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quinta-feira, 2 de novembro de 2023

Grande estratégia e idiossincrasias corporativas: uma reflexão a partir da experiência de George Kennan (2012) - Paulo Roberto de Almeida

 Grande estratégia e idiossincrasias corporativas:

uma reflexão a partir da experiência de George Kennan

 

Paulo Roberto de Almeida

Brasília, 2409: 14 de julho de 2012

 

 

Lendo a biografia de John Lewis Gaddis, sobre o grande diplomata e historiador americano, que dominou a segunda metade do século XX, George F. Kennan: An American Life (New York: The Penguin Press, 2011), deparo-me com um trecho, relativo ao ano de 1943, quando Kennan era encarregado de negócios na legação dos Estados Unidos em Lisboa; negociações eram conduzidas na capital portuguesa para assegurar o uso, por forças americanas, dos Açores, como plataforma absolutamente indispensável para conduzir as operações europeias da Segunda Guerra Mundial em sua vertente norte-atlântica:

“[George Kennan] began to develop... a new sense of responsibility within the duties assigned to him: at several points over the next few years Kennan took risks that jeopardized his own Foreign Service career because he thought that the national interest demanded that he do so. Obliged to operate for the first time at the level of grand strategy, he found the rules oh his profession falling short. He chose, successfully but dangerously, to violate them.” [Loc 3387 of 18204 Kindle edition, Ó Amazon].

Gaddis informa ainda, na sequência dessa passagem, as circunstâncias em que Kennan decidiu assumir vários riscos em sua carreira, violando deliberadamente várias regras do jogo, tal como definidas por instituições excessivamente burocráticas ou muito conservadoras, tanto o Departamento de Estado quanto o comando das Forças Armadas, como se pode depreender desta transcrição adicional:

“During the Azores base negotiations [com o próprio Primeiro-Ministro português Antonio de Oliveira Salazar], Kennan violated at least four rules, any one of which could have him sacked from the Foreign Service. He exceeded his instructions in a conversation with a foreign head of government. He refused to carry out a presidential order. He lied, to another government, about the position of his own. And he went over the heads of his superiors in the State Department – as well as the secretary of war and the Joint Chiefs of Staff – to make direct appeal to the White House.” (Loc 3436 of 18204 Kindle edition, Ó Amazon).

 

Estas passagens chamaram-me obviamente a atenção, ou “struck a cord on me”, como diria o próprio Gaddis, provavelmente o maior historiador vivo da Guerra Fria e o único biógrafo autorizado de George Kennan. Explico por que, já que isso tem a ver com a mesma sensação de barreiras burocráticas e conservadoras, em assuntos que demandariam uma visão mais larga dos processos diplomáticos, que eu já enfrentei na carreira. Não querendo me comparar a George Kennan, possivelmente o maior especialista diplomático americano em assuntos russos que jamais existiu nos anais daquele serviço diplomático, mas eu também adquiri, ainda antes de ingressar no serviço diplomático, uma percepção histórica e estrutural de muitos dos temas que compõem, burocraticamente, a agenda diplomática corrente. 

Tendo começado a estudar os assuntos brasileiros desde muito cedo – compulsando uma bibliografia de nível universitário, ou de pesquisa especializada, ainda quando estava em meio aos estudos do ciclo médio – desenvolvi provavelmente de maneira muito precoce um cuidado com a análise do contexto, dos precedentes históricos, e dos impactos estruturais ou implicações políticas de cada um dos problemas com que me deparava em minhas leituras ou pela leitura dos jornais de maior qualidade em suas edições dominicais (invariavelmente o velho jornal conservador O Estado de São Paulo, ainda quando discordasse profundamente de seus editoriais, que julgava representativos das opiniões da “classe dominante”). Foram anos, em meados da década de 1960, em que eu lia os grandes mestres da teoria social brasileira, entre eles os representantes da “escola paulista de Sociologia” – que pouco depois se tornaria minha alma mater, ao ter ingressado no curso de Ciências Sociais da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP – e através dos quais eu filtrava minhas reações aos editoriais “reacionários” do Estadão, combinando todas essas leituras para refletir sobre os caminhos do desenvolvimento econômico e político brasileiro, no quadro das crises contínuas que agitavam o período que se tinha iniciado com o golpe de 1964, e que eu imaginava combater pela via do socialismo e de um governo comprometido com a “ditadura do proletariado”. 

Independentemente dessas ilusões e descaminhos ideológicos – que foram sendo corrigidos tão pronto eu deixei o país, no final de 1970, para conhecer o triste cenário do socialismo real do leste europeu e as nuances dos capitalismos realmente existentes na Europa, durante quase sete anos – eu adquiri, a partir desses hábitos juvenis de leitura, um sentido de abrangência analítica e de inserção contextual que me acompanharia pelo resto da vida, sobretudo no domínio profissional, quando ingressei na carreira diplomática, poucos meses depois de voltar da Europa em 1977. Mas o que isso quer dizer, no quadro desta seleção de trechos da biografia de Kennan por Lewis Gaddis? Explico-me agora mais detalhadamente. 

Ingressei no Itamaraty ainda na era militar, quando ainda pensava em derrubar o regime, embora não mais pela via das armas e sim pela via da pressão democrática. Tampouco pretendia converter o Brasil em uma nova Cuba ou uma nova China, como talvez fosse a intenção em meados dos anos 1960; mas o modelo ainda seria algo bem próximo do socialismo democrático europeu, que eu julgava bem mais propenso a empreender a correção das tremendas injustiças sociais em vigor no Brasil, desde sempre, do que, alternativamente, a visão mais pró-mercado que não tenho hesitação em defender atualmente. Nessa época, eu ainda era obrigado a escrever artigos com algum nom de plume, já que minhas “convicções radicais” provavelmente chocariam meus colegas e superiores diplomáticos – que eu considerava todos alinhados ao regime – e chamariam a atenção dos órgãos de segurança, especialmente ativos naquela conjuntura, quando a repressão física tinha amainado, mas o controle de inteligência continuava atento a todas as manobras da oposição ao governo militar.

