaraty (2020), já focado num trabalho de reconstrução da política externa e de restauração da diplomacia profissional.

Informo agora que, paralelamente a essa exposição pública – de certo modo inédita nos anais de nossa diplomacia sempre tão bem comportada –, tomei a iniciativa de empreender um exercício de consulta, que conduzi de modo bastante discreto junto a colegas de carreira, tendente a constituir as bases de um planejamento para uma diplomacia pós-bolsonarista. Não logrando, contudo, obter as reações esperadas, dei por encerrado esse exercício pouco tempo depois, com apenas algumas contribuições recebidas. É verdade que já estávamos em meio à pandemia da Covid-19, quando o ritmo normal de trabalho ficou bastante alterado, tanto na Secretaria de Estado, quanto nos postos no exterior e toda a Casa se movimentava para, no contexto de fechamento de voos e aeroportos, trazer de volta ao Brasil milhares de turistas brasileiros espalhados nos quatro cantos do mundo.

Todos esses livros, assim como o quinto (em fase de preparação para publicação), têm seus sumários reproduzidos num dos apêndices da presente obra, e estão relativamente acessíveis aos interessados em plataformas de interação acadêmica ou no formato Kindle; a lista quase completa de meus livros figura num outro apêndice, assim como várias dezenas de ensaios, notas e artigos encontram-se livremente disponíveis em minhas ferramentas de comunicação social. Este é, portanto, o “último” livro de um ciclo que não deveria – salvo desastre maior – ter continuidade em meu planejamento normal de trabalhos, com diversos outros projetos parados em meu pipeline de contínua produção intelectual. Devo agora uma explicação para a mudança do título originalmente concebido – O Itamaraty sob ataque –, que já tinha sido anunciado nessas redes de comunicação social. Meu colega e amigo, Miguel Gustavo de Paiva Torres, de quem pude examinar sua tese do Curso de Altos Estudos do Instituto Rio Branco sobre o chanceler do Império Paulino José Soares de Souza quando ele era conselheiro candidato à promoção a ministro de segunda classe da carreira, foi quem fez a sugestão, ao ler o sumário previamente anunciado numa de minhas postagens. Ele escreveu-me o seguinte:

 

Sobre o seu novo livro trago sugestão para sua avaliação: Itamaraty Sequestrado. Vejo a situação mais como a de um sequestro político da Casa do que propriamente um ataque.

 

Agradeci, portanto, ao Miguel Gustavo, passando a adotar a sua sugestão, o que lhe dá direito, senão ao copyright do título, pelo menos a moral rights em relação a um conceito que efetivamente identifica o estado de submissão a que foi submetido o Itamaraty nos dois anos e meio que precederam ao mês de abril de 2021. Com efeito, o que ocorreu no Brasil, e para a sua diplomacia profissional, entre o final de 2018 e o início de 2021, não encontra precedentes em nossa história bissecular, e espera-se que não deixe um legado ou alguma semente contaminada pelas distorções registradas nesse insólito período. Aproveito para informar que a tese de CAE de Miguel Gustavo, intitulada O Visconde do Uruguai e sua atuação diplomática para a consolidação da política externa do Império, foi publicada em 2011, com um belo prefácio do grande mestre Antonio Paim, pela Fundação Alexandre de Gusmão, encontrando-se disponível na biblioteca digital da Funag.

Assim, salvo “necessidades” de alguma outra oportunidade de “combate político”, pretendo doravante dedicar-me a trabalhos mais consistentes no plano conceitual, deixando de lado estes escritos que só emergiram em face de desafios inéditos em nossa trajetória diplomática. Este trabalho de resistência intelectual ao “sequestro” operado contra o Itamaraty, e ao próprio Brasil, não foi isento de custos pessoais e funcionais, como sabem todos aqueles que acompanham minha produção intelectual e o meu mais recente ativismo (involuntário) nas redes de comunicação social, sempre com o objetivo de reagir aos despautérios e loucuras dos “novos bárbaros”. Coloquei essa missão de combate aos aloprados da “bolsodiplomacia” acima de meus interesses pessoais, pois que ainda me encontro no serviço ativo, embora sem qualquer função útil na instituição que é a minha desde o período final do regime militar.

Tal situação não é inédita, pois tenho certa experiência em ostracismos e estágios no limbo. Meu primeiro exílio, voluntário, ocorreu justamente durante a ditadura militar, quando completei minha formação acadêmica durante os anos de estudo intenso em universidades europeias. Depois, já na carreira, enfrentei algumas tribulações, pelo fato de nunca eximir de expressar meu pensamento, seja por escrito, seja diretamente em situações de processo decisório no desempenho de funções diplomáticas; mais impactante foi a longa “travessia no deserto” durante o período do lulopetismo diplomático, com o qual eu também mantinha minhas diferenças de visão diplomática e de prioridades na política externa.

Aproveitei aquele período para escrever alguns livros, a partir do bom ambiente de estudos e pesquisas da biblioteca do Itamaraty, o que nada mais era do que a continuidade da prática de frequentar bibliotecas, livrarias e arquivos, que sempre mantive nos mais diferentes países e universidades. É o que eu estaria fazendo atualmente, não fosse a quarentena forçada da pandemia, o que aliás me levou a um acréscimo de produtividade no trabalho intelectual, tanto pelo maior tempo disponível para leituras e escritos, como em virtude da disseminação quase alucinantes das interações pelas vias das ferramentas de comunicação social, que multiplicaram extraordinariamente os apelos e incentivos a debates virtuais. Tais novas “metodologias” de comunicação vieram para ficar, mesmo depois de passada a pandemia.

Ao retornar a meus trabalhos de pesquisa histórica e de reflexão comparativa sobre o processo de desenvolvimento brasileira no contexto mundial, ressalto que estarei sempre atento às “surpresas” – de qualquer tipo – que surgirem na frente da diplomacia brasileira e de sua política externa, assim como totalmente disponível para missões temporárias ou designações formais para as quais possa ser indicado. Tendo passado quatro décadas de minha vida no acompanhamento ativo de nossas relações internacionais, tanto no plano do estudo como no terreno prático, tenho prevista a elaboração de mais algumas obras com certo sentido de permanência. Não é certamente o caso desta aqui, ou das demais deste ciclo, que responderam apenas a um desafio da conjuntura. A bem refletir, porém, uma reflexão ponderada sobre “sobressaltos” institucionais, terremotos políticos ou bizarrices eventuais, como os que enfrentamos na presente fase, sempre oferecerá matéria prima para mais alguma obra inserida em nossa trajetória histórica, ainda que o desejo de todos nós é o de que, assim como o experimento do bolsolavismo diplomático não encontra precedentes nesse itinerário, ele não tenha sucedâneos no futuro previsível.

Com isso, dou por temporariamente encerrado este ciclo de esgrima intelectual contra a malta dos “novos bárbaros”, prontificando-me a voltar sempre quando novos desafios surgirem no horizonte das possibilidades políticas de um país em franco processo de transição para novas configurações institucionais. Vale!

 

 

Paulo Roberto de Almeida

Brasília, 9 de maio de 2021

 

A reflexão de Antonio Paim sobre o liberalismo brasileiro - Mano Ferreira entrevista Paulo Roberto de Almeida

A reflexão de Antonio Paim sobre o liberalismo brasileiro: Mano Ferreira entrevista Paulo Roberto de Almeida no canal do Livres no YouTube


A trajetória intelectual de Antonio Ferreira Paim, nascido na Bahia em 1927 e falecido em 30 de abril de 2021, é ímpar na cultura e na história das ideias políticas e filosóficas no Brasil. Após ter uma formação marxista, com curso de filosofia na Universidade do Brasil e depois na Universidade de Moscou, Paim realizou uma guinada política e filosófica que o levou ao liberalismo.
Neste #LivresEntrevista com o embaixador Paulo Roberto de Almeida, conselheiro acadêmico do Livres, analisamos aspectos centrais da obra de Antonio Paim: sua visão a respeito do patrimonialismo, os momentos decisivos da história brasileira e as condições sociais para a consolidação no país de modelos de Estado e sociedade compatíveis com o liberalismo, seja no campo econômico, com o capitalismo, ou no campo político, com a democracia liberal.
## Quem é o entrevistado? ##
Paulo Roberto de Almeida é diplomata de carreira desde 1977, autor de diversos livros, doutor em Ciências Sociais, ex-diretor do Instituto de Pesquisa de Relações Internacionais e conselheiro acadêmico do Livres. Autor de diversos livros, entre eles o e-book
## Quem é o entrevistador? ##
Mano Ferreira é jornalista e especialista em comunicação política, cofundador e diretor de comunicação do Livres. Alumni da International Academy for Leadership da Fundação Friedrich Naumann Pela Liberdade, da Alemanha. Também é cofundador do Students For Liberty no Brasil.
## Sobre o quadro ##
O #LivresEntrevista é o quadro em que recebemos importantes especialistas para aprofundar a conversa a respeito das ideias liberais e dos principais temas em debate no Brasil e no mundo. Vídeos novos são publicados toda quarta-feira e em segundas-feiras alternadas.
## Sobre o Livres ##

O Livres é uma associação civil sem fins lucrativos que atua como um movimento político suprapartidário em defesa do liberalismo. Promovemos engajamento cívico e desenvolvimento de lideranças, projetos de impacto social e curadoria de políticas públicas para aumentar a liberdade individual no Brasil. 


quarta-feira, 2 de junho de 2021

Emergência energética - Adriano Pires (OESP)

 PESADELO COM A ENERGIA!