Tendo iniciado minha carreira no Itamaraty por uma divisão secundária, a do Leste Europeu (então todo ele dominado pela União Soviética), pude distinguir-me rapidamente em alguns trabalhos analíticos, inclusive porque, ademais dos boletins da Radio Free Europe e da Radio Liberty – ambas financiadas pela CIA, obviamente – que líamos na DE-II, eu possuía um conhecimento interno, se ouso dizer, sobre o funcionamento desses regimes autoritários, já que tinha militado na esquerda marxista durante tempo suficiente para aprender – e apreender – todos os trejeitos vocabulares e as muitas peculiaridades políticas do mundo comunista. Recordo-me, em todo caso, de uma informação que preparei sobre o quadro político no leste europeu, em especial sobre a situação da Polônia, no imediato seguimento, em 1978, da surpreendente eleição do cardeal Karol Wojtila como o novo papa, de nome João Paulo II. Ao que parece, minha análise abrangente das implicações dessa escolha para todo o leste europeu e para o poder comunista foi devidamente apreciada pelos meus superiores, para ascender ao conhecimento do Gabinete do ministro, o que constitui, no Itamaraty, uma marca de distinção a dividir os assuntos que permanecem na “senzala”—como sempre foram depreciativamente chamados os serviços setoriais das divisões, no Anexo – e os que ascendem ao conhecimento da Casa Grande, como se designavam, respeitosamente, os dois gabinetes do Palácio. 

Não exatamente por esse episódio específico, mas talvez mais pelo meu jeito histórico-intelectual de interpretar cada iniciativa ou resposta do serviço diplomático brasileiro, em função de um contexto mais vasto, no tratamento dos assuntos da agenda corrente, fui sendo considerado um diplomata especial, ou diferente, talvez bizarro, em todo caso colocado num clube à parte, não necessariamente melhor, dessa tribo de elite dos servidores do Estado. De um lado, nunca tive que mendigar postos ou posições no curso da carreira, já que em geral recebia convites para servir em tal posto ou tal unidade da Secretaria de Estado; de outro lado, jamais me dediquei a “pescar” votos de colegas ou implorar apoio de chefes para ser promovido na escala funcional, o que ofenderia meus princípios pessoais, ou minha maneira de ser, mas que pode ter irritado muita gente da corporação. 

Tampouco pedia permissão para escrever à minha maneira – e não naquele burocratês diplomático que tanto desprezo – ou sequer me desculpava por pensar de forma muito diferente da maior parte dos colegas ou mesmo dos superiores, e mais de uma vez ousei contestar opiniões de chefes em reuniões de coordenação, quando os fundamentos de minha posição me pareciam suficientemente sólidos para levantar o dedo e exclamar – algumas vezes na estupefação dos colegas e alguns superiores – uma frase do tipo: “Não é bem assim [Fulano]!” Acho que isso talvez não tenha ajudado no curso ulterior, ou superior, da carreira. Já ao ingressar na carreira, revoltei-me contra a exigência, que sempre julguei absurda – e anticonstitucional, em todo caso violadora dos direitos individuais, que invariavelmente coloco acima dos interesses do Estado –, de ter de pedir permissão às autoridades pertinentes para contrair matrimônio com minha esposa: um abuso e uma indignidade, a que meu espírito anarquista jamais consentiu por princípio. Numa etapa intermediária, cansado do ritual de ter de pedir permissão para publicar que fosse uma simples resenha de livro sobre temas da diplomacia, deixei de submeter textos à apreciação superior, e passei a publicar o que julgava apropriado e conveniente (ainda que exercendo algum grau de autocensura no que era cabível dizer de público sobre tão augusta Casa e tão distinguido Serviço Exterior). 

De fato, se ouso julgar, agora, as características do serviço em prol do qual exerci meus talentos nas últimas três décadas e meia, eu diria que o Itamaraty tem uma cultura muito especial, em todo caso diferente das demais corporações a serviço do Estado. Confessadamente, eu nunca fui muito adepto das manias e trejeitos dos meus colegas diplomatas: trata-se de uma carreira ultra competitiva, com altas doses de autocontenção, marcada por dogmas de disciplina e hierarquia que nunca se encaixaram bem ao meu natural libertário, exigindo ainda certo enquadramento nos rituais internos para que essa competição seja bem sucedida no plano individual, ou seja, para que ela se reflita na progressão funcional, na atribuição de postos e outras distinções. Visivelmente, eu nunca pretendi me enquadrar no estilo de rigor. Sempre mantive meus hábitos de trabalho, em parte isolado, estudando e escrevendo, de outra parte falando com sinceridade aquilo que me parecia negativo do ponto de vista da pura racionalidade instrumental dos objetivos diplomáticos. Ainda que tal tipo de atitude possa suscitar admiração em certas áreas, acredito que essas não são as qualidades requeridas para se triunfar numa Casa que faz da obediência estrita aos superiores a pedra de toque para a inserção no inner circle dos premiados oficiais.

Tomando como base o que acima vai descrito, não tenho qualquer restrição mental em confessar que, em diversas ocasiões, dissenti das opiniões oficiais da Casa – ou seja, aprovadas em alguma instância superior – no tratamento de temas específicos ou na condução de algumas negociações para as quais eu me julgava especialmente preparado, em função, justamente, dos estudos que eu conduzia paralelamente à carreira, para aprofundar-me nos assuntos que me eram atribuídos. Uma atitude desse tipo não é fácil de ser assumida, quando se trata, não das preliminares para a formulação de uma posição negociadora, mas de instruções formais, consubstanciadas em telegrama da série, com base na qual a resposta invariável do diplomata obediente deve ser: “Cumpri instruções”, e o chefe do posto passa a relatar como ele se ateve fielmente às ordens emanadas da Santa Casa.

Pessoalmente, já passei por esse tipo de situação, envolvendo uma negociação internacional de um tratado multilateral. Tendo me ocupado do tema durante meses e meses, eu literalmente dominava o assunto, técnica e diplomaticamente, e as instruções formuladas em Brasília, de nítido corte tradicional, eram claramente inadequadas. Os argumentos que poderiam ser mobilizados em favor de teses diferentes ou alternativas, por mais racionais ou “probatórios” que sejam (com base numa análise histórica, nos dados da economia, numa visão de longo prazo), nem sempre são convincentes ou suficientes para “dobrar” o burocrata na outra ponta do processo ou até fazer com que a instituição como um todo se mova em outra direção. Esse tipo de situação pode ser terrível, pois aparentemente (ou concretamente) o diplomata em causa pode estar se colocando contra as instruções da sua instituição.

Não tive medo de fazê-lo, naquele momento preciso, assim como em outras circunstâncias posteriores. De certa forma, esse tipo de atitude me prejudicou, pois fiquei com fama de rebelde, de dissidente, de arrogante, de pretencioso “sabe-tudo” e outros qualificativos mais, que nem são do meu conhecimento. Se insisto em certas teses é, contudo, com base num estudo profundo das problemáticas das quais me é dado ocupar. Sou por excelência um estudioso compulsivo, e não costumo me dobrar a nenhum argumento de autoridade, e sim à autoridade do argumento. Numa casa “feudal”, como é o Itamaraty, isso é quase um crime de lesa-majestade.

Mas o assunto supera as atitudes individuais de um diplomata, para adentrar no terreno mais complicado das questões macro-políticas, ou se quisermos, no eterno debate sobre como interpretar o chamado “interesse nacional”, um conceito altamente difuso para permitir qualquer tipo de argumento não fundamentado ou especioso. Não vou tratar das bases epistemológicas do que, exatamente, constituiria o interesse nacional nos limites desta reflexão, mas vou tratar da questão no contexto da própria formação e educação dos diplomatas. Acredito, com base numa avaliação puramente subjetiva, que poucos diplomatas têm uma cultura econômica verdadeira, ou seja, o instrumental analítico de cunho histórico e econômico que poderia levá-los a analisar uma questão qualquer de política externa do ponto de vista daquilo que os economistas chamam de custo-oportunidade do capital, ou seja, a eficiência paretiana dos meios e fins, que não se restringe ao melhor emprego dos recursos, ou a um cálculo sobre o retorno dos investimentos, mas envolve todos os “fatores de produção” de um determinado assunto diplomático. Tudo, ou quase tudo, na diplomacia, é feito de forma muito politizada e, por vezes, de forma irracional, já que levando em conta circunstâncias imediatas e as preferências políticas de quem manda, não necessariamente os interesses de mais longo prazo da nação.

Teríamos inúmeros exemplos de decisões claramente absurdas, no contexto mais vasto das tradições diplomáticas brasileiras, tomadas em certo período, e que no entanto foram tomadas, ao arrepio de qualquer racionalidade administrativa ou mesmo política; eximo-me, por razões diversas, mas claramente compreensivas, de discorrer sobre elas neste momento. O fato é que, em momentos como esses, o ator em questão tem várias escolhas, todas elas difíceis: submeter-se passivamente a instruções que ele pode julgar prejudiciais ao país ou ao serviço, no contexto dos interesses de mais longo prazo; negar cumprimento e argumentar alternativamente ao que julga contrário a suas convicções ou avaliação do tema em apreço; afastar-se do processo, com prejuízo pessoal ou fricção funcional. 

Minhas próprias atitudes sempre foram pautadas em função de minha trajetória habitual de estudos e de busca de coerência lógica no processo decisório, esforçando-me por manter minha indispensável integridade intelectual, em face de eventuais adversidades momentâneas, que sempre julgo devam ser afrontadas com serenidade e com a dignidade funcional que devem guiar o comportamento de membros de uma corporação como esta à qual pertenço. Em tempos difíceis de submissão a vocações autoritárias essas atitudes cobram um preço por vezes difícil em termos pessoais, mas a coerência e a honestidade na defesa de certos princípios, que reputamos mais elevados do que a acomodação servil, e a consciência de se estar defendendo causas mais altas do que as escolhas sectárias do momento constituem os prêmios mais gratificantes que se possa ter num itinerário de vida. 

Vale persistir, como aliás demonstrou o próprio George Kennan, ao abandonar a carreira diplomática, para ingressar numa categoria à parte da história intelectual de seu país, como um grande pensador das relações internacionais dos Estados Unidos. Sem aspirar a tanto, e sem renunciar a uma carreira que me trouxe tantos benefícios intelectuais e pessoais, vou persistir na defesa da coerência com o livre pensamento mesmo nos tempos sombrios e tristes de um outro regime autoritário.


Paulo Roberto de Almeida

Brasília, 2409: 14 de julho de 2012.

Postado no blog Diplomatizzando (http://diplomatizzando.blogspot.com.br/2012/07/uma-reflexao-baseada-em-george-kennan.html).

Postado novamente no Diplomatizzando em 4/01/2016 (link: http://www.diplomatizzando.blogspot.com.br/2016/01/george-kennan-era-um-contrarianista.html).

 

sexta-feira, 15 de outubro de 2021

Mini-reflexão sobre a opção pelo declínio: Brasil e Argentina - Paulo Roberto de Almeida

 Mini-reflexão sobre a opção pelo declínio: Brasil e Argentina

 

 

Paulo Roberto de Almeida

(www.pralmeida.orghttp://diplomatizzando.blogspot.com)


 

Quando sociedades resolvem se suicidar, elas fazem um pouco como Argentina e Brasil, independentemente que seja pela via da “esquerda” ou da “direita”, o que não tem nenhuma importância nesses casos de nações que resolvem entregar seus destinos respectivos a líderes supostamente salvacionistas que, paradoxalmente, só aprofundam o processo de decadência. 

O Brasil, com características próprias, exibe o mesmo itinerário que conduziu a Argentina a mais de 80 anos de declínio continuo e, o que é pior, evitável mas incontornável: o caminho das não-reformas, o da entrega de seus respectivos destinos a elites medíocres, a preservação da não-educação, do desprezo pela cultura sofisticada, a continuidade da corrupção política e também nos meios empresariais, enfim, a preservação de um ambiente de negócios que é totalmente antiempreendedor e nefasto para o investimento estrangeiro e para a inserção global. 

Sinto dizer, mas o Brasil é um país totalmente preparado para não crescer, para vegetar na mediocridade imobilista durante certo tempo mais. Quanto tempo? Impossível dizer, mas o suficiente para deixar uma ou duas gerações acostumadas à mediocridade, assim como ocorreu, e ainda ocorre, com a Argentina, e isso independentemente de serem introduzidos sinais exteriores, e superficiais, de “modernidade”.

Na verdade, o Brasil se arrasta letargicamente, há duzentos anos em direção a um futuro medíocre: delongado na extinção do tráfico escravo e da própria escravidão, retardado na construção de um sistema de educação de massas de boa qualidade, nunca fez reforma agrária de verdade, e tampouco empreendeu uma revolução industrial – nossa industrialização se fez aos saltos, oportunistas e descontínuos, sem conexões com cadeias de valor internacionais, o que também é devido a nosso nacionalismo entranhado e ao nosso persistente protecionismo que só serve a empresários rentistas – e nunca soube corrigir as taras sempre presentes do mandonismo e do patrimonialismo.

Como querem, agora, que o Brasil seja uma nação próspera e um país desenvolvido? Vai ser difícil, na ausência de um diagnóstico correto de nossos males e de uma disposição clara para adotar as prescrições adequadas em função da realidade e para empreender as reformas necessárias. Para isso seria preciso ter uma visão clara dos desafios e coragem para superá-los, o que requer estadistas, não liderança medíocres como as que temos atualmente.

Sinto ter de anunciar: bem-vindos a um horizonte de declínio e de conformidade com a estagnação secular. Já aconteceu antes, com outras nações; agora é a nossa vez.