Adriano Pires
O Estado de S. Paulo, 29/05/2021

 Diagnóstico equivocado do governo tem promovido grandes volatilidades nos preços e pode levar a apagões.

Há algum tempo, temos procurado chamar a atenção sobre a necessidade de uma nova visão para o planejamento do setor elétrico. As nossas preocupações têm como alvo as tarifas crescentes, os subsídios e a segurança de abastecimento.

Faz tempo que cometemos erros recorrentes e temos tido a sorte de nos safar de apagões elevando as tarifas, sempre ajudados pela falta de crescimento econômico.

Temos um problema de potência e o planejamento do governo insiste na solução vinda das energias intermitentes e das linhas de transmissão. Diagnóstico equivocado que tem promovido grandes volatilidades nos preços e pode levar a apagões. Neste ano o pesadelo voltou e parece que de uma maneira mais forte.

No fim de maio os níveis de reservatório deverão ser de 31,7%, isso é pelo menos 4,6 pontos abaixo da mínima histórica. Em 2019 e 2020 choveu muito em fevereiro, março e abril, com isso os reservatórios ainda aumentaram o nível. O que não foi o caso em 2021. Se considerarmos a média dos últimos 16 anos, já no fim de agosto poderemos estar com o nível abaixo de 20% e poderemos alcançar valores muito abaixo de 10% a partir de outubro. Isso tem levado a um estresse na operação do sistema de armazenamento do Sistema Interligado Nacional (SIN).

Portanto, precisamos tomar providências de curto prazo e soluções estruturais devem ser implementadas para evitar pesadelos futuros. Mas agora estamos em urgência. E o que fazer no curto prazo? Primeiro, deixar que os preços indiquem a real situação do setor elétrico. Na realidade, hoje nem o PLD a R$ 250/MWH nem a bandeira vermelha nível 1 retratam a realidade do setor elétrico.

O correto é o PLD no seu nível máximo e deveríamos estar em bandeira vermelha nível 2 desde o início de abril. Além do mais deveríamos, também, já estar despachando todas as usinas não hidrelétricas na capacidade máxima, inclusive as a diesel. Como foi feito em 2014/2015 quando tivemos um cenário parecido com o atual.

E a médio e longo prazos. O que fazer? A MP da Eletrobrás (1031) ao propor a implantação das térmicas a gás, com geração mínima de 70%, conta com mecanismos de financiamento de longo prazo, diluindo seu custo no tempo, trazendo os seguintes principais benefícios:

– Redução das despesas com o acionamento das térmicas a óleo e diesel, sistematicamente despachadas, fora da ordem de mérito de custo, para garantia energética;

– Elevação dos níveis dos reservatórios, aumentando sobremaneira a garantia do suprimento de energia e potência, permitindo o uso racional dos reservatórios, preservando a capacidade de atendimento não apenas do setor elétrico, como também do consumo humano, das atividades de lazer, indústria e agricultura;

– Redução do impacto das bandeiras na conta do consumidor cativo e maior estabilização dos preços da energia a curto prazo e médio prazo, permitindo que o modelo de formação de preços de curto prazo dê o sinal econômico mais próximo da realidade;

– Redução da necessidade de geração hidrelétrica para atendimento à demanda, porém com menor impacto financeiro, por causa de uma redução e menor volatilidade do PLD;

– Aumento da segurança elétrica, com a implementação de geração térmica próxima aos centros de consumo, deslocando os acionamentos de termoelétricas

A quem interessa a manutenção da atual situação do setor elétrico no Brasil
a óleo, muito mais caras, por motivos de energia ou restrição elétrica, seja em regiões remotas ou ainda para equacionar a oferta na ponta da demanda;

– Garantir a segurança do abastecimento possibilitando o contínuo avanço das fontes renováveis, intermitentes e sazonais, como eólica e solar;

– Dar uma proteção necessária ao crescimento econômico do País e a potencial eletrificação dos meios de transporte;

– Permitir a participação equilibrada de todos os consumidores, na estrutura de custo necessária a garantir o abastecimento de energia;

– Matriz elétrica mais limpa com a substituição de térmicas a óleo por gás natural.

A quem interessa a manutenção da atual situação do setor elétrico? Aos que se beneficiam com a alta volatilidade dos preços da energia e àqueles que querem manter a anomalia onde os pequenos consumidores subsidiam os grandes consumidores.