 

Paulo Roberto de Almeida

Brasília, 3832, 02 de janeiro de 2021


quinta-feira, 3 de junho de 2021

A reflexão de Antonio Paim sobre o liberalismo brasileiro - Mano Ferreira entrevista Paulo Roberto de Almeida

A reflexão de Antonio Paim sobre o liberalismo brasileiro: Mano Ferreira entrevista Paulo Roberto de Almeida no canal do Livres no YouTube


A trajetória intelectual de Antonio Ferreira Paim, nascido na Bahia em 1927 e falecido em 30 de abril de 2021, é ímpar na cultura e na história das ideias políticas e filosóficas no Brasil. Após ter uma formação marxista, com curso de filosofia na Universidade do Brasil e depois na Universidade de Moscou, Paim realizou uma guinada política e filosófica que o levou ao liberalismo.
Neste #LivresEntrevista com o embaixador Paulo Roberto de Almeida, conselheiro acadêmico do Livres, analisamos aspectos centrais da obra de Antonio Paim: sua visão a respeito do patrimonialismo, os momentos decisivos da história brasileira e as condições sociais para a consolidação no país de modelos de Estado e sociedade compatíveis com o liberalismo, seja no campo econômico, com o capitalismo, ou no campo político, com a democracia liberal.
## Quem é o entrevistado? ##
Paulo Roberto de Almeida é diplomata de carreira desde 1977, autor de diversos livros, doutor em Ciências Sociais, ex-diretor do Instituto de Pesquisa de Relações Internacionais e conselheiro acadêmico do Livres. Autor de diversos livros, entre eles o e-book
## Quem é o entrevistador? ##
Mano Ferreira é jornalista e especialista em comunicação política, cofundador e diretor de comunicação do Livres. Alumni da International Academy for Leadership da Fundação Friedrich Naumann Pela Liberdade, da Alemanha. Também é cofundador do Students For Liberty no Brasil.
## Sobre o quadro ##
O #LivresEntrevista é o quadro em que recebemos importantes especialistas para aprofundar a conversa a respeito das ideias liberais e dos principais temas em debate no Brasil e no mundo. Vídeos novos são publicados toda quarta-feira e em segundas-feiras alternadas.
## Sobre o Livres ##

O Livres é uma associação civil sem fins lucrativos que atua como um movimento político suprapartidário em defesa do liberalismo. Promovemos engajamento cívico e desenvolvimento de lideranças, projetos de impacto social e curadoria de políticas públicas para aumentar a liberdade individual no Brasil. 


terça-feira, 2 de março de 2021

Dois anos do terceiro ostracismo, começo de uma nova travessia do deserto - Paulo Roberto de Almeida

Dois anos do terceiro ostracismo, começo de uma nova travessia do deserto

 Paulo Roberto de Almeida 

 Fazem exatamente dois anos que o chanceler acidental mandou me exonerar da direção do IPRI, função que eu exercia desde agosto de 2016, depois de 13 anos e meio de uma longa travessia do deserto sob o lulopetismo, que foi uma espécie de terceiro ostracismo, depois de meu autoexílio sob o regime militar, nos anos de chumbo da ditadura repressora, e de alguns entreveros na carreira, pela minha mania de pretender expressar meu pensamento numa instituição basicamente feudal. Sempre assumi os custos de pensar com minha própria cabeça e de expressar meu pensamento, a despeito da disciplina rígida da diplomacia profissional.

Não sei quanto tempo durará este novo ostracismo e não tive tempo ainda de redigir algo a respeito. Isto virá em algum momento.

Por isso tomo a liberdade de reproduzir um texto que produzi ao final do meu segundo ostracismo, quando recém começava a trabalhar no IPRI. Um relatório que produzi sobre meu trabalho naquela instituição de pesquisa pode ser consultado neste arquivo: 

3383. “Relatório de Atividades como Diretor do IPRI de 2016 a 2018”, Brasília, 24 dezembro 2018, 27 p. Organizado segundo o modelo próprio, usando dados do modelo adotado no IPRI, eliminando alguns eventos, incluindo outros. Total de eventos: 2016=38; 2017=74; 2018=102; total=214. Disponibilizado na plataforma Research Gate (DOI: 10.13140/RG.2.2.11298.89288; link:https://www.researchgate.net/publication/329905640_Relatorio_de_Atividades_Gestao_do_diretor_do_IPRI_Paulo_Roberto_de_Almeida) e em Academia.edu (link: https://www.academia.edu/s/e66d6c1639/relatorio-do-ipri-diretor-paulo-roberto-de-almeida-2016-2018); anunciado no blog Diplomatizzando (25/12/2018; link: https://diplomatizzando.blogspot.com/2018/12/ipri-meu-relatorio-de-atividades-2016.html).

Reproduzo abaixo o que escrevi em dezembro de 2016, copiado e divulgado novamente dois anos depois: 

Uma longa travessia do deserto: testemunho pessoal - Paulo Roberto de Almeida

Alguns poucos meses depois do término de uma longa travessia do deserto, que durou praticamente 14 anos – o dobro de meu primeiro exílio, sob a ditadura militar –, eu escrevi um pequeno testemunho pessoal, que alguém ainda relembrou recentemente, ao buscar esse texto na plataforma Academia.edu. Eis a ficha do trabalho: 

3066. “Como atravessar o deserto (e permanecer digno ao fim e ao cabo)”, Brasília, 18 dezembro 2016, 7 p. Divulgado no blog Diplomatizzando(link: http://diplomatizzando.blogspot.com.br/2016/12/como-atravessar-o-deserto-e-permanecer.html) e disponibilizado na Academia.edu (link: http://www.academia.edu/30511412/3066_Como_atravessar_o_deserto_e_permanecer_digno_ao_fim_e_ao_cabo_2016_).

Transcrevo-o novamente aqui, desta vez acompanhado dos comentários que recebi de amigos, colegas e novos leitores.
Paulo Roberto de Almeida 


Como atravessar o deserto (e permanecer digno ao fim e ao cabo)

Paulo Roberto de Almeida
 [Memórias, balanço]

Como sabem muitos dos meus colegas e amigos, certamente todos os inimigos – e até pessoas que desconheço, com as quais não tenho relações, mas que acompanharam meus escritos e minha trajetória ao longo da última década –, acabo de atravessar, talvez não inteiramente, um longo deserto de atividades e funções, justamente naquela que deveria ser (e foi assim nos primeiros 25 anos de carreira), minha ocupação principal: a diplomacia. A travessia não terminou ainda, pois que ainda não retornei às atividades que caracterizam a carreira: representação, informação, negociações. Atualmente, mais exatamente, a partir de 3 de agosto de 2016, encontro-me numa atividade subsidiária, que é a de Diretor do Instituto de Pesquisa de Relações Internacionais, IPRI, um órgão assessor da Fundação Alexandre de Gusmão (Funag), junto com o Centro de História e Documentação Diplomática (CHDD), com sede no Palácio Itamaraty do Rio de Janeiro.
A longa travessia do deserto quer dizer, mais precisamente, que, desde o início do governo dos companheiros, em 2003, até meados do presente ano, não tive nenhuma função, não ocupei nenhum cargo, não desempenhei nenhuma atividade vinculada à área do serviço público federal para a qual fiz concurso, na qual me desempenhei desde o final de 1977, e à qual eu deveria, teoricamente, servir, inclusive por obrigações de direito administrativo, e mais não fosse, para simplesmente justificar o salário que eu recebia todo o mês desde aquela longínqua data treze anos e meio atrás (ainda que meus vencimentos tenham sido reduzidos ao mínimo, sem qualquer remuneração por desempenho de função justamente). À parte a irregularidade administrativa cometida pelo ministério ao qual estou vinculado, uma tão longa desvinculação do serviço ativo na diplomacia só poderia ser explicada por duas razões objetivas: 
1) eu seria, presumivelmente, um péssimo diplomata, um mau servidor público, um inepto funcionário de carreira, um trabalhador totalmente incompetente para ocupar qualquer cargo ou função na diplomacia lulopetista;
2) eu fui julgado incompatível com os objetivos e propósitos da dita diplomacia lulopetista, e assim considerado um dissidente, um opositor, um outcast, um funcionário totalmente inadequado, indesejado, um contrarianista, e um objetor declarado dos tais objetivos e propósitos da referida diplomacia, e por isso mesmo mantido à distância, como um desses leprosos da Idade Média, condenados a viver apartados da sociedade, um pestiferado, uma espécie de vírus qualquer, capaz de contaminar perigosamente mentes e vontades naquela Santa Casa toda ela devotada a cumprir os altos desígnios dos novos dirigentes da nação e da sua diplomacia.
Os que me conhecem, e até os que não me conhecem pessoalmente, mas sabem de meus escritos e publicações, saberão escolher a hipótese que convém, das duas opções colocadas acima. A mim, cabe apenas, neste curto texto, expor objetivamente o que foram esses anos de travessia do deserto, quase que um segundo exílio – depois daquele enfrentado durante o regime militar – com a particularidade de que este durou exatamente o dobro do primeiro, aquele voluntário, este totalmente involuntário, uma vez que eu estava pronto e disposto a trabalhar, apenas que fui obstado por uma barreira impenetrável de negações e tergiversações. Nem vou entrar em considerações sobre os aspectos subjetivos dessa longa travessia, como a destruição da minha carreira, pois isso faz parte dos imponderáveis funcionais a ela associados: nela se é, ou não, promovido, pela avaliação que fazem colegas e superiores de seu próprio desempenho – supondo-se que todo o processo de ascensão funcional se faça por mérito efetivo, e não pelo mais comum “quem indica, quem apoia” – e não se pode prejulgar que eu teria sido merecido promoção ao longo do período, pois essa é uma possibilidade, não uma certeza. Vou ater-me apenas à descrição factual do processo, como convém a um depoimento com finalidades unicamente descritivas.
Minha última designação para um cargo na carreira diplomática, e para uma função no quadro da Secretaria de Estado das Relações Exteriores tinha ocorrido em meados dos anos 1990, quando eu fui nomeado chefe da então Divisão de Política Financeira e de Desenvolvimento (temas de investimentos, finanças, acordos e negociações nessas áreas e assuntos correlatos, regionais, bilaterais e multilaterais). No final da década fui indicado para exercer o cargo de ministro-conselheiro na embaixada em Washington, a convite do embaixador Rubens Barbosa, com quem já havia trabalhado algumas vezes anteriormente. Foram quatro anos muito felizes na capital americana, onde aprendi enormemente um pouco sobre tudo, o que teoricamente faz do feliz ocupante do cargo um servidor habilitado a exercer qualquer função na Secretaria de Estado ou qualquer outro posto e missão da carreira, uma vez que em Washington se trabalha sobre praticamente todos os dossiês e assuntos de uma Secretaria de Estado. 
Ao cabo da experiência, e já com intenção de retornar ao Brasil, fui convidado pelo então Diretor do Instituto Rio Branco, nossa academia diplomática, para servir como coordenador do curso de mestrado em diplomacia, que tinha sido iniciado em 2001, e ao qual eu já estava associado como professor orientador de teses (tendo vindo ao Brasil de férias, em 2002, voluntária e especialmente para discutir suas teses com meus seis ou sete orientandos). Já estávamos no início de 2003, e o convite deve ter sido formulado entre o final de março e o começo de abril, ao qual respondi positivamente, a despeito de meu desejo primário de voltar a servir na Secretaria de Estado, tendo em vista, justamente, minhas habilidades nas mais diversas áreas da diplomacia econômica, em especial em suas vertentes comercial e financeira. Mas, como eu também tenho essa inclinação para as atividades acadêmicas, já tendo me desempenhado como professor do Instituto Rio Branco e da UnB (e de algumas outras instituições em caráter temporário), julguei que seria uma boa experiência didática e intelectual, possivelmente como passo preliminar para ocupar a própria chefia do IRBr, cargo para o qual eu me julgava plenamente habilitado e competente, inclusive para mudar algumas coisas ali existentes.
A surpresa, mas não a frustração imediata, veio poucos dias depois, quando o mesmo diretor que tinha formulado o convite telefonou-me de modo algo desconsolado, para dizer que, infelizmente, não poderia confirmar o convite porque o “secretário-geral do Itamaraty tinha outros projetos em mente”. Uma desculpa diplomática, digamos assim, pois imaginei imediatamente, e realisticamente, que o dirigente em questão se opunha a que eu fosse trabalhar numa área que ele provavelmente julgava de extrema importância para o futuro da diplomacia na gestão lulopetista que então se iniciava, e que prometia ser uma “ruptura com tudo o que havia antes no Brasil” (como de fato foi, e como descobrimos, para o bem e para o mal, na sequência do regime celerado). Assim foi que permaneci por mais alguns meses em Washington, até surgir uma outra função ou cargo, em Brasília ou em qualquer missão ou posto no exterior. Mas preocupado com arranjos familiares – término na universidade do filho mais velho, Pedro Paulo – e necessidade de decidir quanto a renovação de aluguel e outras providências práticas, ou o próprio fato que eu já me aproximava dos quatro anos no posto, levaram-me a tomar uma atitude proativa nesse processo, tirando mais alguns dias de férias para tentar resolver em Brasília minhas atribuições ou destino futuros. 
Na Secretaria de Estado, onde cheguei justo no momento em que o chanceler único e resplandecente do lulopetismo proclamava a necessidade de os diplomatas “vestirem a camisa do governo” – o que era de certa forma surpreendente, numa carreira que se orgulha de dizer que serve ao Estado, mais do que aos governos, como tinha já sintetizado um século antes o Barão do Rio Branco – eu fui finalmente apresentado ao quadro formal e realista de minha condição no novo governo: não havia nada previsto para mim na Secretaria de Estado, e a administração não estava removendo para Brasília ministros que não tivessem já uma função definida, pois já havia muitos, como fui informado, que estavam sem funções na Casa, situação a que vulgarmente se dava o nome de DEC, não o Econômico, mas o “Departamento de Escadas e Corredores”. O que me foi oferecido foi ficar mais tempo em Washington, ou negociar algum outro posto, ou seja, partir como embaixador comissionado em algum posto perdido em continentes longínquos (isso imaginei eu, em função das “boas” disposições dos meus interlocutores para comigo, que não preciso indicar quem fossem). 
Não havia como não concluir que havia um veto em curso ao meu nome, para qualquer função na Secretaria de Estado, e eu já deveria ter imaginado as razões desse veto. Eu sempre manifestei minhas posições e opiniões sobre tudo e qualquer coisa da carreira diplomática e das posturas do Brasil em política externa, e nunca escondi de ninguém o que pensava de tudo isso, aliás expresso em dezenas de artigos publicados e, nessa altura, em pelo menos, seis livros editados por diferentes editoras. Minhas ideias sobre o novo governo lulopetista estavam por sinais disponíveis em meu site e em blogs e veículos diversos do mundo acadêmico, tendo sido publicado, já no início do governo lulopetista, um artigo meu na revista Sociologia e Política (da UFPR), no qual eu dizia, claramente, que o PT era um mero partido esquerdista tipicamente latino-americano – ou seja, socialista, anti-imperialista e antiamericano – mas que, a despeito disso, a política externa e a diplomacia não seriam significativamente alteradas, ou seja, haveria mais continuidade do que ruptura nas relações internacionais do Brasil. Imagino, mas já retrospectivamente, que essa última afirmação, arriscada em si mesma, deva ter deixado mais de um companheiro irritado, e provavelmente seus auxiliares diplomáticos comprometidos com a gloriosa missão de mudar tudo o que existia antes, inclusive e principalmente na diplomacia. 