Nacionalismo e pandemia - Joseph Nye Jr

 Project Syndicate, Praga – 1.6.2021

COVID-19 Vaccines and the US National Interest

Nationalism is no way to confront a virus that is indifferent to nationality. Now that safe and effective COVID-19 vaccines are available, the US has four good reasons to lead a Marshall Plan-like effort to immunize the world's poor countries.

Joseph S. Nye, Jr.

 

Cambridge - A century ago, an influenza pandemic killed more people than died in World War I. Today, the COVID-19 pandemic has killed more Americans than died in all US wars since 1945. A big difference, however, is that science did not have a vaccine for the influenza virus back then, but now several companies and countries have created vaccines for COVID-19.

A number of wealthy democracies, including the United States and the United Kingdom, have vaccinated over half their adult populations and seen a dramatic reduction in the number of new cases and deaths. Other places, such as India, Brazil, and parts of Africa, have low vaccination rates and high rates of new cases and deathsThe Economist estimates that the pandemic’s true global death toll may be something like ten million people, or more than three times the official number reported by national authorities.

Given these grim statistics, should leaders of wealthy countries export vaccines and help vaccinate foreigners before they finish the job at home? When former President Donald Trump proclaimed “America First,” he was being consistent with democratic theory, according to which leaders are entrusted with defending and advancing the interests of the people who elected them. But as I argue in my book Do Morals Matter? the key question is how leaders define the national interest. There is a major moral difference between a myopic transactional definition, like that of Trump, and a broader, far-sighted definition.

Consider President Harry Truman’s espousal of the Marshall Plan after World War II. Rather than narrowly insisting that America’s European allies repay their war loans, as the US had demanded after World War I, Truman dedicated more than 2% of America’s GDP to aiding Europe’s economic recovery. The process allowed Europeans to share in planning the continent’s reconstruction and produced a result that was good for them, but that also served America’s national interest in preventing Communist control of Western Europe.

There are four major reasons why a Marshall Plan-like effort to vaccinate people in poor countries is in the US national interest. First, it is in Americans’ medical interest. Viruses do not care about the nationality of the humans they kill. They simply seek a host to allow them to reproduce, and large populations of unvaccinated humans allow them to mutate and evolve new variants which can evade the protections that our vaccines produce. Given modern travel, it is only a matter of time before variants cross national borders. If a new variant arose that was capable of by-passing our best vaccines, we would have to develop a booster targeted at the new variant and vaccinate again, which could lead to more fatalities and more strain on the US medical system, as well as lockdowns and economic damage.

Our values provide the second reason that a vaccine Marshall Plan is in America’s national interest. Some foreign policy experts contrast values with interests, but that is a false dichotomy. Our values are among our most important interests, because they tell us who we are as a people. Like most people, Americans care more about their co-nationals than foreigners, but that does not mean they are indifferent to the suffering of others. Few would ignore a cry for help from a drowning person because she calls out in a foreign language. And while leaders are constrained by public opinion in a democracy, they often have considerable leeway to shape policy – and considerable resources to influence public sentiment.

A third national interest, related to the second, is soft power – the ability to influence others through attraction rather than coercion or payment. American values can be a source of soft power when others see our policies as benign and legitimate.

Most foreign policies combine hard and soft power. The Marshall Plan, for example, relied on hard economic resources and payments, but it also created a reputation for benignity and far-sightedness that attracted Europeans. As the Norwegian political scientist Geir Lundestad has argued, the American role in postwar Europe may have resembled an empire, but it was “an empire by invitation.” A policy of helping poor countries by providing vaccines, as well as aiding the development of their own health-care systems’ capacities, would increase US soft power.

Finally, there is geopolitical competition. China quickly recognized that its soft power suffered from the origin story of COVID-19 in Wuhan. Not only was there lack of clarity about how the virus originated, but in the early stages of the crisis, Chinese censorship and denial made the crisis worse than necessary before its authoritarian lockdown proved successful. Since then, China has assiduously pursued COVID-19 diplomacy in many parts of the world.

By donating medical equipment and vaccines to other countries, China has been working to change the international narrative from one of fault to one of attraction. The Biden administration has been playing catch-up, announcing that it will release 60 million doses of AstraZeneca vaccine, as well as 20 million additional dozes of Pfizer, Moderna, and Johnson & Johnson vaccines. In addition, the administration has pledged $4 billion in funding for the World Health Organization’s COVAX facility to help poor countries purchase vaccines and supports a temporary waiver of intellectual property to help poor countries develop capacity.

In short, for four good reasons consistent with America’s history, values, and self-interest, the US should lead a group of rich countries in a plan to vaccinate the rest of the world now, even before the job is finished at home.

 

Joseph S. Nye, Jr. is a professor at Harvard University and author of Do Morals Matter? Presidents and Foreign Policy from FDR to Trump.