O fato é que as portas estavam fechadas para mim na Secretaria de Estado, e assim permaneceram durante todo o regime lulopetista, ou seja, exatamente treze anos e meio, ao longo dos quais enfrentei, como disse, um deserto quase interminável. Mas, paradoxalmente, fui convidado, por um dos próceres mais importantes do novo regime, para trabalhar no Núcleo de Assuntos Estratégicos da Presidência da República, dirigido justamente por um dos membros da troika que assessorava o novo demiurgo nos assuntos mais importantes do governo salvacionista. Não preciso me estender agora – tanto porque pretendo escrever a respeito mais detalhadamente no futuro – sobre os três anos durante os quais eu me desempenhei em funções que eu imaginava importantes do ponto de vista do planejamento governamental, mas que os companheiros pretendiam transformar numa espécie de “revival” do dirigismo geiseliano sobre a economia e a política no Brasil. Depois da saída do governo do grão-petista que dirigia o NAE, eu me desliguei daquelas funções e me apresentei novamente na Secretaria de Estado, no final de 2006, disposto a assumir quaisquer funções que me fossem oferecidas para trabalhar pela Casa e no Estado (bem menos, já pensava eu, por um governo que se tinha revelado inerentemente corrupto, inepto e incorrigível). Não preciso dizer que encontrei o mesmo quadro de tergiversações e de embromações que já se tinha manifestado três anos antes. 
Em síntese: nada me foi oferecido como funções ou cargos na Secretaria de Estado. Mas, corrijo: a chefia de gabinete do então ministro ativo e altivo chegou a oferecer-me três cargos para posse imediata, talvez sem saber que meu nome já tinha entrado no rol daqueles seres condenados a um dos círculos do inferno lulo-dantesco. Aceitei um dos cargos, mas depois nada, ou seja, não aconteceu nada, quando então descobri que não apenas o SG, mas igualmente o chefe da Casa tinha objeções ao meu nome. Obtive a confirmação disso logo depois, quando o próprio titular reagiu negativamente a uma abordagem fortuita que lhe fiz, numa recepção de fim-de-ano no Clube das Nações, ao manifestar-lhe minha intenção de voltar à Casa: ele simplesmente me disse, acerbamente, que “minha entrevista [que havia dado pouco antes ao Estadão sobre a “construção intelectual” do Bric] não tinha ajudado em nada”, e virou as costas para mim. Nunca mais falei com o personagem, hoje na tropa de choque, junto com o mesmo SG, do chefão mafioso, ou seja, o pelotão de defesa de um dos maiores bandidos da política brasileira (que já conheceu vários, mas nenhum maior). 
A bem da verdade, o mesmo chanceler altivo chegou a oferecer-me a chefia de uma embaixada no exterior, poucos meses depois, ao que respondi negativamente, por razões puramente familiares, mas agradecendo a concessão (que obviamente deveria ser considerada como um afastamento providencial de um opositor moderado das políticas esquizofrênicas dos lulopetistas na frente diplomática). Não preciso dizer que, a partir daí, minha carreira simplesmente terminou, passando a amargar vários anos adicionais de “DEC”, com imensos prejuízos em termos profissionais, familiares e financeiros. Não obstante, persisti, mesmo no deserto a que estava relegado, na mesma atitude que sempre foi a minha: ler, refletir, escrever, eventualmente publicar, aquilo que julgava correto de um ponto de vista meramente epistemológico, ou seja, o resultado de uma reflexão própria, independente, sobre questões da política internacional, da diplomacia brasileira, de nossas posturas em política externa, unicamente com o espírito acadêmico que sempre foi o meu.
De certa forma, devo agradecer a meus “algozes” a oportunidade que me deram de aprofundar essas pesquisas, ideias, reflexões e escritos, pois ao me obrigarem a fazer da biblioteca do Itamaraty o meu escritório de trabalho, ofereceram-me tempo e lazer – ainda que com remuneração reduzida – para ampliar minha produção de caráter acadêmico. Nesse período, em nenhum momento tive acesso a qualquer forma de comunicação interna ao Itamaraty – telegramas ou quaisquer outros tipos de expedientes – e minhas únicas fontes de reflexão e de escrita eram as mesmas a que tinham acesso quaisquer acadêmicos e jornalistas, ou seja, material de imprensa e artigos e livros em disponibilidade pública. De certa forma, eu já fazia isso em qualquer época anterior, mas apenas nos momentos de lazer, no recesso do lar, no tempo livre do trabalho em dedicação integral. Ao permitirem “férias compulsórias”, meus “inimigos funcionais” me habilitaram a produzir um volume anormalmente elevado de artigos e livros, que eu provavelmente não teria tido condições de conduzir em uma situação normal de trabalho.
Talvez, outros diplomatas colocados nesse tipo de situação poderiam ter exibido algum comportamento depressivo, o que não foi absolutamente o meu caso: eu tinha forças morais para atravessar o deserto e, ao fazê-lo, pude dedicar-me a atividades acadêmicas que sempre fizeram parte de minha “segunda vida”, ao lado da carreira profissional. A escrita de livros, artigos e outros materiais – uma infinidade de comentários em blogs próprios ou de outros internautas – ocupou o restante do período em que estive no exílio lulopetista. Com duas pequenas alterações: em 2012, sem perspectiva de alteração em minha condição na Secretaria de Estado, aproveitei uma licença oficial para dedicar seis meses do ano a atividades docentes na Sorbonne; e de 2013 a 2015 aceitei um posto subalterno num pequeno consulado da costa leste dos EUA, expressamente com o objetivo de estudar mais, ler intensamente, viajar um pouco, e esperar o fim do regime lulopetista. Pensei que ele viesse nas eleições de outubro de 2014, e aí sim experimentei uma grande frustração, pois o poste lulopetista foi reconduzido à presidência, numa campanha de mentiras e de grandes falcatruas, como aliás esperado por todos os conhecedores dos meandros do regime.
Resolvi voltar ao Brasil no final de 2015, sem qualquer perspectiva de mudança no quadro geral da política podre do lulopetismo, e de fato permaneci no deserto por mais seis meses adicionais, sem quaisquer perspectivas concretas de retomada de algum cargo ou função na Secretaria de Estado. Retomei minhas atividades acadêmicas, mas no contexto do processo de impeachment, deslanchado no final daquele ano. Foram exatamente seis meses de golpes e contragolpes, de mais falcatruas e patifarias, até que, finalmente, os companheiros corruptos foram apeados do poder, em maio de 2016. Foi quando, finalmente, os novos barões da Casa se decidiram por extinguir o meu exílio, com um convite para exercer o cargo prestigioso, mas inoperante em termos de política externa, de Diretor do Instituto de Pesquisa de Relações Internacionais, o que de toda forma é uma distinção e um prêmio, na perspectiva de meus interesses intelectuais.
Foram ainda necessários mais três meses para que a função fosse efetivada, período no qual colaborei informalmente com a instituição, ao organizar seminários, livros e publicações, sem ainda dispor de título ou remuneração condigna. Por uma dessas ironias da história, meu cargo é o mesmo do qual tinha sido defenestrado meu colega dissidente – em outros termos – da política externa do ancien régime tucanês, e que por isso mesmo se tornou um mártir da causa lulopetista, e daí passou a ocupar a função a partir da qual me vetou para qualquer cargo na Secretaria de Estado. Não tenho nenhuma animosidade ao companheiro – em duplo sentido – e até pretendo convidá-lo para participar de atividades acadêmicas do IPRI, no que ele decidir aceitar, mas não pretendo, tampouco, deixar de fazer aquilo que fiz ao longo dos treze anos e meio do nefasto regime lulopetista: analisar, sintetizar, descrever e expor os absurdos teóricos e práticos perpetrados pelos companheiros apparatchiks e seus aliados diplomatas.
Não sei se devo julgar-me “reabilitado”, pois essa é uma avaliação que não me cabe pessoalmente fazer, mas sim devo confirmar que não pretendo mudar de atitude, que corresponde, finalmente, a uma postura intelectual que sempre mantive ao longo desses anos de “exílio”, e invariavelmente ao longo de uma vida dedicada ao estudo, à reflexão, e à exposição de minhas ideias sobre uma gama variada de assuntos: manter um ceticismo sadio sobre todas as questões de interesse público que sejam objeto de políticas, encarar interrogativamente qualquer postura acadêmica, de pesquisa, que possa ser feita sobre os mesmos problemas, e expor de forma independente e honesta as conclusões ou resultados que extraio de meus estudos, leituras e reflexões. Não tenho razões para mudar de atitude, seja para galgar distinções políticas que não almejo, seja para agradar superiores ou colegas que se exercem nos mesmos campos que são os meus desde sempre: a dupla carreira na diplomacia e na academia.
Vale!

Paulo Roberto de Almeida 
Brasília, 18 de dezembro de 2016.

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Mensagens recebidas: 

Achilles Emilio ZaluarO grande erro que muitos cometem é afastar as vozes dissidentes, o que os franceses chamam os "empêcheurs de penser en rond". Foi um erro, para o Governo da época, demitir Samuel Pinheiro Guimarães. Foi um erro para o Governo subsequente colocar um diplomata do seu valor na geladeira. Como você não "quebrou", isto é, não caiu na depressão e no desânimo (não te conheciam bem...), você acabou sendo muito mais influente e eficaz, com a liberdade de trabalhar por fora contra os projetos deles na batalha mais importante, que é a das idéias. 
O Itamaraty precisa, a cada momento, manter uma diversidade ideológica que permita um debate interno saudável. Isso é positivo mesmo do ponto de vista da eficácia do projeto no poder em cada momento (que é alertado sobre os erros táticos que é tentado a cometer, sob a ilusão da onipotência que aflige os detentores do poder), e ainda mais do ponto de vista dos interesses permanentes do Brasil. 
Mesmo os militares mantiveram dentro do MRE um número considerável de diplomatas "de esquerda", que ocuparam funções importantes. A tentativa de impor uma monocultura ideológica termina sempre como todos as monoculturas: pragas, rendimentos decrescentes, ciclos de boom and bust. Benvindo de volta, Paulo.

Minha resposta ao Achilles:Paulo Roberto de AlmeidaConcordo com absolutamente tudo, ou quase tudo, meu caro Achilles Emilio Zaluar, e agradeço imensamente as palavras generosas e simpáticas. Também acredito que a batalha das ideias é a mais importante. Mas eu não afirmaria que, no meu caso específico, se tratou de um "erro", pois eu acho que eles "acertaram", ao me julgar um "empêcheur de penser en rond", ou um contrarianista fundamental. Simplesmente pretenderam me silenciar, e até me impedir de trabalhar, o que aliás é uma violação de normas de direito administrativo (o que me habilitaria, teoricamente, a processar o Ministério, para obrigá-lo a me designar para qualquer coisa, até chefe da garagem que fosse). No cargo atual, pretendo, justamente, debater todas as questões relevantes, em aberto aquelas que podem ser feitas em aberto, e em reuniões fechadas aquelas questões sensíveis. Vamos ver até onde será possível...

Cyro AndradeReceba meu abraço de plena solidariedade (o adjetivo vai como reforço proposital).

Carlos Eduardo Véras NevesLeopoldo Faiad da Cunha

Adivo Paim FilhoUm cordial Abraço Dissidente, desde o centro geográfico do sertão gaúcho! Description: https://www.facebook.com/images/emoji.php/v6/f4c/1/16/1f642.png:)

Carmen Lícia PalazzoAdorei o blog com esta nossa foto. Description: https://www.facebook.com/images/emoji.php/v6/f4c/1/16/1f642.png:)

Carlos Alberto AsforaPaulo, dá vergonha alheia lembrar de tudo que passamos, pelas mãos dos companheiros, você, talvez mais do que todos. Eles me dão nojo, muito nojo. É só o que eu posso sentir.

Hadassah SantanaSempre uma boa reflexão! Description: https://www.facebook.com/images/emoji.php/v6/f57/1/16/1f609.png😉

Marco Tulio Scarpelli CabralBem-vindo de volta, Paulo. É um privilégio trabalhar com você.

Pedro Fernando Bretas BastosE eu aposentado, no Rio, o seguirei, sempre com a minha admiração, apreço e respeito. Forte abraço do Pedro Fernando Bretas Bastos

Vera Do Val GalanteParabéns, Paulo Roberto, pela retidão e coerência. O Itamaraty perdeu esse tempo todo. Agora começa a se redimir, mas ainda falta...


Minha resposta geral: 
Meus sinceros agradecimentos aos muitos amigos e colegas (recebi e-mails diretamente também) que se manifestaram a respeito dessa postagem, que de ordinário não teria sido feita se não tivesse ocorrido a "provocação" de um colega: normalmente sou extremamente discreto quanto a tudo o que se refere a questões pessoais e apenas me pronuncio sobre temas objetivos, separados de minha própria condição. Mas como ele abordou o "deserto", achei que minha resposta -- e de certa forma explicação, pois muita gente ainda me cumprimenta pela direção do IPRI -- merecia ser veiculada de forma pública, uma vez que a situação era, efetivamente, pública: todos sabiam que eu estava no deserto, mas ninguém sabia exatamente como e porque, em que circunstâncias isso tinha ocorrido, e o que eu tinha feito nesse longo período de treze anos e meio (talvez mais), em que estive totalmente -- enfatizo totalmente -- afastado de quaisquer funções na Secretaria de Estado. Voilà...

 Paulo Roberto de Almeida 

quinta-feira, 24 de setembro de 2020

Resumindo a situação: estaremos nessa situação por algum tempo - Paulo Roberto de Almeida

 Resumindo a situação: estaremos nessa situação por algum tempo

 

Paulo Roberto de Almeida

(www.pralmeida.orghttp://diplomatizzando.blogspot.com)

[Objetivoreflexão sobre os impasses do momentofinalidadeesclarecimento]

 

 

Vou tentar resumir a situação:

1) O Brasil está sem rumo;

2) O governante não tem a menor ideia do que fazer ou para onde quer levar o Brasil;

3) Todos os que o assistem ainda não se entenderam sobre o que fazer: também estão sem rumo;

3) O principal responsável econômico só quer arrumar um pouco mais de $$ para tocar o barco enquanto alguma cabeça pensante seja capaz de oferecer um mínimo de liderança sobre o que fazer no geral; esperança inútil nesse governo;

4) A classe política quer escapar de suas responsabilidades e se possível da Justiça, por malversações repetidas e acumuladas, e não quer perder as mamatas de que goza;

5) O mandarinato estatal não quer perder nenhuma vantagem e, se possível, ainda ampliar um pouco mais as existentes;

6) Empresários e trabalhadores farejam que serão mais uma vez escalados para pagar a conta do descalabro estatal;

7) Não existe NENHUM RISCO de mudar, pois o governante só pensa na sua reeleição e sobre como escapar de acusações de malversações passadas e continuadas por toda a família, que sempre roubou o Estado, ou seja, todos nós;

Em conclusão: não há rumo, não existem responsáveis, não existe sequer consciência sobre quais são os problemas mais relevantes ou sobre como resolvê-los. O Brasil caminha para o NADA, ou melhor, para uma situação ainda pior do que a atual.

Quando não se tem liderança, ou quando a que existe é medíocre e ignorante, não dá para esperar outra coisa.

Meus cumprimentos aos donos do dinheiro no Brasil, pois são eles que poderiam decidir um outro futuro para o país.

Sim, estou falando de grandes capitalistas, banqueiros, líderes do agronegócio, grandes empresários industriais: como vocês são medíocres e só pensam em vocês mesmos, continuam apoiando políticos tradicionais que vão continuar conduzindo os lemingues para o precipício. 

Vão continuar assistindo à marcha para o abismo?

Estou pedindo um complô de capitalistas esclarecidos para tentar se substituir ao povo votante?

Talvez seja o caso: não vejo outra alternativa ao caos que se apresenta sob a forma do “mais do mesmo”. 

Classe dominante, segundo a visão marxista do mundo, deveria normalmente dominar. Se ela não se entende, outros aventureiros se apresentarão para se beneficiar da ingenuidade, da ignorância e da impotência dos eleitores.

Desculpem a crueza do argumento, mas é apenas o que tenho a oferecer no momento. Aos que acreditam na “reunião dos democratas”, na “pedagogia do voto”, eu apenas diria: vocês acreditam num país que NÃO EXISTE, tanto quanto aquele país a que se referiu o presidente no seu medíocre e inútil discurso na ONU.

Sorry por ser tão brutal e direto.

Apenas quis sintetizar a situação.

Paulo Roberto de Almeida

Brasília, 24/09/2020

 

Addendum retificador: não existe classe dominante no Brasil: estamos numa situação de completa anomia social. Ou, se existe, ela não conta com indivíduos suficientemente esclarecidos e dotados de iniciativa e capacidade de liderança para fazerem um “Cahier des Charges” das classes dominantes; uma espécie de Assembleia Geral do Primeiro Estado. Mesmo que tivéssemos isso, eles diriam que não podem dar um golpe de Estado, ou fazer uma Bastilha da Burguesia para impor suas soluções ao resto do país, quando a solução sempre passa pelo sufrágio universal. Se for assim, a solução passa pelo reforço das instituições e pela educação política da população. Em outros termos, estamos nisso por duas ou três gerações mais, depois de afundarmos ainda mais. Sorry por continuar a ser pessimista.

 

 

Paulo Roberto de Almeida

Brasília, 3761, 24 de setembro de 2020